Constitucionalmente falando, não existe uma “Polícia” do Senado Federal

Autor: Roberto Wanderley Nogueira (*)

 

Sobre a confusão estabelecida no âmbito do Senado Federal quanto à operação métis, eis que do ponto de vista técnico e visto o assunto em tese não há ressalva de qualquer natureza e a reação supostamente indignada do seu presidente quanto ao episódio não parece ir além de bravata.

Um juiz tem competência, sim, para ordenar diligências investigativas sobre a atuação de qualquer servidor público ou do respectivo funcionamento do espaço público, salvo quanto aqueles dignitários e suas respectivas atuações que privem do assim denominado “foro privilegiado”, caso em que a matéria se desloca, originariamente, a algum tribunal que é fixado pela Constituição como o juiz natural daqueles.

O deslocamento competencial (modificação de competência é o termo técnico-processual) pode ocorrer em qualquer fase das investigações, tanto que se divise esse permeio de autoridade com “foro privilegiado” no objeto das investigações até então levadas a efeito.

Um senador da República, por exemplo, tem “foro privilegiado” realmente e na forma da Constituição será sempre julgado pelo Supremo Tribunal Federal. A relação de competência firmada em razão do “foro privilegiado” (competência em razão da pessoa), portanto, é subjetiva e não objetiva, a dizer: é a pessoa do agente ou servidor público que define a competência especial decorrente do “foro privilegiado”, que é dele, não da repartição na qual um e outro estejam a servir no momento.

Assim sendo, o argumento de que toda ocorrência penal, ou suspeita dela, quando implementada no espaço físico do Senado Federal a competência é sempre do STF é um argumento rigorosamente errado.

O “foro privilegiado”, aliás, constitui uma exceção (muito criticada) à regra geral das competências (medida de jurisdição). Houvesse a prova ou indício de participação de algum senador no objeto investigado, aí sim, a competência teria de ser deslocada. E é o que parece ter divisado o ministro Teori Zavascki, do STF, na abordagem da operação métis que a Polícia Federal executou no recinto da também impropriamente denominada “Polícia” do Senado, apreendendo “maletas” eletrônicas e prendendo temporariamente alguns servidores que estariam envolvidos em escutas clandestinas, ainda que aperfeiçoadas oficialmente por agentes públicos e com equipamento público. Este pormenor, no entanto, é irrelevante, porque o que define a natureza jurídica de um ato é a sua liceidade, nada obstante quem o pratique.

Desse modo, o deslocamento da referida operação para o âmbito competencial do Supremo Tribunal Federal, divisado em razão de algum elemento de implicação de autoridade com “foro privilegiado” não cogitado anteriormente, apenas amplifica o espectro das investigações em foco, multifariamente divulgadas pela imprensa e que eram anteriormente limitadas a servidores públicos do Senado Federal. Cumpre destacar que nem por isso ditas investigações serão cessadas sem causa (apuração de indícios de crime de ação pública). A pesquisa jurídica do crime, pois, deve continuar, porque assim determina a Constituição e as leis, e todo magistrado faz um juramento de observá-las e fazê-las cumprir incondicionalmente.

Ainda sobre a crítica que se lança ao instituto do “foro privilegiado”, deve-se anotar que a Constituição que promove as igualdades, sobretudo por dizer-se democrática, não pode acomodar um instituto como o do denominado “foro privilegiado” que, conforme a nomenclatura o afirma, traduz um privilégio que não se justifica no regime democrático supostamente inaugurado pela Constituição Federal de 1988. É também para abolir o “foro privilegiado” a todo e qualquer dignitário que um regime realmente democrático se eleva. Assim sendo, uma vez que algum dignitário tenha infracionado, que vá às instâncias ordinárias como qualquer cidadão se submeteria em condições semelhantes.

Outro ponto relevante a considerar é o formato de eleição dos membros dos Tribunais Superiores no país, especialmente do STF. A falta de critério profissional e objetivo na composição dos seus quadros deixa um rastro de suspeitas tenebrosas no ambiente democrático, justamente porque apenas semiparticipativo. Nesses casos, os bastidores da política quase sempre acabam falando mais alto e eficazmente do que os sistemas legais que preconizam a responsabilidade dos “iguais”, situação que propicia de quanto em vez o advento de “salvadores da pátria”. Os subsistemas alopoiéticos são os cânceres primários das democracias contemporâneas que precisam ser extirpados. Se é para participar, tem de incluir a todos e fazer transparecer a tudo sem exceção de quem quer que seja ou de fato algum, nada obstante o grito da resistência sem causa, forma e/ou figura jurídicas daqueles que sentem medo de perder privilégios corporativos. Simples assim!

Outrossim, do ponto de vista da Ordem Constitucional, não existe uma “Polícia” do Senado Federal (artigo 144, da Carta). Enquanto organismo de Estado, trata-se de uma ficção. Em verdade, é um setor do Senado Federal que é encarregado regimentalmente de exercitar a guarda interna.

A polícia-função que o Senado exercita, no entanto, sobre as suas bases territoriais é a mesma que os juízes exercem no recinto das audiências que presidem. A função de polícia e não a Polícia (encarregada da segurança pública) que se exerce tanto no Legislativo quanto no Judiciário é atípica, porque a organização policial no país é constitucionalmente uma instituição exclusiva do Poder Executivo (civil ou militar). Tampouco se pode confundir segurança pública, enquanto categoria constitucional, com segurança de recintos públicos, caso dos serviços de guarda e conservação de bens e serviços das repartições públicas em geral. Esse reducionismo é constitucionalmente arbitrário e pode servir de pano de fundo para a existência de Estados paralelos pelo advento de “milícias” setoriais.

A nomenclatura empregada por decisões internas do Senado da República para designar uma “polícia” para chamar de sua, com toda pompa e circunstância, é rigorosamente inconstitucional. Essa mencionada “polícia” do Senado, embora constante da estrutura funcional da Câmara Alta, mais não se trata do que aquela guarda privada que, mediante terceirização dos serviços, as repartições públicas costumam contratar a grandes empresas de segurança armada.

A “polícia” do Senado, portanto, não é a polícia que cuida da segurança pública como dever do Estado e direito de todos, embora exerça poderes de polícia (função) relacionados com a manutenção da ordem dos trabalhos legislativos e tão somente isso, assim como a polícia que os juízes exercitam atipicamente também é no sentido da manutenção da ordem nos recintos dos tribunais, objetivando o seu regular funcionamento. Nada além disso!

Por fim, mas não menos importante, a função de polícia dos auditórios legislativos sempre pode ser terceirizada, porque não corresponde a uma função essencial do Estado. A atividade policial que integra as atribuições de competência funcional específica das autoridades policiais e seus agentes, nos termos e para os fins do artigo 144, da Constituição Federal, não pode ser terceirizada, pois se trata de função típica do Estado, motivo pelo qual não é jamais delegável.

Insiste-se: constitucionalmente falando, não existe uma “polícia” do Senado Federal. Trata-se apenas de uma ficção regimental sem respaldo na Carta Política da Nação brasileira.

Desse modo, um tal registro é nulo de pleno Direito e só produz efeitos como manifestação de ordem prática, mas sem chancela legal. Traduz um cenário nitidamente autoritário.

Que o Brasil encontre a paz e que os malfeitos de tantos sejam exemplarmente reparados pelo bem das futuras gerações de brasileiros e pela honra da nação!

 

 

 

 

Autor: Roberto Wanderley Nogueira é juiz federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).


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