por Renato Ventura Ribeiro
O Conselho Federal de Administração , através da Resolução Normativa n. 293, de 10.10.04 (DJU 28.10.04, p. 194), estabeleceu que todo administrador ou gerente de sociedade, sócio ou não, deve ser inscrito em Conselho Regional de Administração (CRA). No entanto, salvo melhor juízo, a exigência é inconstitucional e ilegal.
É inconstitucional, por ferir o princípio da legalidade (CF, arts. 5º, XII e 37), pois a obrigatoriedade deveria constar de lei (em sentido estrito) e não de simples Resolução, norma hierarquicamente inferior e secundária. Também por infringir o princípio da livre iniciativa (CF, art. 1º, IV e 170), impedindo o exercício de atividade pelos sócios. Deve-se lembrar que a sociedade, por vezes, é apenas estrutura formal para possibilitar exercício de atividades pelos sócios, como nas sociedades de profissionais liberais. Como exemplo, a sociedade de advogados, que “existe para apoiar a atividade conjunta de advogados, gerir suas contas e facilitar-lhes o trabalho”, não tendo “por fim atuar na advocacia, mas possibilitar que os advogados nela reunidos (como sócios, associados ou empregados), possam exercê-la de modo mais racional e organizado” (cf. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Sociedades de advogados, 2ª ed., São Paulo, Juarez de Oliveira, 2002, pp. 11 e 13, com grifos do original; no mesmo sentido, Paulo Luiz Netto Lobo, Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB, Brasília, Brasília Jurídica, p. 76 e nota 63, apoiado nas lições de Haddock Lobo, Costa Neto e Orlando Gomes).
Quanto à ilegalidade, são diversos os aspectos. Extrapola a competência legal do CFA, prevista no art. 7º da Lei 4.769/65. Não só a determinação é descabida por falta de competência, como não há atribuição de delegação legal para disciplina da matéria. Além disto, como a Lei 4.769/65 não elenca como atividades privativas dos técnicos de administração a gerência e administração de sociedades, conclui-se que não inscritos em CRA podem ocupar tais cargos. E ainda que houvesse tal previsão, estaria derrogada por leis posteriores, como a Lei 6.404/76.
A decisão em comento também padece de ilegalidade por contrariar normas superiores. É regra básica de hermenêutica que quando o legislador não distingue ou especifica, não cabe ao intérprete ou a norma de hierarquia inferior fazê-lo. Como as normas legais sobre os administradores de sociedades não exigem a condição de inscrito no CFA, não pode uma Resolução fazer tal exigência, sob pena de contrariedade à lei.
Nem se diga que o legislador, ao usar o termo “administrador”, quis fazer referência a inscritos no CRA ou bacharéis em administração. Primeiro, porque em matéria de sociedades e empresas, nem sempre o legislador brasileiro utiliza termos técnicos ou precisos (por todos, as críticas e exemplos de Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, São Paulo, Saraiva, 1988, pp. 127-128). Segundo, porque não se pode falar em omissão do legislador, pois em algumas hipóteses foi expressamente prevista a exigência de grau superior ou outros requisitos, como será visto. Mas, antes da análise da disciplina das sociedades reguladas no Código Civil, necessário o exame nas sociedades anônimas, para melhor visão da matéria.
No início do século XX, bem antes da edição das atuais leis de sociedades anônimas, já era notada a separação de proprietários e administradores (cf. Berle e Means, The modern corporation and private property, New York, Macmillan, 1933; James Burnham, The managerial revolution, New York, John Day, 1941) e a empresa como instituição cuja finalidade vai muito além dos interesses egoísticos dos sócios (por todos, cf. Rathenau, “La realtà della società per azioni – Riflessioni suggerite dall’esperienza degli affari”, Rivista delle Società 11 (1966), pp. 912-947, tradução do livro Von Aktienwesen – Eine geschäftliche Betrachtung, Berlin, 1917). E isto foi levado em conta na elaboração da lei do anonimato, conforme sua Exposição de Motivos: “Não é mais possível que a parcela de poder, em alguns casos gigantesca, de que fruem as empresas – e, através delas, seus controladores e administradores – seja exercida em proveito apenas dos sócios majoritários ou dirigentes e não da companhia que tem outros sócios e em detrimento ou sem levar em consideração os interesses da comunidade”.
Porém, segundo a lei das sociedades por ações, consideram-se administradores os membros do Conselho de Administração e da Diretoria (Lei 6.404/76, art. 138). Para nenhuma das funções a lei exige diploma de curso superior ou inscrição em CRA. São requisitos legais para membro do Conselho de Administração, ser acionista, residente no país, pessoa física, não estar impedido e ser eleito (art. 146). Nada mais. O Conselho de Administração tende a ser ocupado pelos acionistas, muitos dos quais leigos em “administração”. É o órgão destinado à representação dos acionistas. Entre suas atribuições, a possibilidade de, a qualquer momento e observados os requisitos legais, destituir a Diretoria ou parte dela. Apesar de seus membros serem considerados administradores pela lei, e sujeito aos deveres e responsabilidades a eles inerentes, não é exigência legal a inscrição em CRA. Os requisitos para a função de membro da Diretoria são os mesmos exigidos para o cargo no Conselho de Administração, exceto a condição de acionista (art. 146).
Nem se diga que o legislador de 1976 foi omisso ao não prever a condição de administrador. Mesmo sabendo-se que nas grandes corporações, a tendência é a profissionalização da administração ou, ao menos, da Diretoria, no estabelecimento do dever de diligência dos administradores, a lei exige apenas o cuidado e a diligência de qualquer “homem ativo e probo” (cf. arts. 153 da Lei 6.404/76 e 1.011 do Código Civil), ao contrário de outros países nos quais se exige a diligência de um profissional, como o padrão do “ordenado e fiel homem de negócios” (eines ordentlichen und gewissenhaften Geschäftsleiters) do direito alemão (Código Comercial de 1897, § 241; Aktiengesetz de 1937, § 84, e de 1965, § 93.1), do “ordenado empresário e representante leal” na Espanha (lei das sociedades anônimas de 1989, art. 127, seguindo o modelo da lei anterior de 1951, art. 79), do “gestor ordenado” em Portugal (Código das Sociedades Comerciais, artigo 64o) e do buen hombre de negócios do direito argentino (Ley n. 19.550, art. 59, mantido intacto pela Ley n. 22.903, de 9.9.83) e uruguaio (Ley n. 16.060, de 7.9.89, art. 83).
A questão fica ainda mais clara quando se examina a composição do Conselho Fiscal. No passado, o órgão sofreu duras críticas, por ser inoperante e pouco eficaz, como as presentes na Exposição de Motivos da LSA: “na maioria das companhias existentes, todos os membros do conselho fiscal são eleitos pelos mesmos acionistas que escolhem os administradores. Nestes casos, o funcionamento do órgão quase sempre se reduz a formalismo vazio de qualquer significação prática, que justifica as reiteradas críticas que lhes são feitas, e as propostas para essa extinção”. Em razão disto, o legislador de 1976 optou por exigir do membro do Conselho Fiscal a condição de portador de diploma de curso superior (e de qualquer área, não necessariamente de administração). Note-se que somente para membro do Conselho Fiscal há a exigência de portar diploma de curso superior, o que é dispensável para ser membro do Conselho de Administração e da Diretoria.
Nem se pode alegar que o objetivo da exigência de inscrição em CRA é a fiscalização deontológica dos administradores. Isto porque, além dos deveres e responsabilidades legais dos administradores (Lei 6.404/76, arts. 153 a 159), as leis especificam outras formas de controle de seus atos, como a fiscalização interna, pelo Conselho Fiscal e aprovação das contas em assembléias ou reuniões de sócios, e a externa.
Vê-se, portanto, que a lei das sociedades por ações, nitidamente elaborada levando em conta a disciplina de macroempresas não exige a condição de bacharel em administração nem de inscrito em CRA para exercício do cargo de administrador. Tal exigência também não é encontrada no direito comparado. Ora, se a lei das sociedades por ações, orientada para disciplina de macroempresas não exige a condição de inscrito em CRA para administradores de sociedades, não é lógico entender cabível tal exigência no caso de outras formas de sociedades, destinadas principalmente a empresas de menor porte. Até porque as normas legais não prevêem tal condição para os administradores.
O Código Civil, ao utilizar o termo “administrador” em lugar da antiga denominação “gerente” para designar o gestor das sociedades não pretende que este seja administrador profissional inscrito em CRA. Se assim fosse, teria previsto expressamente a necessidade de tal condição.
O termo “administrador” é plurívoco, servindo para indicar tanto o técnico ou bacharel em administração inscritos em CRA como qualquer outra pessoa – leiga, que exerça cargo de administração. No caso de sociedades, resta bem claro que o uso da palavra “administrador” refere-se à segunda hipótese, ou seja, sócio ou terceiro responsável pela administração, mesmo não inscrito em CRA.
Por isto, conclui-se pela inconstitucionalidade, ilegalidade e descabimento da exigência prevista na Resolução Normativa n. 293 do CFA.
Revista Consultor Jurídico, 31 de Janeiro de 2005