Considerações sobre o Veto Presidencial aos Projetos de Lei

Marcelo Lessa Bastos

Sumário

Introdução
Capítulo Único: Considerações sobre o Veto Presidencial aos Projetos de Lei
1. A participação do Presidente da República no Processo Legislativo.
2. Em torno do veto.
2.1 Conceituação.
2.2 Natureza jurídica.
Caráter Legislativo ou Executivo?
2.3 Fundamentos do veto.
2.4. Espécies de veto.
2.5 Características do veto.
3. Os atos normativos não sujeitos a deliberação presidencial.
4. O veto nas Constituições do Brasil.
Conclusão
Referências bibliográficas

Introdução
O presente ensaio destina-se a fazer uma abordagem sucinta da participação negativa do Presidente da República no processo legislativo, através do veto aos projetos de Lei.

Em um primeiro instante, aborda-se, resumidamente, sua participação na elaboração das leis, através dos vários institutos que a Constituição lhe reserva, como a iniciativa exclusiva e a própria adoção de medidas com força de Lei, as chamadas medidas provisórias.

Em seguida, conceitua-se o instituto do veto, discutindo-se sua natureza jurídica, fundamentos, espécies e características, para, logo depois, elencarem-se os atos normativos que dispensam a apreciação presidencial e reproduzir um estudo histórico do instituto ao longo das Constituições do Brasil.

Em nenhum momento, pretende-se, com este ensaio, que nem bem pode ser chamado de monografia, esgotar-se o assunto, já que o propósito do mesmo é enunciar as principais questões que envolvem o tema selecionado para a abordagem.

Capítulo Único: Considerações sobre o Veto Presidencial aos Projetos de Lei
1. A participação do Presidente da República no Processo Legislativo.
O moderno Direito Constitucional não consagra uma separação radical entre os Poderes.

Em verdade, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário desempenham funções que lhes são típicas (ordinárias) – respectivamente a administração pública, a elaboração de leis e o exercício da Jurisdição – e, também, funções atípicas (extraordinárias), porque típicas de outro Poder. O exemplos são vários, valendo lembrar, sem muito esforço, o julgamento pelo Senado Federal do Presidente da República diante de crime de responsabilidade (função jurisdicional), a nomeação de funcionários por parte dos presidentes dos Tribunais (função administrativa), a adoção de medidas provisórias com força de lei pelo chefe do Executivo (função legislativa).

Neste diapasão, o Presidente da República não raras vezes atua como legislador, tanto positivamente, como negativamente[1].

Participa o Presidente da República diretamente do processo legislativo, não apenas diante daquelas matérias que lhes são reservadas à iniciativa exclusiva[2], como também na maioria dos atos normativos, em que é chamado, na etapa final, para sancioná-los ou apor seu veto[3].

Isto sem falar nas medidas provisórias e nas leis delegadas, cuja abordagem foge aos objetivos deste trabalho.

Michel Temer vê nessa participação do Executivo no processo legislativo uma forma de exercer o controle recíproco de um Poder por outro Poder, de forma a:

“Impedir exageros na atividade de cada qual, de molde a impedir ou desfigurar a razão mesma de sua adoção [da adoção da separação de poderes]: a preservação dos direitos individuais”[4].

2. Em torno do veto.
2.1 Conceituação.
O veto é o instituto através do qual o Presidente da República manifesta sua discordância para com o projeto de lei, impedindo, pelo menos num primeiro momento[5], a sua entrada em vigor.

Montesquieu o concebera em termos absolutos, como manifestação da faculté d’empêcher, sem a qual o Poder Executivo seria “logo despojado de suas prerrogativas”[6]. Não é este, todavia, o perfil que lhe dá o moderno Direito Constitucional, já que as várias constituições que mantêm o instituto permitem a derrubada do veto pelo Poder Legislativo.

Na síntese de Ernesto Rodrigues, veto é:

“o poder de desaprovação total ou parcial exercido pelo Poder Executivo sobre o projeto de lei emanado do Poder Legislativo. É, portanto, a antítese da sanção”.[7]

Complementa José Afonso da Silva:

“veto é o modo de o Chefe do Executivo exprimir sua discordância com o projeto aprovado, por entendê-lo inconstitucional ou contrário ao interesse público.”[8]

Temos, assim, uma declaração de vontade do Presidente da República, manifestando-se contra o projeto de lei a ele enviado pelo Poder Legislativo, sob dois fundamentos: o da contrariedade ao interesse público e o da inconstitucionalidade.

Uma vez manifestada a discordância, não pode mais o Presidente da República voltar atrás, porque o veto é irretratável, tornando-se impossível, após comunicado ao Poder Legislativo e a ele remetidas as razões do veto, mudar o Presidente de opinião.

2.2 Natureza jurídica.
É controvertida na doutrina constitucional. Há aqueles que o entendem como que um direito do Presidente da República, por intermédio do qual o Chefe do Executivo exerceria a prerrogativa de solicitar uma nova deliberação do Legislativo. Seria uma espécie de fiscalização exercida pelo Poder Executivo sobre a qualidade do trabalho do Poder Legislativo.

Outros o concebem como que um poder, através do qual o Presidente da República desaprova o projeto de lei elaborado pelo Poder Legislativo. É um poder constitucional atribuído ao Presidente da República.

Há, ainda, aqueles que consideram o veto como um poder-dever do Presidente da República, acolhendo uma posição intermediária[9].

– Caráter Legislativo ou Executivo?

Uma outra discussão, resumida por Ernesto Rodrigues[10], traz à baila o caráter legislativo ou executivo do veto.

Para uma ampla maioria[11], o veto ter caráter legislativo. Seria uma forma de colaboração legislativa do Poder Executivo, constituindo-se, inclusive, numa subespécie de sanção, através da qual o este Poder evita as demasias do Poder Legislativo.

Para Ernesto Rodrigues[12], todavia, o veto tem natureza executiva. Cuida-se de um ato do Presidente da República, arrolado dentre suas prerrogativas típicas de chefe do Poder Executivo, em capítulo distinto do Poder Legislativo. É o veto uma negativa da proposição feita pelo Poder Legislativo, o que evidencia seu caráter Executivo, demonstrando tratarem-se de dois Poderes distintos, em suas funções tipicamente distintas.

2.3 Fundamentos do veto.
Hoje, segundo nosso ordenamento jurídico[13], o Presidente da República só pode vetar projetos de lei com base em dois fundamentos: o da inconstitucionalidade e o da contrariedade ao interesse público.

O veto jurídico, como é conhecido no caso de inconstitucionalidade, coloca o Presidente da República como guardião da Constituição, exercendo o controle prévio de constitucionalidade das leis[14].

O veto político, como é conhecido no caso de contrariedade ao interesse público, coloca o Presidente da República como um defensor desse, competindo-lhe formular o juízo de conveniência e oportunidade do ato normativo.

2.4. Espécies de veto.
O veto pode ser total ou parcial.

Através do veto total, o Presidente da República desaprova, na íntegra, o projeto de lei.

Esta foi a primeira espécie de veto universalmente desenvolvida.

Aos poucos, passou-se a sentir uma necessidade de dar meios ao Executivo de afastar dos textos legais pontos determinados. Eram excrescências, muitas vezes acrescentadas maliciosamente no texto do projeto durante sua elaboração legislativa – conhecidas como “caudas”, “pingentes” ou “riders”. Eram, enfim, pontos desconexos, introduzido pelos Parlamentares no corpo de um projeto de alto interesse público, obrigando ao Presidente da República um juízo de ponderação de valores, muitas das vezes tendo que aceitar as excrescências diante do malefício maior que seria vetar todo o projeto.

Surgiu daí, então, o veto parcial, através do qual o Presidente pode desaprovar parte do projeto de lei, sancionando o que lhe parecer correto e vetando a parte que julgar desconexa.

A experiência do veto parcial no Direito Brasileiro acabou, num primeiro momento, por desvirtuar-lhe o fim que o criou: o veto parcial foi concebido para fortalecer Poder Executivo, protegendo-o de chantagens políticas ditadas pela inclusão em projetos de lei, na fase de elaboração legislativa, de assuntos impertinentes, os quais se via o Presidente obrigado a aceitar à míngua de um instrumento que lhe permitisse colocar em vigor apenas o cerne pertinente do projeto. Com o veto parcial, o Poder Executivo foi dotado deste instrumento, já que não mais se via na contingência de aprovar todo o projeto, sancionando-o, ou ter de vetá-lo na íntegra (prejudicando, deste modo, o interesse público tutelado em seu cerne).

Todavia, o veto parcial passou a ser utilizado na história política brasileira como instrumento de abuso do Poder Executivo, para, vetando palavras isoladas do texto legal, mudar-lhe completamente o sentido, acabando por desvirtuar o projeto de lei. E pior: para a derrubada do veto, era (como ainda é) exigido um quorum qualificado, o que dava ensejo à uma possibilidade de o Executivo legislar transversamente, através da desfiguração do projeto de lei, bastando que tivesse uma minoria que o apoiasse, impedindo a formação do quorum necessário à derrubada do veto e restauração do verdadeiro alcance do projeto desvirtuado. O veto parcial acabou sendo utilizado para fraudar a vontade do Poder Legislativo[15], usurpada pelo Presidente da República.

O problema foi solucionado restringindo-se o veto parcial a texto integral de artigo, inciso, parágrafo ou alínea, impedindo-se o veto de palavras isoladas no texto legal[16].

A solução é criticada por Michel Temer, para quem o veto parcial, mesmo com a extensão que lhe é assegurada, também pode desvirtuar o espírito de um projeto de lei, com a supressão de um parágrafo, inciso, alínea ou artigo. Segundo o constitucionalista, esta limitação ao veto parcial pode acabar por obrigar o Presidente da República a acolher um dispositivo em relação ao qual discordava apenas de um elemento. Caso esta discordância servisse para encobrir uma usurpação da função legislativa, sugere o autor fosse promovida a ação direta de inconstitucionalidade, invocando-se a violação ao art. 2° da Constituição da República.

Data maxima venia, parece-nos que, quando se partiu para instituir o veto parcial e, depois, para limitar-lhe o alcance, não se estava a buscar a melhor solução, já que a melhor solução consistiria na legitimidade do Poder Legislativo elaborar textos de lei que visassem a atender ao superior interesse público, no que o Poder Executivo teria prazer em aquiescer. Os desvios foram começando em sua gênese e, à medida em que os problemas iam ocorrendo, viu-se na contingência de buscar uma solução que o resolvesse do modo menos danoso. Daí chegou-se ao veto parcial e, depois, à delimitação do alcance de tal veto, de sorte a combater abusos históricos dos Legisladores e dos Presidentes da República[17].

2.5 Características do veto.
Em nosso Direito, podemos, à luz da vigente Constituição, relacionar a seguintes características do instituto do veto.

Só pode ser expresso, porque, uma vez enviado ao Presidente da República o projeto de lei pela Casa que ultimou sua votação, ao cabo do prazo de 15 dias úteis, seu silêncio importa em sanção[18].

Sempre tem que ser motivado, enviando-se ao Congresso Nacional as razões do veto (ditadas pelos fundamentos que o autorizam[19]), até para que possa o Poder Legislativo conhecer os motivos que levaram o Presidente da República a não aquiescer ao projeto de lei, de sorte a fazer seu juízo de reavaliação.

Cuida-se de um ato formal, devendo ser aposto por escrito, dentro do prazo estabelecido[20], deduzindo-se, como dito, as razões que o levaram à sua adoção.

O veto, dentre nós, é sempre supressivo. Através dele somente é possível decotar do texto legal sua matéria impertinente (em caso de veto parcial)[21] ou rejeitar-se todo o projeto (em caso de veto total). Não nos é possível, através do veto, adicionar-se nada ao texto do projeto, nem mesmo substituir a parte vetada por outra pretendida pelo Presidente, o que, aliás, segundo se entende, desnaturaria a própria natureza do instituto do veto, confundindo-o com participação legislativa ativa ou positiva[22].

Por fim, podemos dizer que o veto que concebemos é superável ou relativo. Isto significa que o veto é objeto de apreciação pelo Congresso Nacional, em reunião unicameral, podendo, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, em escrutínio secreto, derrubar o veto, restabelecendo o projeto de lei. O veto, então, se derrubado, apenas retardou a vigência imediata do projeto vetado ou da parte do projeto vetado[23]. Prevalecerá a decisão do Congresso Nacional, o que, aliás, é muito coerente, já que a tarefa precípua de legislar, dentro da Tripartição de Poderes, é mesmo do Poder Legislativo[24].

Se derrubado o veto, o projeto é remetido ao Presidente da República para promulgação o que, se não ocorrer, será feito pelo Presidente do Senado Federal ou o Vice-Presidente daquela casa (no caso de inércia do primeiro)[25].

Se o veto for mantido, ter-se-á por rejeitado o projeto de lei. Um novo projeto de lei que verse sobre mesma matéria rejeitada somente poderá ser objeto de apreciação em outra sessão legislativa. Excepcionalmente, até pode sê-lo na mesma sessão legislativa, porém, para tanto, exige-se que seja subscrito pela maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional[26].

Interessante questão é levantada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho[27]: se é possível, diante do veto total a um projeto de lei, ser este veto derrubado parcialmente. Em outras palavras: se pode o Congresso Nacional, na apreciação do veto integral, ratificar parcialmente o projeto de lei, aquiescendo com a manutenção parcial do veto. Citando Themístocles Brandão Cavalcanti, conclui o autor que a resposta é sim, porque admitindo o ordenamento jurídico o veto parcial, o veto total nada mais é do que um conjunto de vetos parciais, os quais podem ser acolhidos em parte e rejeitados em parte.

Vale transcrever as conclusões do citado Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“Havendo a possibilidade de veto parcial, o veto total equivale à recusa de cada disposição do projeto. Ora, nada obsta logicamente que o Congresso reaprecie cada disposição do projeto de per si, ratificando umas, rejeitando outras. A ratificação do projeto tem por conseqüência dispensar a anuência presidencial. Como a sanção, torna-o lei perfeita e acabada. Daí se infere claramente que a concordância do Presidente é, em nosso Direito, dispensável, embora sua manifestação não o seja, para a transformação de um projeto em lei.”[28]

3. Os atos normativos não sujeitos a deliberação presidencial.
Os atos normativos, em regra, possuem a natureza de um ato complexo desigual. Uma vez mais na síntese de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“O ato legislativo é, portanto, no Direito Pátrio, sempre ato complexo desigual, fruto da integração em uma vontade principal de vontade ou vontades secundárias “[29]

A vontade principal, normalmente, é a do Congresso Nacional, a quem cabe dar a última palavra, em caso de veto presidencial. A vontade do Executivo é secundária porque seu veto pode ser derrubado e porque, mesmo em matérias nas quais possui reserva de iniciativa, sua participação se restringe a enviar ao Poder Legislativo o projeto de lei, no seio do qual será ele discutido, emendado (se for o caso) e aprovado.

Há contudo, atos normativos que dispensam a participação do Presidente da República, não se submetendo a sanção ou veto. São eles: as emendas constitucionais[30] e os atos normativos adotados pelo Congresso Nacional no uso de sua competência exclusiva e pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal no uso de sua competência privativa.[31]

As emendas constitucionais são manifestações do poder constituinte derivado, cujo titular continua sendo povo, não se justificando, ontologicamente, deva ser submetida à deliberação do Presidente da República.

Os atos normativos de competência exclusiva do Congresso ou privativa de ambas as Casas Legislativas sofrem esta reserva exatamente para preservar a independência dos Poderes, em assuntos que o Constituinte entendeu que deveria destacar, tornando-se inconveniente a apreciação presidencial.

Não são levadas a sanção presidencial, também, por razões óbvias, as leis delegadas e as medidas provisórias: as primeiras porque elaboradas pelo próprio Presidente da República, após solicitar a delegação ao Congresso Nacional que, se for o caso de apreciar o projeto, não poderá emendá-lo[32]; as segundas porque adotadas com força de lei pelo próprio Presidente, em ato único. Como se vê, se é o próprio Presidente quem elabora tais atos normativos, sentido algum faria exigir que o mesmo reapreciasse seu próprio ato, sancionando-o ou vetando-o.

4. O veto nas Constituições do Brasil.
Examinemos, sucintamente, como as diversas Constituições do Brasil abordaram a questão do veto presidencial aos projetos de Lei.

Constituição do Império (1824): o Poder Legislativo era “delegado” à Assembléia Geral, que se compunha da “Camara de Deputados” e da “Camara de Senadores”. Por óbvio, em se tratando de uma Monarquia, o exercício desse poder “delegado” dependia da “Sancção” do Imperador, que exercia o Poder Moderador[33]. Concluído o projeto nas “Camaras”, era ele enviado ao Imperador para sanção. O Imperador tinha um mês para sancioná-lo. Se vetasse ou se silenciasse, ficava o projeto suspenso por tempo indeterminado, ou, se reapresentado, nos mesmos termos, pelas duas legislaturas que se seguissem, ter-se-lo-ia como aprovado. O Imperador poderia, ainda, “adoptar o Projecto”, ou seja, acrescentar-lhe o que desejasse[34]. Interessante notar que o texto constitucional não falava, expressamente, em “veto”.

Constituição Republicana de 1891: também não falou, expressamente, em “veto”, mas em negativa de sanção, o que nada mais é do que veto. A expressão “veto” viria ser consagrada com a Reforma Constitucional de 1926, que, inclusive, introduziu o veto parcial, com a ampla flexibilidade que se seguiria nas Constituições posteriores, só sendo limitado pelas de 1967 e a atual (a de 1988). Os fundamentos do veto eram a contrariedade aos interesses da Nação e a inconstitucionalidade. O silêncio importava em sanção tácita, de sorte que o veto tinha que ser expresso. O veto podia ser derrubado, porém exigia-se o difícil quorum de 2/3 dos membros de cada Casa Legislativa, que reunir-se-ia separadamente para deliberar sobre a negativa de sanção.

Constituição de 1934: repetiu basicamente as regras do veto constantes na sistemática anterior, apenas reduzindo o quorum para derrubada do veto, que passou a ser de maioria absoluta.

Constituição de 1937: retornou o quorum de 2/3 para a derrubada do veto, em reunião bicameral do Poder Legislativo. Exigia-se que o voto para a derrubada do veto fosse nominal, sendo pouco crível que tantos Parlamentares se prestassem a tal papel, se considerarmos que vivia-se sob a ditadura Vargas àquela época. Uma peculiaridade merece destaque: a possibilidade de projetos de lei chegarem ao veto era remotíssima, porque a iniciativa legislativa competia, ordinariamente, ao Poder Executivo, e nem mesmo os Parlamentares podiam, de per si, iniciarem o processo legislativo, o que só podia ocorrer por iniciativa de 1/3 de Deputados ou membros do “Conselho Federal” (órgão que substituía o Senado)[35].

Constituição de 1946: redemocratizou o país. O poder de veto ficou mantido e mantido também o quorum de 2/3 para sua derrubada. Todavia, a reunião do Poder Legislativo para deliberar sobre o veto passaria a ser unicameral. O prazo para o Presidente deliberar voltou a ser reduzido para dez dias úteis, findos os quais o silêncio presidencial importaria em sanção. Condizente com sua índole democrática, a iniciativa das leis podia se dar através de ato de qualquer dos membros do Poder Legislativo[36]. Em 1961, a Emenda Constitucional n° 4 estabeleceu o sistema parlamentar de governo, porém manteve no Presidente da República o poder de veto, todavia elevando para 3/5 o quorum de Parlamentares reunidos na sessão unicameral para sua derrubada.

Constituição de 1967: de novo, reduziu o quorum de derrubada do veto para 2/3 de Deputados e Senadores, em reunião unicameral, introduzindo o escrutínio secreto. A novidade foi a delimitação do veto parcial tal como nos moldes atuais[37].

Constituição (ou Emenda Constitucional n° 1?) de 1969: como sabemos, em 1969 houve a denominada “Emenda Constitucional n° 1”, considerada por muitos constitucionalistas como autêntica Constituição, tamanhas as alterações que produziu no texto primário – de 1967. Interessa-nos as disposições sobre o veto: aumentou-se para quinze dias úteis o prazo de deliberação presidencial sobre projetos de lei, findo o qual considerá-los-ia como sancionados, e suprimiu-se a delimitação do veto parcial, que voltava a poder se dar em termos amplos, ou seja, voltava-se a poder vetar apenas palavras do projeto de lei. O quorum para a derrubada do veto foi mantido em 2/3, porém aferidos em relação aos membros de cada Casa (não era, propriamente, uma reunião unicameral, já que se computavam as presenças, para fins de quorum, de Deputados e Senadores separadamente) e em “votação pública”[38].

Constituição vigente (1988): reduziu o quorum para a derrubada do veto, que é, hoje, de maioria absoluta dos Deputados e Senadores presentes à reunião unicameral do Congresso Nacional; garantiu o escrutínio secreto para tal mister; delimitou o veto parcial a texto integral de artigo, parágrafo, inciso ou alínea. O prazo de manifestação do Presidente da República sobre o projeto de lei a ele enviado é de quinze dias úteis, sendo seu silêncio recebido como sanção. Uma novidade é que, se o veto for derrubado pelo Poder Legislativo, o projeto retorna ao Presidente da República para promulgação e, se não o fizer, a promulgação tocará ao Presidente do Senado ou, sucessivamente, o Vice-Presidente desta Casa Legislativa[39].

Conclusão
A participação do Presidente da República no processo legislativo, seja com a reserva de iniciativa de projetos de lei, seja com a aquiescência demonstrada através da sanção ou com a discordância efetivada através do veto, indica uma moderna tendência do Direito Constitucional de aumentar a inter-relação entre os Poderes, não sem preservar-lhes a autonomia e a independência.

Todavia, em nome desta própria independência, tanto mais democrático será o Estado quanto mais assegurar a prevalência da vontade do Poder Legislativo em se tratando de opção legislativa, eis que esta é a sua função típica. Na garantia de tal desiderato, não se pode conceber veto absoluto, no sentido de impedir sua derrubada pelo Poder Legislativo, muito menos se podem conceber dificuldades opostas à derrubada do veto que traduzem uma manobra no sentido de fazer prevalecer a vontade do chefe do Executivo. Não raras vezes, em momentos de arbitrariedade, essas dificuldades consistiram, na história constitucional brasileira em elevado quorum deliberativo (2/3 e 3/5), aferido em cada Casa Legislativa separadamente, e, um requinte de intimidação dissimulada típica de períodos ditatoriais, mediante escrutínio nominal e público.

Indícios de autoritarismo repousam, também, na possibilidade de se vetar parcialmente palavras na lei, porque a supressão isolada, às vezes de uma vírgula, pode desvirtuar por completo o sentido da oração[40]. Nem é preciso muito esforço: basta que suponhamos o veto, no corpo de um dispositivo, de um advérbio de negação (“não”).

Não há espaço, na mesma linha, para “vetos aditivos”, por intermédio dos quais se possam acrescentar algo ao projeto de lei, quer substituindo o texto vetado, quer simplesmente adicionando esse algo. Tal possibilidade, remota por sinal, vai de encontro à própria lógica da palavra veto, que designa uma supressão, uma oposição, jamais um acréscimo.

Referências bibliográficas
ACCIOLI, Wilson. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1985.

DIAS, Floriano Aguiar. Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1975.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1995.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.

PILATTI, Adriano. O Processo Legislativo na Constituição de 1988. Artigo publicado no livro 1988/1998: Uma década de Constituição. Coordenado por CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

RODRIGUES, Ernesto. O Veto no Direito Comparado. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 1993.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997.

Trabalho apresentado na Disciplina Processo Legislativo do Curso de Mestrado em Políticas Públicas e Processo, sob orientação do Professor Dr. Adriano Pilatti, em 2000.

Marcelo Lessa Bastos é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Penal Especial e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Campos e da FEMPERJ.

[1] Ao vetar projetos de lei.

[2] Regra que é observada, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para deixar a cargo do titular da iniciativa o juízo da conveniência (necessidade de adoção) e da oportunidade (momento apropriado) da medida (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1995).

[3] Tema deste nosso sucinto relato.

[4] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 139.

[5] Num primeiro momento porque, como veremos, o veto pode ser derrubado pelo Poder Legislativo, fazendo com que o projeto inicialmente vetado transforme-se em lei.

[6] O Espírito das Leis, apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit.

[7] RODRIGUES, Ernesto. O veto no Direito Comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 36.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 526.

[9] Noticia-nos Alexandre de Moraes que, dentre os adeptos da primeira corrente, encontramos Pinto Ferreira, Alcino Pinto Falcão, Georges Burdeau, Joseph Barthélemy, Manuel Garcia Pelayo, entre outros; como partidários da segunda, temos Oswaldo Trigueiro, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Antônio Amorth, Henry Campbell Black, entre outros; citando-se dentre os simpatizantes da terceira Pontes de Miranda e Bernard Schwartz. (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 501.

[10] Loc. cit.

[11] Cita o autor Maurice Mayer, Pinto Ferreira e Alcino Pinto Falcão.

[12] Que cita Octacílio Alecrim.

[13] Cf. art. 66, § 1°, da Constituição da República.

[14] Por esta razão, não conseguimos admitir como razoável, podendo ser proposta pelo Presidente da República, a ação declaratória de constitucionalidade, porque se ele sancionou o projeto de lei – o qual deveria ter vetado se fosse inconstitucional – é porque há de se presumir a lei constitucional. Soa-nos extravagante um remédio jurídico para explicitar um conteúdo que já deve ser presumido. Ao menos no campo teleológico a teratologia parece-nos cristalina, não se desconhecendo, outrossim, os efeitos práticos que se perseguem com esta ação, introduzida no texto constitucional através da Emenda Constitucional n° 03, de 17 de março de 1993.

[15] Materializando aquele velho dito popular: “o feitiço voltou-se contra o feiticeiro”.

[16] Cf. art. 66, § 2°, da Constituição da República.

[17] Toda solução tem seu efeito negativo e, sem muito esforço, poderíamos lembrar um exemplo recente de inconveniência do alcance preestabelecido do veto parcial. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei n° 9.503/97) estabelecia, no projeto original de seu atual art. 111, I, que ficava proibida, nos vidros dos veículos, “a aposição de inscrições, películas refletivas ou não, adesivos, painéis decorativos ou pinturas, salvo as de caráter técnico necessárias ao funcionamento do veículo”. O dispositivo visava a restringir a aposição de “insul-filme”, por questões de segurança viária. Porém, a extravagância do legislador conduziria à conclusão, interpretando-se o dispositivo, de que não se poderia mais colar nenhum adesivo nos vidros dos carros (adesivos simples como aqueles de posto de gasolina que marcam a época de trocar o óleo; aqueles que identificam pessoas autorizadas a entrar em condomínios; aqueles que exprimem mensagens como “eu amo meu cachorro”, etc.). Para evitar o exagero, viu-se o Presidente da República na contingência de vetar todo o inciso, ao invés poder retirar do texto legal, apenas, a palavra “adesivo” (objeto do exagero). Essas as razões do veto: “É certo que o objetivo do inciso I inspira-se em razões de segurança do trânsito. Não obstante, a proibição total de uso de quaisquer adesivos não parece condizente com qualquer noção de razoabilidade. Recomenda-se, pois, o veto ao dispositivo. A matéria poderá ser objeto de proposta de regulamentação em projeto a ser encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional”. Posteriormente, foi necessário elaborar a Lei n° 9.602/98, para que passasse a constar do art. 111 do Código de Trânsito o inciso III, no qual proibia-se, dentro do razoável, a aposição dos adesivos que prejudicassem a segurança viária, nos seguintes termos: “aposição de inscrições, películas refletivas ou não, painéis decorativos ou pinturas, quando comprometer a segurança do veículo, na forma de regulamentação do CONTRAN”. Moral da história: para se adequar o texto legal à razoabilidade bastara suprimir a palavra “adesivo” da redação original. Como isto não era possível, teve-se que vetar parcialmente todo o inciso, obrigando-se a que outra lei fosse elaborada, com uma redação condizente com o razoável.

[18] Cf. art. 66, caput e §§ 1° e 3°, da Constituição de República.

[19] Que já examinamos no item 2.3.

[20] Do contrário, ocorrerá sanção tácita (art. 66, § 3°, da Constituição da República).

[21] No mínimo, texto integral de artigo, parágrafo, inciso ou alínea, conforme vimos.

[22] Parece-nos que é da essência do veto a participação legislativa negativa.

[23] Em caso de veto parcial, ocasião em que a parte não vetada se tem por sancionada e entra imediatamente em vigor (cf. art.

[24] O chamado veto absoluto, onde a vontade negativa do Presidente da República é inquestionável, não se coaduna com os ideais de um Estado Democrático de Direito, onde se acentuem a separação dos Poderes, a convivência harmônica e a sistemática de freios e contrapesos, em que cada Poder exerça seu controle recíproco sobre o outro Poder, nada obstante preserve sua independência.

[25] Cf. art. 66, §§ 4° a 7°, da Constituição da República.

[26] Vide art. 67 da Constituição da República.

[27] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit.

[28] Loc. cit.

[29] Loc. cit.

[30] Cf. art. 60 da Constituição da República.

[31] Cf. arts. 49, 51 e 52 da Constituição da República.

[32] Cf. art. 68 da Constituição da República.

[33] “O Poder Legislativo é delegado á Assembléia Geral com a Sancção do Imperador” (Art. 13 – Constituição de 1824); “A Assembléia Geral compõe-se de duas Camaras: a Camara de Deputados, e Camara de Senadores, ou Senado” (Art. 14 – Constituição de 1824).

[34] “Recusando o Imperador prestar o seu consentimento, responderá nos termos seguintes – o Imperador quer meditar sobre o Projecto de Lei, para a seu tempo resolver – Ao que a Camara responderá, que – Louva a Sua Magestade Imperial o interesse, que toma pela Nação” (Art. 64 – Constituição de 1824); “Esta denegação tem effeito suspensivo sòmente: pelo que todas as vezes, que as duas Legislaturas, que seguirem áquella, que tiver approvado o Projeto, tornem successivamente a apresentá-lo nos mesmos termos, entenderse-há, que Imperador tem dado a Sancção” (Art. 65 – Constituição de 1824); “O Imperador dará, ou negará a Sancção em cada Decreto dentro de um mez, depois que lhe for apresentado” (Art. 66 – Constituição de 1824); “Se o não fizer dentro do mencionado prazo, terá o mesmo effeito, como se expressamente negasse a Sancção, para serem contadas as Legislaturas, em que poderá ainda recusar o seu consentimento, ou reputar-se o Decreto obrigatório, por haver já negado a Sancção nas duas antecedentes Legislaturas” (Art. 67 – Constituição de 1824); “Se o Imperador adoptar o Projecto da Assembléia Geral, se exprimirá assim – O Imperador consente – Com o que fica sanccionado, e nos termos de ser promulgado como Lei do Imperio; e um dos dous autographos, depois de assignados pelo Imperador, será remettido para o Archivo da Camara, que o enviou, e o outro servirá por elle se fazer a Promulgação da Lei, pela respectiva Secretaria de Estado, aonde será guardado” (Art. 68 – Constituição de 1824).

[35] “A iniciativa dos projetos de lei cabe, em princípio, ao Govêrno. Em todo caso, não serão admitidos como objeto de deliberação projetos ou emendas de iniciativa de qualquer das Câmaras, desde que versem sôbre matéria tributária ou que de uns ou de outras resulte aumento de despesa. § 1° – A nenhum membro de qualquer das Câmaras caberá a iniciativa de projetos de lei. A iniciativa só poderá ser tomada por um terço de Deputados ou de membros do Conselho Federal. § 2 ° – qualquer projeto iniciado em uma das Câmaras terá suspenso o seu andamento, desde que o Govêrno comunique o seu propósito de apresentar projeto que regule o mesmo assunto…” (Art. 64 – Constituição de 1937).

[36] “A iniciativa das Leis, ressalvados os casos de competência exclusiva, cabe ao Presidente da República e a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” (Art. 67 – Constituição de 1946).

[37] “O veto parcial deve abranger o texto de artigo, parágrafo, inciso, item, número ou alínea” (Art. 62, § 1°, fine – Constituição de 1967).

[38] Art. 59, § 3°, da Constituição de 1969.

[39] Cf. art. 66 da atual Constituição da República.

[40] Rogamos venia a Michel Temer, um dos únicos constitucionalistas pesquisados que demonstra saudades do tempo do veto a palavras isoladas no texto do projeto de lei.

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