Paulo Sérgio Leite Fernandes
Por oito votos a dois (Ministros Marco Aurélio e Nery da Silveira), o Supremo Tribunal Federal teria declarado, em 28 de junho, a constitucionalidade do corte de luz e da cobrança de sobretaxa de consumo concernentes à crise de energia atravessada pelo país. Segundo os jornais, o julgamento foi marcado por considerações de natureza política. O ministro Sidney Sanches teria justificado seu voto favorável às medidas com a observação de que o povo reagira favoravelmente ao racionamento.
Muitos sociólogos se dedicaram ao exame do conceito de “vontade popular”. A lei, segundo a doutrina, deve atende àquilo que o povo quer. Há, por assim dizer, uma compulsão comunitária levando o legislador a recolher aquele fenômeno imanente, transformando-o em mandamento regulamentador da atividade já praticada ou no mínimo pretendida.
É assim e não é assim. Das velhas lições recolhidas ao tempo em que ainda me dava ao trabalho de ler no original, claudicando, penalistas germânicos gerados durante o nazismo, lembro-me da definição de crime: “conduta contrária ao são sentimento do povo alemão”. Não significa, tal conceito, que a nação estivesse, por exemplo, pretendendo o extermínio de judeus, mas que o bigodudo Adolf e seus comparsas escolhiam, eles próprios, o conteúdo daquilo que o povo deveria querer. Daí à frente era fácil. A comunidade queria assim e pronto. Estava resolvido. Passava-se à ação. O país era posto à frente do fato consumado. Alguns aderiam por convicção; outros se acovardavam; uns poucos reagiam e eram postos na marginalidade, pois a resistência levava a lugar nenhum.
Na hipótese do julgamento efetuado pelo Supremo Tribunal Federal, foram os juízes convocados a dizer se medidas terrivelmente ditatoriais ofendiam ou não a Constituição. A conduta do Governo, entretanto, já havia sido concretizada no país inteiro. A declaração de inconstitucionalidade disto ou daquilo provocaria incrível turbilhão. As conseqüências eram imprevisíveis. Assim, quem sabe por receio dessa relação de causalidade, o Supremo deixou passar outro comportamento impositivo de Fernando I e Único, rei do Brasil. Houve é claro, defensores ideológicos das cores do Executivo. Não se justifique, entretanto, o voto pró-constitucionalidade com argumento vincado na reação popular positiva. O povo, aqui, não tinha como contrapor-se. É composto por uma imensa maioria de mendigos, dando-se por feliz se consegue o suficiente para o arroz com feijão. A simples ameaça de privação da luz que lhe ilumina a precária favela já o apavora. Vive amedrontado como rato. Obedece, já o disse, antes de ser a hora de obedecer. Já tem o exemplo do vizinho que não conseguiu compor a conta do mês, vendo a eletricidade cortada por um fiscal qualquer, a mamadeira deixada fria e a água infectada por falta de energia. Já viu o hospital comunitário enegrecer de repente, os médicos exaustos, bisturis na mão, procurando lanternas e velas para o término das cirurgias. Exemplos outros há, juízes, mais dramáticos ainda, mas simplesmente demonstrativos de que a população reage bem porque tem medo. Medo do fato consumado. Já aconteceu. Fernando I e Único, rei do Brasil, já praticou ato de império, usando o poder mefítico advindo das malfadadas Medidas Provisórias. Portanto, não se justifique o voto sob o argumento da captação da vontade popular. Entenda-se bem: no estupro a vontade da ofendida é violentada. Cede porque dominada, aviltada, ferida, emudecida pela força do opressor. Não concedeu. Foi derrotada. Não se misturem, eminentes Ministros, estupro e sedução. E não pense Fernando I e Único, rei do Brasil, que a nação lhe concedeu seus favores. O povo apenas sucumbiu à prepotência, por necessidade talvez. Mas como acontece nas novelas, o minotauro virá novamente, e outras vezes, e outras mais, até que o Supremo e o povo hão de precisar dizer não. Aí será tarde demais.
* Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da OAB, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.