Constituções não podem controlar ideologia

Por Elpídio Donizetti

Vivemos em uma sociedade complexa, de indivíduos em construção. Somos seres inacabados e, em uma vã procura (e talvez por isso bela), nos arremessamos adiante, trilhando caminhos guiados por razão e emoção, sob a ilusão de encontrarmos, em algum ponto dessa jornada, completude.

O completar-se a si, no entanto, não está no fim da estrada ou em algum outro ponto intermediário, mas no próprio caminhar. Cada passo avante constitui o reflexo de uma escolha feita, de uma decisão tomada, da exclusão de outras possibilidades. Mas, por serem muitas, as possibilidades apontam em todas as direções, em incontáveis ramificações, de modo que o homem, esse estranho ímpar, nas palavras de Drummond, acha-se em um incessante processo de devir histórico, em que existem variados projetos em construção – diversos em relação aos outros sujeitos e mutáveis em relação ao indivíduo em si. A isso denomina-se liberdade: saber-se potência e, pelas próprias escolhas, seguir avante, (re)construindo-se à procura de plenitude.

A liberdade, como se intui, não se contenta com meras declarações de potencialidade, existentes apenas em hipótese, e, por isso, inalcançáveis. A liberdade, pois, reclama concretude e, mais do que isso, somente viceja onde existe pluralismo. Deve-se preferir ser uma metamorfose ambulante do que se apegar às velhas opiniões formadas sobre tudo, impedindo-se o surgimento do novo. Se se fecham os canais de manifestação, reduz-se a esfera de liberdade, porque não se permite espaço para a diversidade, donde brotam outros caminhos.

Nesse contexto, a recente decisão do STF, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187, que concedeu interpretação conforme do artigo 287 do Código Penal, excluindo exegeses que ensejassem a criminalização de manifestações pela legalização das drogas, deve ser encarada como manifesto pela liberdade: liberdade de expressão e liberdade de reunião. Marchar pela descriminalização do uso de drogas, ou por qualquer outra idéia, não pode, sob qualquer justificativa, constituir conduta vedada pelo Estado, sob pena de planificação, de perda do que nos faz humanos: a existência de pluralismo.

O termo pluralismo encerra a idéia de multiplicidade, daquilo que não é – e não pode ser – padronizado; o pluralismo abraça e reclama a diversidade; o pluralismo atrela-se à liberdade. Somente onde viceja o pluralismo também floresce e se cultiva o valor dignidade da pessoa humana. Em uma sociedade não plural (e, por conseguinte, não livre) inexiste espaço para se afirmar a dignidade da pessoa humana como vetor máximo a ser concretizado e tutelado pelo Estado.

Na visão de Hannah Arendt, o pluralismo corresponde, como inerência, à própria condição humana: “a ação, a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a condition per quam – de toda a vida política. (…) A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”. (ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Trad.: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15-16).

O pluralismo deve ser entendido como a ausência de uma visão da sociedade dogmaticamente definida por um grupo ou por uma pessoa e imposta coercitivamente a partir do centro do Estado. Significa também, “el pluralismo, la existencia de una diversidad de grupos y de sociedades intermedias, estilos de vida distintos, tradiciones diversas que imposibilitan la unanimidad y la uniformidad” (BARCO, Roberto Del. La democracia pluralista.). Trata-se, em suma, do fundamento de sociedades autenticamente democráticas, porque o pluralismo consiste, em essência, na virtude do respeito na convivência entre os contrários (STF, ADPF n. 130, Rel. Carlos Britto).

O pluralismo, porquanto consagrador de uma sociedade diversificada e aberta, fundada no respeito aos diferentes estilos de vida, não autoriza o surgimento de mecanismos de controle ideológico, porque isso, de imediato, lhe afronta em essência. Por consequência, afrontado o pluralismo, também resta vulnerada a própria idéia de democracia. Há que se ter, pois, o pluralismo como valor máximo em uma sociedade democrática.

Na democracia, ao contrário do que ocorre nos regimes totalitários, o pluralismo é sempre ilimitado, porque se substitui um regime de partido único por uma multiplicidade partidária, cuja vida política se fundamenta numa cultura de tolerância e moderação. Diz-se que se “a grande virtude da democracia não estiver em permitir a liberdade de expressão e de associação, incluindo às ideologias que se assumem como opostas à própria democracia, então a democracia contém germes totalitários, encerrando em si uma contradição profunda: ela procura garantir os seus valores através de derrogações não democráticas ao próprio princípio democrático” (OTERO, Paulo. A Democracia Totalitária. Cascais: Editora Principia, 2000, p. 83).

Democracia e pluralismo, pois, são termos que possuem estreita correlação, podendo-se afirmar até mesmo que o segundo constitui inerência do primeiro. Desse modo, todo ato ou medida conducente à redução do pluralismo constitui afirmação de ideais totalitários, sendo o inverso também verdadeiro. Uma sociedade plural não pode ser totalitária, mas uma sociedade democrática, que, por vezes, tolhe o pluralismo, em suposta defesa do valor democraticidade, aproxima-se, com clareza, do totalitarismo.

No contexto da marcha da maconha, ainda que a descriminalização do uso de drogas possa ter efeitos socialmente indesejáveis, a defesa dessa idéia não pode ser obstada pelo Estado. Se a virtude da democracia está na abertura da participação política, por que temer a possibilidade de surgimento de vozes contrárias às então vigentes? Seria a criminalização das drogas opção tão frágil ao ponto de, tão somente pela possibilidade de ser contestada por meio de manifestações populares, sucumbir perante a outra vertente – a descriminalização? Em verdade, não seriam os modelos não democráticos o solo fértil para o surgimento de controle ideológico?

A resposta a esses questionamentos somente pode conduzir a uma conclusão: constituições democráticas, assentadas sobre o valor pluralismo não podem, sobre nenhum pretexto, exercer, legitimamente, controle ideológico. De outro modo, não se poderia utilizar os predicados democrático e plural a essa ordem normativa.

Que a liberação da “marcha da maconha”, enfim, constitua claro aviso de que, independentemente da bandeira levantada, se caminha pela liberdade.

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