Contribuição previdenciária dos inativos e cláusulas pétreas

O debate em torno desta matéria extrapolou o âmbito jurídico para adentrar nos campos social e financeiro, de sorte que, sua análise serena não deve limitar-se aos aspectos constitucionais.

A contribuição social dos aposentados e pensionistas veio à luz com o advento da Lei nº 9.783/99, embutida no pacote fiscal resultante das negociações com o FMI. O projeto de lei respectivo sofreu duras resistências na Câmara dos Deputados, onde os anteriores projetos haviam sido rejeitados pela Comissão de Justiça e Constituição. Essa lei instituiu alíquotas progressivas de 11% até 25% aplicáveis, também, aos servidores da ativa.

Reconhecida a inconstitucionalidade dessa exação, em sede de liminar em ação direta de inconstitucionalidade, quer por ausência de base constitucional em relação aos aposentados e pensionistas, quer porque a progressividade é limitada a impostos, desencadeou-se, a partir de setores governamentais, virulentas críticas ao STF. Logo essas críticas, absolutamente infundadas, espalharam-se para a sociedade em geral, com reflexos até no exterior. O primeiro comentário equivocado a respeito da matéria ganhou espaço na mídia, rapidamente, como que impulsionado pelo princípio de Lavoisier. A propagação desse princípio atendeu aos interesses dos especuladores financeiros internacionais, que chegaram a atingir a honra da nossa mais Alta Corte de Justiça.

O STF invalidou a cobrança da contribuição dos aposentados e pensionistas por falta de base constitucional. Absolutamente irrelevante a desnecessária referência feita ao art. 195, II da CF, que imuniza os aposentados e pensionistas da previdência privada. Mas, os críticos fazem questão, por conta dessa referência, de ignorar toda a fundamentação jurídica do r. julgado, desenvolvendo o raciocínio, apenas, do ponto de vista da lógica formal: se a Constituição imunizou apenas os aposentados e pensionistas do setor privado, os dos setor público são contribuintes. Nada mais equivocado em termos de direito constitucional tributário. Se a Carta Política outorgou o poder de tributação, de forma sublimitada, chegando a nominar os contribuintes (às vezes chega fixar até alíquota, como no caso da CPMF) é óbvio e ululante que não era preciso enumerar os que não são contribuintes. Seria o mesmo que exigir que o Código Penal descrevesse, taxativamente, as hipóteses que não configuram crimes. Os princípios da tipicidade tributária e da tipicidade penal dispensam tais providências ociosas que, se adotadas só causariam problemas.

O art. 40 da CF definiu, com solar clareza, quem são os participantes da previdência pública de caráter contributivo, in verbis: Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

Como se vê, somente os servidores públicos titulares de cargos efetivos são contribuintes. Ao servidor público ocupante de cargo em comissão, bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social, nos precisos termos do § 13 do art. 40 da CF. Estes últimos são contribuintes da previdência do setor privado e, quando em inatividade, cessa a cobrança dessa contribuição por força do já citado art. 195, II da CF. O aposentado e pensionista, não sendo titulares de cargo efetivo, não são contribuintes do setor público. Tudo isso está dito nos textos constitucionais referidos com lapidar clareza, dispensando maiores comentários. Daí o judicioso pronunciamento da Cote Suprema, alvo de críticas injustas e infundadas.

Tanto é assim que o governo enviou ao Congresso Nacional o atabalhoado Projeto de Emenda Constitucional prevendo, dupla e expresssamente, a tributação dos aposentados e pensionistas, nos seguintes termos:

Art. 1º – Acrescentam-se os parágrafos 17, 18 e 19 ao art. 40, confere-se nova redação ao parágrafo 2º do art. 42, ao inciso IX do art. 142 e ao parágrafo único do art. 149 da Constituição.

Art. 40 – ………………….

§ 17 – Aplica-se o disposto neste artigo aos aposentados e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos quais é assegurado regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.

§ 18 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição, mediante lei, cobrada de aposentados e pensionistas dos três Poderes, para manutenção do regime de previdência.

§ 19 – Aplica-se o disposto nos arts. 145, parágrafo 1º, e 195, parágrafo 6º, da Constituição à contribuição dos servidores ativos, dos aposentados e pensionistas.

Art. 42 – ……..

§ 2º – Aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios e a seus pensionistas aplica-se o disposto no art. 40, parágrafos 7º, 8º, 17, 18 e 19.

Art. 142 – ………

Inciso IX – aplicam-se aos militares e a seus pensionistas o disposto no art. 40, parágrafos 7º, 8º, 17, 18 e 19.

Art. 149 – ……..

Parágrafo único – Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de assistência social e saúde.

Art. 2º – Enquanto não entrarem em vigor as leis de que tratam o art. 40, parágrafo 18 e o art. 142, inciso IX da Constituição, a contribuição do aposentado e do pensionista dos três Poderes da União, do militar inativo e de seu pensionista, para manutenção do regime de previdência, incidente sobre a totalidade do provento ou da pensão, será igual, respectivamente à dos servidores públicos e à dos militares em atividade.

§ 1º – Enquanto………

§ 2º – A contribuição de que trata este artigo não incidirá sobre a parcela de até R$600,00 (seiscentos reais) do provento ou da pensão.

§ 3º – A contribuição de que trata este artigo terá sua exigibilidade……..

Art. 3º – Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir para os aposentados e pensionistas, inclusive para os militares inativos e seus pensionistas, a mesma alíquota cobrada dos servidores ativos, ou manter as alíquotas atualmente cobradas.

O projeto de emenda, redigido de afogadilho, não obedece aos princípios da técnica legislativa misturando matérias diversificadas; introduz a progressividade da contribuição e a possibilidade de criação de nova contribuição para financiamento do setor de saúde pelos servidores da ativa; finalmente, estabelece a demagógica imunidade tributária sobre proventos ou pensões de até R$600,00 dentro genuino espírito populista para granjear simpatia da população em geral. A introdução de valor fixo na Constituição revela o casuismo e a provisoriedade da medida. Na verdade, essa emenda viola várias das cláusulas pétreas como veremos mais adiante.

Esse projeto, viciado sob todos os aspectos, só se tornou viável em função de campanhas contra o funcionalismo, especificamente, contra os inativos, apresentados aos olhos da opinião pública como os grandes culpados pelo rombo do setor previdenciário. O jornal O Estado de São Paulo, no caderno de economia, do dia 11-7-99, estampou um artigo de conhecido e respeitado comentarista dando conta de que é esperado para este exercício um déficit do sistema previdenciário como um todo, da ordem de 7% do PIB. Afirma que “com apenas 15% dos segurados, o setor público responde por 80% do déficit total do sistema”. Evidente que afirmações da espécie, divulgadas e multiplicadas pela mídia leiga, acabam por despertar simpatias da população em geral em torno do funesto projeto governamental de tributar de novo os aposentados e pensionistas. Seria o mesmo que os contribuintes do plano de previdência aberta ou fechada tivessem que continuar contribuindo após o implemento da condição para fruição do benefício. O artigo não esclarece que esse rombo, em grande parte, se deve à introdução do “regime único”, felizmente já abolido pela Emenda nº 19/98, mas, que no período de sua vigência abriu as portas da previdência pública a milhares de servidores que ingressaram no funcionalismo, sem preencher os requisitos constitucionais do concurso público de títulos e provas. Não informa, outrossim, que o servidor público recebe os proventos integrais na aposentadoria, porque paga 11% sobre o total dos vencimentos. Se ele ganhar, por exemplo, R$5.000,00 reais ele estará pagando R$550,00 mensais (11%). O trabalhador do setor privado, que ganhe os mesmos R$5.000,00 mensais estará pagando não mais de R$120,00 (teto de dez salários mínimos) para se beneficiar tanto da aposentadoria, como da assistência à saúde, além de ter os benefícios do FGTS, de que o servidor público não dispõe. Nem assistência à saúde é abrangida pelo regime previdenciário do setor público. A diferença mensal de R$430,00 (550,00 – 120,00), se aplicada ao longo dos trinta e cinco anos no plano de previdência aberta, certamente, propiciaria ao trabalhador do setor privado uma aposentadoria com os proventos integrais. Finalmente, aquele artigo não esclarece a opinião pública de que o exame das leis orçamentárias da União de 1995 a 1999 revela, por exemplo: a) o crescimento das contribuições sociais, sempre superiores ao total arrecadado pelos seis impostos em vigor; b) o crescimento das despesas de pessoal e das despesas com juros (despesas correntes) e com dívidas (despesas de capital); c) a vertiginosa queda de percentual de verbas destinadas ao Ministério da Previdência e Assistência Social em relação ao total das receitas etc. (Esses dados podem ser conferidos no endereço: Erro! A origem da referência não foi encontrada.. Devem ser levados em conta, também, os desvios de verbas previdenciárias, bem como, os diversos pagamentos de benefícios milionários e ilegais que, evidentemente, não constam das leis orçamentárias. Quem inventou o “regime único” para premiar os milhares de servidores públicos que ingressaram pela porta dos fundos, quem não cumpre as leis vigentes ou não faz cumpri-las faltando ao dever de ofício, deixando de reprimir a retenção ilegal de verbas pertencentes à Seguridade Social, bem como, a prática de inúmeros atos ilícitos no setor previdenciário não pode insuflar a opinião pública para obter o apoio da mídia na aprovação do projeto que sabe ser, antes de mais nada, ilegítimo.

Feitas essas considerações examinemos o projeto de emenda que, se aprovada, poderá resultar em novo pronunciamento de inconstitucionalidade pela Corte Suprema.

O § 17 do art. 40 assegurou aos aposentados e pensionistas o regime de previdência de caráter contributivo como se já não fossem beneficiários em troca das contribuições pagas na atividade. Se a contribuição social é tributo vinculado à atuação estatal, diferindo do imposto, consoante doutrina mansa e pacífica, faltou a definição do benefício a ser auferido pelos aposentados e pensionistas. À nova contribuição deve corresponder, obviamente, novo benefício. Na verdade, esse confuso dispositivo assegurou aos aposentados e pensionistas tão só o direito de ser tributado inovando os princípios constitucionais tributários. Explicitando esse direito de ser tributado, o parágrafo seguinte confere poder impositivo às entidades políticas componentes da Federação Brasileira. O parágrafo 19, por sua vez, em resposta à decisáo da Corte Suprema, introduz a progressividade dessa contribuição, que poderá atingir níveis confiscatórios se considerada a carga tributária geral. Por derradeiro, mediante alteração sub-reptícia do parágrafo único do art. 149 da Constituição permite que o legislador ordinário dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios instituam contribuição social de seus servidores para custeio do sistema de saúde, sem prejuízo da contribuição para custeio do sistema de previdência, prevista em outro dispositivo.

Outrossim, essa emenda fere as cláusulas pétreas. Dispõe o § 4º do art. 60 da CF que não pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

O importante princípio federativo da separação dos Poderes, estatuído no art. 2º da Carta Mgna configura cláusula pétrea, imodificável por vias de emendas. Emendar não é o mesmo que constituir. O poder de emendar é limitado, é subalterno ao poder de constituir. Este último, somente uma constituinte originária o detém. Se o Executivo, com maioria no Congresso Nacional, pudesse mudar a Constituição sempre que não concordar com a interpretação dada pela Corte Suprema, no exercício de sua atribuição constitucional, como no caso presente, rompido estaria o princípio da independência e harmonia dos Poderes. Não se pode ajustar a decisão daquela Corte aos planos de ação governamental por mais importante que seja esse plano para o desenvolvimento do País, o que, no mínimo, é duvidoso. Ao contrário, o plano é que deve ajustar-se aos limites constitucionais, respeitando e acatando a decisão do STF que é o intérprete máximo da Constituição, por decisão soberana do povo reunido em Assembléia Nacional Constituinte. Essa emenda casuística frustra o pronunciamento da Corte Suprema. Tem o propósito nítido de fazer, por vias oblíquas, aquilo que a Constituição proibe diretamente, ou seja, não se submeter à decisão do Supremo Tribunal Federal. Na prática corresponde a total insubmissão dos atos governamentais à apreciação do Poder Judiciário.

Essa afronta ao princípio da separação dos Poderes fere igualmente o princípio da segurança inserido no art. 5º da Constituição, que se constitui em uma das garantias fundamentais do cidadão e, por conseguinte, insuprimível por via de emenda. De fato, descabe falar em Estado Democrático de Direito, como prescrito no art. 1º da Carta Política, sem que haja um sistema permanente de segurança jurídica aos membros da sociedade, os quais, não podem ficar a mercê de repentinas alterações da ordem jurídica, ditadas por idiossincrasias reinantes. Uma das formas de preservar permanentemente a segurança jurídica do cidadão é exatamente através da proibição constitucional de a lei prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI da CF). Logo, sem sentido algum a posição doutrinária, que pretende circunscrever a questão do direito adquirido ao campo abstrato, sem possibilidade de efetiva fruição pelo cidadão, destinatário do preceito constitucional. Esse direito fundamental está regulado pelo § 2º do art. 6º da Lei e Introdução ao Código Civil nos seguintes termos:

§ 2º – Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Verifica-se, pois, que o direito adquirido não se restringe aos fatos consumados. Em outras palavras, não só os atuais aposentados, como também os que já têm condições para se aposentar, assim como, os que já ingressaram no funcionalismo público e, portanto, no sistema previdenciário, antes da emenda estão a salvo dessa contribuição social. A Corte Suprema de há muito afastou a doutrina que restrignia o conceito de direito adquirido apenas aos fatos consumados, bem como, aquela que emprestava às leis de direito público efeito imediato, incompatível com o princípio do art. 5º, XXXVI da CF. De fato, na Adin nº 493-0-DF, Tribunal Pleno, de que foi Relator o Min. Moreira Alves (Lex JSTF, 168, p. 70) ficou assentada a tese de que haverá: a) retroatividade máxima, também, denominada restitutiva, quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados; b) retroatividade média, quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico, verificados antes dela; c) retroatividade mínima, também, conhecida como temperada ou mitigada, quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores, produzidos após a data em que ela entra em vigor.

Indubitável, pois, que essa emenda, ao conferir retroatividade em grau máximo, em relação aos aposentados e pensionistas é de uma inconstitucionalidade gritante. Praticamente restitui o aposentado ao statu quo ante que passa a contribuir novamente para o sistema previdenciário. Só faltou sua reversão ao serviço público.

Dessa forma, ainda que a emenda trouxesse um novo benefício aos aposentados e pensionistas em contrapartida à nova contribuição social, esta seria inconstitucional.

*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)

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