Autor: Rômulo Moreira (*)
O Conselho Nacional do Ministério Público, por determinação do seu corregedor nacional, instaurou o Processo Administrativo Disciplinar 1.00283/2016-73 contra mim. No último dia 21 de junho, o Plenário decidiu, por unanimidade, aplicar-me a pena de advertência.
O relator do processo administrativo disciplinar, em seu voto, disse que o Conselho Nacional do Ministério Público não possui competência para censurar, conceder licença ou exercer o controle prévio quanto a quaisquer manifestações a serem feitas por membros do Ministério Público. Contudo, “poderia proceder à apuração na esfera disciplinar, inclusive de ofício, nos casos em que a manifestação importar em violação às vedações previstas na Constituição Federal e aos deveres funcionais estabelecidos nas respectivas leis orgânicas”.
Segundo ele, “ao utilizar expressões inadequadas referindo-se à sociedade, o acusado deixou de zelar pelo prestígio de suas funções, realizando conduta inaceitável para um membro do Ministério Público e incompatível com o exercício do cargo por ele titularizado”, concluindo “que o contexto fático-probatório evidencia que a conduta do processado importou em violação dos deveres legais de manter, pública e particularmente, conduta ilibada e compatível com o exercício do cargo, de zelar pela dignidade da Justiça e pelo prestígio de suas funções, bem como de tratar com urbanidade os magistrados, os advogados, as partes, as testemunhas, os funcionários e os auxiliares da Justiça”.
Por causa disso, o conselheiro votou pela aplicação da pena de advertência, finalizando que deixou “de analisar no presente feito as possíveis manifestações com cunho político-partidário exaradas pelo processado, haja vista não terem sido objeto da Portaria de Instauração do presente PAD”. Por isso, cópia integral dos autos foi encaminhada à Corregedoria Nacional do Ministério Público, para que fosse apurada a eventual prática de atividade de caráter político-partidário. Ou seja, ainda vem coisa por aí… Atividade político-partidária (rs).
Obviamente que a punição já era esperada, razão pela qual não contratei nenhum advogado para me defender.
Ora, já na decisão que converteu a reclamação administrativa disciplinar (inicialmente aberta) em processo administrativo disciplinar, instaurando a Portaria CNMP 75, de 4 de maio de 2016, subscrita por Cláudio Henrique Portela do Rego, corregedor nacional, afirmou-se que o processado referiu-se ao juiz federal Sergio Moro como sendo um “analfabeto”. Ocorre que, contrariamente, conforme comprova-se do áudio da entrevista, foi dito por mim o seguinte:
“Este pessoal parece que não estuda história. Do ponto de vista histórico, eles são uns analfabetos. A coisa está muito se repetindo. (…) Houve a história da prisão de Juscelino Kubitschek e também a condução coercitiva e tal, também ouvido no aeroporto. Em 64 foi a velha história de combate a corrupção e tal. Os militares hoje já estão em prontidão. Os militares, no dia da condução coercitiva, já se dispuseram a … já ligaram inclusive para alguns governadores se colocando à disposição e tal. Rapaz, olhe, nós estamos brincando com fogo e você tem que ter cuidado. Se esses militares aí entrarem em jogo, você vai ser o primeiro a sobrar, porque programa seu não vai ter essa liberdade”.
Em nenhum instante da decisão fez-se qualquer afirmação de que o juiz federal Sergio Moro é “analfabeto”. Analfabeto é “esse pessoal” que não conhece a História do Brasil, que não sabe como se deu, por exemplo, a deposição dos governos legitimamente eleitos de Getúlio Vargas e de João Goulart. Como ocorreram, mais recentemente, os chamados golpes civis em nosso continente. Nesse ponto, a decisão deturpa a entrevista, o que é um fato gravíssimo, pois a descontextualiza.
Na mesma decisão, consta que o processado “tachou de covarde o Poder Judiciário”. Ocorre que em nenhum momento da entrevista foi utilizada a palavra “covarde”, nem a expressão “Poder Judiciário”. Igualmente, basta ouvir o áudio. O que foi dito que é que faltava “coragem suficiente” aos tribunais para reconhecer as nulidades praticadas pelo juiz Sergio Moro. Não ter “coragem suficiente” e ser “covarde” são coisas diferentes. Aqui, a portaria, ou melhor, quem a subscreveu, cometeu um erro muito grave. Ou, talvez, como diria Freud, um lapso verbal (versprechen), “que ocorre quando alguém, pretendendo dizer uma palavra, diz outra em seu lugar, ou quando isso lhe acontece ao escrever, podendo a pessoa notar ou não o equívoco” (Obras Completas, Volume 13, Conferências Introdutórias à Psicanálise – 1916/1917 – São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 31).
Observa-se que no artigo 130-A, parágrafo 2º, da Constituição Federal, ainda que se faça uma interpretação de natureza persecutória e de caráter pessoal (ad terrorem), não se encontra nenhum dispositivo que dê ao Conselho Nacional do Ministério Público a atribuição para ser órgão censor em relação ao direito de livre manifestação do pensamento de membro do Ministério Público, bem como de sua liberdade de consciência e de livre expressão da sua atividade intelectual. Se é certo que todo direito individual não é absoluto, igualmente é induvidoso somente caber ao Poder Judiciário dizê-lo, quando instado, não ao Conselho Nacional do Ministério Público, responsável, tão somente, pelo controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros. Se o direito de crítica do processado foi “utilizado de maneira irresponsável e desrespeitosa com a utilização de expressões ofensivas e não compatíveis com a natureza jurídica do debate” (como consta da decisão do corregedor), decididamente, cabe aos supostos ofendidos tomarem as providências jurídicas pertinentes, mesmo porque o que é “irresponsável” e “desrespeitoso” para o corregedor nacional do Ministério Público pode ser rigorosamente irrelevante para muitos outros.
Assim, a abertura do processo administrativo disciplinar e a punição a mim aplicada tendo por base a fala que o processado emitiu fora do exercício de suas funções, sem qualquer provocação dos supostos ofendidos e perante órgão que não detém competência para proferir uma decisão judicial, torna-se um “exigir do membro do Ministério Público postura recatada ou puritana, reprovando-lhe pelo uso de expressões ofensivas ou de baixo calão” (termos utilizados pelo corregedor), estabelecendo, indevidamente, um limite à liberdade de expressão sob a justificativa de que aos membros do Ministério Público somente “é lícito manifestar-se com liberdade” se o fizer “de acordo com a educação e polidez” que seu órgão de cúpula “entender adequadas” (idem).
Na decisão que precedeu a portaria, constou ainda que o processado foi “introduzido (sic) na programação como procurador de Justiça”. Ora, se assim o processado foi “introduzido” pelo entrevistador, não foi a seu pedido. Deve o radialista ser questionado por que o fez. Ao contrário do que afirmado, o processado não se “portou” como procurador de Justiça. Ao se referir, uma única vez, “como sendo o Ministério Público a minha instituição”, não disse nada que não fosse verdadeiro. Ademais, quanto a não ter “acrescentado qualquer informação acerca de sua qualificação acadêmica”, tal esclarecimento não seria necessário, pois o processado há ininterruptos 16 anos exerce a docência, tendo mais de dez obras jurídicas publicadas, sendo palestrante em diversos eventos na Bahia e no Brasil. Aqui, frise-se, não se trata de jactância, mas do pleno exercício de defesa contra uma absurda acusação. O processado já concedeu inúmeras entrevistas em vários veículos de comunicação, inclusive na Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal, quase sempre na qualidade de docente, sem que seu currículo acadêmico tenha sido previamente anunciado.
Afirmou-se, outrossim, que foram utilizadas na entrevista expressões jocosas. Nesse ponto, seria necessário, para legitimar a abertura do processo administrativo disciplinar, saber em qual significado foi utilizado aquele significante, pois, em nosso vernáculo, a palavra jocoso tem variados sentidos: “que provoca o riso; chistoso, faceto, alegre” (conferir o Dicionário Aurélio). O processado, por exemplo, pode ter utilizado o último sentido (a presunção é sempre de inocência). Aliás, as expressões jocosas dependem muito mais do ouvinte que do falante para o seu reconhecimento. Note-se que é comum o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, utilizar-se de expressões que poderiam ser interpretadas como jocosas (no primeiro sentido ou no último), quando se refere a integrantes do Partido dos Trabalhadores e do governo da presidente Dilma e nem por isso sofreu qualquer reprimenda. Por que o processado não poderia fazê-lo?
Diga-se o mesmo em relação à menção de ter havido “excesso de linguagem” durante a entrevista. O que é excesso? Qual é a medida desse excesso? No dia 5 de agosto de 2015, durante um pronunciamento na tribuna do Senado Federal, o senador Fernando Collor de Melo xingou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de “filho…”, extrapolando, desavergonhadamente, o âmbito da imunidade parlamentar, mas nem por isso sofreu o senador da República algum tipo de admoestação judicial, seja no âmbito cível, seja no âmbito criminal, e menos ainda sua fala foi objeto de desagravo desse Conselho Nacional do Ministério Público, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) ou da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR).
Ao contrário do que se afirma na decisão, “repercute negativamente na imagem da instituição”, instaurar processo administrativo disciplinar contra um membro do Ministério Público que há 25 anos cumpre rigorosamente seus deveres funcionais, e, ao final, impor-lhe uma pena de advertência, como se estivéssemos, ainda, sob os obscuros, sombrios e tenebrosos anos da ditadura militar.
A entrevista foi concedida como professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador (Unifacs), há quase 17 anos, autor de diversas obras jurídicas e palestrante em diversos eventos locais e nacionais. A entrevista não foi dada como representante do Ministério Público, mesmo porque o entendimento do entrevistado acerca do assunto debatido não coincide com o do Ministério Público brasileiro, conforme notas já publicadas pela Conamp e pela ANPR.
Integra os quadros do Ministério Público da Bahia há 25 anos, oito deles como procurador de Justiça, sempre promovido na carreira por merecimento e tendo ocupado por mais de dez anos funções comissionadas, inclusive a de procurador-geral de Justiça adjunto para assuntos jurídicos durante quatro anos. Neste período de 25 anos, o processado jamais respondeu a qualquer sindicância, reclamação ou processo administrativo. O seu trabalho está rigorosamente em dia, como sempre esteve, aliás.
Dispõe a Constituição Federal que é livre a manifestação do pensamento, é inviolável a liberdade de consciência, bem como é livre a expressão da atividade intelectual, independentemente de censura ou licença (artigo 5º., IV, VI e IX). Além disso, deve-se também atentar para o Seção I do Capítulo III do Título VIII da Constituição Federal, que trata “Da Educação”. Ali está escrito, no artigo 206, que o ensino será ministrado com base, dentre outros princípios, na liberdade de ensinar e de divulgar o pensamento e o saber, bem como no pluralismo de ideias. A entrevista foi dada pelo processado como professor de Direito Processual Penal. Tudo o que foi dito decorreu da sua liberdade de cátedra, garantida constitucionalmente. Leia-se, a respeito, a doutrina.
Ademais, é importante atentar que o vocábulo “merda” indica, também, segundo o Dicionário Aurélio, coisa insignificante ou irritante, sem valor ou sem préstimo, bem como indica desprezo, repulsão ou desagrado. Foi exatamente neste sentido que a expressão foi utilizada, para mostrar que os membros do Ministério Público e os do Poder Judiciário não podem levar em consideração o clamor da opinião pública no momento de proferir as suas manifestações e decisões, e o emprego dessa expressão ocorreu quando o processado foi indagado pelo entrevistador sobre o que achava do fato de que o entendimento do entrevistado era contrário a 90% da opinião pública. O processado não ofendeu a honra de ninguém.
Reitera o processado que não imputou ao juiz federal Sergio Moro o adjetivo de “analfabeto”, e o fato de ter dito que o referido magistrado é “midiático, que gosta muito de mídia, de aparecer”, encontra-se dentro daqueles direitos acima mencionados e garantidos pela Constituição Federal. Ademais, não esqueçamos que o juiz Sergio Moro já se dispôs a ir à Rede Globo receber prêmio, deu inúmeras entrevistas à mesma emissora (coincidentemente), e não o fez na condição de professor, posa reiteradamente para fotografias, em Facebook etc. É um herói nacional! Muito diferente, por exemplo, da conduta discreta do ministro Teori Zavascki e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, também responsáveis pela investigação dos mesmos fatos. Há que se recordar que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5º, IV e IX, da CF).
Em relação ao dever do membro do Ministério Público de tratar com urbanidade magistrados, advogados etc., previsto no artigo 145, IV, da Lei Complementar Estadual 11/96, evidentemente, quis a lei de regência referir-se às relações intraprocessuais, por óbvio. Relações extraprocessuais dizem respeito às normas penais e de Direito Civil. Portanto, considerações desfavoráveis dirigidas a um magistrado ou a posições adotadas por tribunais (se suficientemente corajosas ou não — e não covardes, como disse o corregedor), não podem ensejar a adequação típica desejada pelo corregedor nacional do Ministério Público. Tratando-se de normas de natureza sancionatória, a interpretação deve ser restritiva, como também ensina a doutrina.
Aliás, o próprio Conselho Nacional do Ministério Público já deixou assentado, no Processo Administrativo Disciplinar 0.00.000.00074/2011-15, tendo como relator o conselheiro Adilson Gurgel (documento anexo), o seguinte:
“EXPRESSÕES UTILIZADAS POR PROMOTOR DE JUSTIÇA EM ENTREVISTA JORNALÍSTICA TIDAS POR VIOLADORAS DO DEVER LEGAL DE ZELAR PELO PRESTÍGIO DA JUSTIÇA E PELO RESPEITO AOS MAGISTRADOS. INOCORRÊNCIA. IMUNIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. IMPROCEDÊNCIA DA PERSECUÇÃO DISCIPLINAR”.
A propósito, trazemos a lição de Lenio Streck[1] e de Janriê Rodrigues Reck[2]: “As palavras da lei somente adquirem significado a partir de uma teorização, que já sempre ocorre em face de um mundo concreto. A teoria é que é a condição de possibilidade desse “dar sentido”. Esse sentido vem de fora. Não há um “sentido evidente” (ou imanente). As palavras das leis não contém um “sentido em si”. Um exemplo — cito de memória — de Paulo Barros de Carvalho ajuda para compreender melhor essa questão: se uma lei diz que três pessoas disputarão uma cadeira no senado da República, nem de longe se pode pensar que três pessoas disputarão o móvel (cadeira) do Senado. Não fosse assim e o marceneiro poderia ser jurista, muito embora o jurista possa ser marceneiro! Procurando ser mais claro: se a interpretação/aplicação — porque interpretar é aplicar — fosse uma “questão de sintaxe” (análise sintática), um bom linguista ou professor de português seria o melhor jurista. Seria o império dos “conceitos” sem coisas. Só que as coisas (fatos, textos, fenômenos em geral) não existem sem conceitos (ou nomes).
Lembro, aqui, da pequena Macondo de Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão): ali, as coisas eram tão recentes, tão novas, que, para que nos dirigíssemos a elas, tínhamos que apontar com o dedo, porque elas ainda não tinham nome… Sim, como os filhos de Fabiano, de Vidas Secas. “Deslumbradas, as crianças se perguntavam acerca da complexidade do mundo. Será todas aquelas coisas tinham nome?” “Veja-se, por exemplo, a palavra ‘dia’. Ela faz sentido não por ter uma essência, mas pelo seu jogo de contraste com noite, com mês, com ano etc. Entretanto, só o jogo de oposições e semelhanças não resolve a problemática do signo, uma vez que ele tem de estar inserido em um sintagma (sucessão de signos), como por exemplo, uma norma. E mesmo assim isso não resolve: a Constituição, quando fala dia, fala sempre no mesmo sentido? Não será em um sentido (24 horas) quando fala do prazo de apreciação de uma medida provisória e outro quando fala da busca domiciliar? E, neste caso, o que determina que dia será das 6 às 18 ou uma certa quantidade de luz solar?”.
E para concluir: “Na verdade a avalanche de pitos, reprimendas e agressões só me estimulam a combatividade” (Caetano Veloso — jornal A Tarde, 13/10/2013, p. B9). “Os idealistas são tratados como cupins nas instituições: todos tentam matá-los, com veneno, mas eles não morrem, ao contrário, se organizam, olham um para a cara do outro e dizem: vamos roer! Um dia o todo poderoso senta na sua cadeira e cai porque a pata da cadeira está roída” (Calmon de Passos – Congresso de Advogados, em 1992, em Porto Alegre).
Autor: Rômulo Moreira é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.