Márcio Saturnino de Oliveira
Servidor do TRE/AC
Aluno do Curso de Direito – UFAC
Numa sociedade, o bem-estar é mantido tendo em vista a observância de alguns fatores de ordem interpessoal, vale dizer, assegurando o convívio dos diversos indivíduos que a compõem. Assegura-se o convívio na medida em que se dá a cada um, ou mesmo a cada classe dessa sociedade, condições iguais de subsistência.
O contrato social convencionado pelos homens e que deu início à sociedade foi um marco para a história da humanidade. Foi a partir desse momento histórico que se fez sentir uma elevada disparidade entre as classes sociais. O surgimento da propriedade também agravou sobremaneira essa diferença. Dizia Rousseau que o aparecimento da propriedade foi maléfico, pois instigou nos homens a ganância, a inveja, a luxúria e, por conseguinte, a guerra. Para esse filósofo, o homem no seu estado natural era pacífico e a propriedade é que veio corroer o seu ser.
O fato é que, com o surgimento de toda essa desigualdade social, fez-se necessário estruturar e organizar toda a sociedade para que fosse mantida a normalidade e a paz. As revoltas das classes menos abastadas eram inúmeras e a disparidade entre elas e as classes superiores era gritante. Para contornar essa situação, foi que se criou um sistema jurídico que ordenava toda a vida em comunidade. Surgiu a lei, como ato geral e abstrato, para controlar a conduta de cada indivíduo.
Surgiu ainda um documento político que ordenava toda a vida estatal: a Constituição, cuja meta é regular a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias1. Esse documento se sobrepõe a todas as demais legislações e está situado no pico de uma pirâmide hierárquica, onde abaixo dela encontram-se de leis ordinárias, leis complementares e decretos a medidas provisórias. Toda essa legislação tem que estar de acordo com a norma maior, que é justamente a Constituição.
Sendo a lei fundamental, que regula o direito positivo de um Estado, deve ela estar protegida por uma série de medidas, para assegurar a sua eficácia e eficiência. Apesar dessa precaução em torno de seus dispositivos, ela é um documento que se sustenta por si mesma. Fala-se em supremacia. Esse sistema de defesa constitucional é um meio de prevenir os eventuais atos e omissões contrários aos seus ditames, uma vez que se presume que, estando a Constituição num plano hierárquico superior às outras leis, não haverá tal desobediência.
Embora seja a Constituição dotada de supremacia, certo é que não deve existir documento político imutável sob pena de se suceder o próprio retrocesso da sociedade, já que, sendo imodificável, torna-se insensível às necessidades dos cidadãos, fica alheia às mutações que a vida sofre. Tornando-se, por assim dizer, defasada e, por isso, não se pode dizer que há uma Constituição eficiente – entendendo eficiência como o efeito capaz de atingir a finalidade máxima, a saber, o bem-estar social, com a satisfação de todos quantos necessitem.
Ao contrário disso, deve estar a Constituição sempre atenta à evolução da humanidade, transformando-se concomitantemente com as novas mudanças, porque é ela, antes de mais nada, documento histórico, portanto, devendo absorver as mutações sociais, culturais, políticas e econômicas. Assim ocorrendo, não se prejudicará a sociedade, eis que as pessoas terão suas novas necessidades atendidas pela Constituição – modificada para se adaptar a essas novas necessidades.
Há que se ter em mente que, em prejuízo do que muitos defendem, a Constituição deve, sim, ser modificada, mas nos termos já expostos. Não deve, doutro modo, sob pretexto de defender a sua soberania, afirmar que ela deve permanecer imutável, ficando a primeira vontade – do constituinte originário – intocável. Não há que se falar em inconstitucionalidade no caso das modificações adotadas pela Constituição, em face das necessidades histórico-sociais. Essas são mudanças necessárias e pressupostos da própria eficiência. Se isso não ocorre, a Carta Política perde a própria razão de ser e se torna anacrônica, na medida em que estará regulando um ordenamento jurídico antiquado, uma sociedade que se perdeu no passado e que foi apenas a gênese de uma nova sociedade ávida de mudanças e que atravessa, com isso, uma nova realidade.
Todavia, faz-se necessário valorar o que seria e o que não seria uma necessidade e, a partir desse juízo axiológico, proceder ou não à adaptação do texto constitucional, a fim de ser adequado à nova realidade. Isso é imprescindível para que não seja a Constituição um documento sujeito ao bel-prazer das classes privilegiadas, ou da atividade legiferante de autoridades sem compromisso com a justiça, a cidadania, os direitos humanos e, portanto, com o bem-estar social. Não existindo um controle sobre a modificação desse documento político, muitas seriam as emendas no texto constitucional sem um juízo teleológico, lêia-se, bem social. Aproveitando-se da facilidade para modificar os dispositivos constitucionais, as autoridades competentes lançariam mão de uma série de argumentos para emendá-los. Alguns seriam irrelevantes, outros seriam inconvenientes, inadequados e uma grande maioria seria puramente oportunista, levado a cabo apenas para favorecer certas pessoas ou interesses pessoais e sem qualquer vinculação com o Estado Democrático de Direito. Isso posto, deve ser feito um sistema preventivo-repressivo dos atos desconformes com a Constituição. A garantia dela, é bom que se diga, centra-se num juízo de conformidade e desconformidade das demais normas do ordenamento jurídico com os seus preceitos. O instrumento para modificar a Constituição já é bem rígido: a emenda constitucional. No Brasil, é preciso um quorum especialíssimo para reformar o texto constitucional através do procedimento formal da emenda (art. 60, CF). Por esse método, pode-se ter assegurada a certeza de que a rigidez de uma Constituição escrita será mantida, ou mesmo que, para reformá-la, não se dispõe dos mesmos métodos utilizados na legislação ordinária. Isso tudo vem justificar a supremacia da Constituição, que não deve ser imutável. Entretanto, sendo um documento para dar consistência a todo um ordenamento jurídico estatal, bem como dar segurança a essa ordem jurídica, deve obedecer a procedimentos mais formais e solenes para a sua reforma.
Se, ao contrário de obedecer a esses procedimentos formais para reformar normas constitucionais, surgirem atos contrários à Constituição, estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade, que tanto pode ser material – quando diz respeito ao conteúdo do ato normativo – quanto uma inconstitucionalidade formal – fazendo referência à maneira de procedimento, ou às formalidades a serem observadas. Inconstitucionalidade seria, portanto, uma desconformidade de normas inferiores – atos legislativos ou administrativos – com a norma superior. Seria, por assim dizer, uma contrariedade vertical, porque é sabido que, de acordo com a supremacia constitucional, todas as normas inferiores têm de estar em plena conformidade com os vetores da Constituição, que está situada no ápice da imaginária pirâmide hierárquica do ordenamento jurídico.
Não há que se falar apenas em atos normativos inconstitucionais, referindo-se tão-somente à legislação ordinária, haja vista que já é aceito na doutrina e no texto constitucional de outras legislações pátrias que o constituinte também é passível de praticar atos inconstitucionais. Daí falar-se em normas constitucionais originárias inconstitucionais2. Existe a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias em caso de revisão ou emenda. Não obstante, afirma-se ainda que o próprio constituinte originário pode ser autor de uma norma constitucional inconstitucional a partir do momento em que ela não esteja observando os pressupostos fundamentais de justiça, que é fim n o apenas do Direito Constitucional, mas de toda a ciência jurídica. Nesse sentido, vai mais além o Preâmbulo da Constituição de 1988, nos seguintes termos: “(…) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (…)”
O sistema de controle de constitucionalidade em muitos casos varia de país para país. No caso do Brasil, muito se absorveu do sistema norte americano. Dessa forma, há três sistemas de controle de constitucionalidade:
a) Controle Político – o juízo de conformidade das normas imediatamente inferiores à Constituição, neste caso, fica ao encargo de um órgão político, como o próprio Poder Legislativo;
b) Controle Jurisdicional – judicial review: há um órgão de cúpula do Poder Judiciário, legitimado pela própria Constituição para proceder ao controle constitucional de leis e atos normativos;
c) Controle Misto – como o próprio nome indica, há uma conjunção das duas outras espécies de controle. Ocorre quando há certos tipos de leis sujeitas ao controle por órgãos jurisdicionais, e outras por órgãos políticos.
Se formos analisar o controle pela ótica do tempo, poderemos dizer que há um controle preventivo, que ocorre numa fase anterior à publicação da lei, ou melhor dizendo, antes mesmo da produção final do ato legislativo. Neste caso, ainda se está diante da formação do ato, do estudo e da discussão do projeto de lei, constantes das seguintes fases: introdução, exame do projeto nas comissões permanentes, discussão, decisão e revisão. Efetivamente, dá-se a aplicação deste controle quando o projeto de lei passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça, ou ainda quando o próprio Presidente da República veta o projeto (art. 66, § 1º, CF). Portanto, percebe-se que o controle preventivo é exercido tanto pelo Poder Legislativo, através das Comissões Permanentes, quanto pelo Poder Executivo, através do Presidente da República.
Há ainda o controle repressivo, quando atua no momento em que o ato já está concluído, ou seja, após a publicação da lei. Também faz parte do controle repressivo o veto de competência do Congresso Nacional, no caso do art. 49, V, CF – quando os atos do Poder Executivo exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.
Para a efetivação do controle de constitucionalidades, são utilizados dois critérios, a saber:
a) Controle Difuso – quando compreender uma pluralidade de órgãos legitimados para exercer a fiscalização, assim, todos os órgãos do Poder Judiciário podem atuar nesse sentido. Não há um órgão específico para tal finalidade, podendo tanto o juiz singular quanto o tribunal proceder ao controle sobre a norma que não está em conformidade com os ditames constitucionais;
b) Controle Concentrado – há um órgão de cúpula, que no caso do Brasil é o Supremo Tribunal Federal, legitimado constitucionalmente para a guarda da Constituição.
Sabendo-se que não há uma ação sem demanda, haja vista que este é um pressuposto de existência do processo, e que só haverá demanda se houver um autor, é que, levando à risca o princípio do nemo iudex sine actore (não há juízo sem autor), o sistema de Controle Jurisdicional utiliza do Direito Constitucional Comparado três modos para o exercício do controle de constitucionalidade:
a) Controle por via de exceção, incidental ou concreto – O Controle por via de exceção é próprio do controle difuso. Por ele, cabe ao próprio interessado, quando apresenta sua defesa num caso concreto, suscitar a inconstitucionalidade. Todavia, entende-se que também é legitimado para argüir a inconstitucionalidade todos os partícipes num processo, incluindo o Ministério Público, nos casos em que atua como custos legis. Responsável pelo julgamento é o próprio juiz que está presidindo o caso. A declaração não é o objeto principal do litígio, mas como o próprio nome está dizendo, é uma questão incidente surgida num caso concreto. Na via de exceção a declaração da inconstitucionalidade constitui uma questão prejudicial, que deve ser sanada, pois dela depende a solução da causa principal do litígio. Não é ainda declaração de inconstitucionalidade de lei em tese, mas tão-somente declaração de inconstitucionalidade num caso concreto. Há que se dizer também que a decisão proferida pelo juiz, na via de exceção, gera efeito apenas entre as partes, não fazendo, desse modo, coisa julgada perante terceiros. Para tanto, seria necessário que a questão chegasse até o Supremo Tribunal Federal através de recurso extraordinário, nos termos do art. 102, inciso III e alíneas, da Constituição Federal. No momento em que isso ocorre, o controle deixa de ser o difuso, para se tornar um controle concentrado derivado da apreciação do caso concreto. A decisão que declara a inconstitucionalidade no caso concreto é apenas declaratória, não impedindo que outros órgãos do judiciário apliquem a respectiva lei, pelo menos até que o Senado Federal, por resolução, suspenda a sua executoriedade (art. 52, X, CF). O efeito da decisão no caso concreto é ex tunc, ou seja, fulmina a relação jurídica firmada entre as partes desde o início: retroage. A lei continua eficaz e aplicável em todo o território nacional, pois como já dito, necessária se faz a manifestação do Senado Federal, para suspender a sua executoriedade, mas essa manifestação tem efeito apenas ex nunc, ou seja, não retroage e gera seus efeitos daquele momento em diante. Importante é saber que até a atuação do Senado Federal a lei continua eficaz e aplicável, pois o que se sobrepõe é a presunção de validade das leis, daí dizer que a manifestação daquela Casa Legislativa não anula a lei, apenas lhe retira a eficácia.
b) Controle por via de ação, principal ou abstrato – diferentemente da via de exceção, no controle abstrato, o fim primeiro da ação é a própria declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, conforme o caso. Não há um caso concreto de onde surge uma questão incidente, porque o único objeto da ação já é a inconstitucionalidade da lei em tese. Não interessa, portanto, que haja previamente uma lide entre particulares. A ação surge por si mesma para expurgar do ordenamento jurídico a norma que se encontra em desacordo com a Constituição. A declaração de inconstitucionalidade já é, por assim dizer, o pedido da ação. O art. 103 arrola as partes legitimadas a propor a ação declaratória de inconstitucionalidade: “I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembléia Legislativa; V- o Governador de Estado; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; e VIII – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.
Quanto ao efeito da sentença que profere a inconstitucionalidade, manifesta-se uma corrente doutrinária no sentido de que esta faz coisa julgada material, gerando, portanto, efeito erga omnes. Sustenta essa corrente que, por ser o pedido da ação a própria inconstitucionalidade de lei em tese, não é necessária a manifestação do Senado Federal, para retirar-lhe a eficácia, assim como o é na via de exceção. De acordo com o art. 52, X, da CF, cabe ao Senado a suspensão da execução de lei declarada inconstitucional por decisão “definitiva” do Supremo Tribunal Federal. Acontece que o vocábulo “definitiva” compreende que tenha havido uma série de decisões acerca de uma questão e que, por via de recurso, tenha o caso chegado até o Supremo ao qual compete resolver as discussões acerca do respectivo litígio e assim fará através de uma decisão definitiva, no sentido de pôr uma palavra final à causa3. Essa decisão, portanto, é originária de uma questão surgida incidentalmente num caso concreto, que chega à apreciação da Corte Superior através de um recurso extraordinário. Não há que se falar, portanto, em decisão definitiva referente às ações originárias do Pretório Excelso, pois o feito se originou na própria casa e não compreendeu decisões outras de instância anteriores antes de chegar ao órgão máximo do Judiciário.
Como a própria Constituição Federal não é explícita acerca dessa discussão, defende-se a corrente que afirma ter as decisões do Supremo efeito erga omnes, sem a necessidade de manifestação do Senado Federal. Nossa manifestação é no sentido de que, sendo o Supremo Tribunal Federal legitimado constitucionalmente como o guardião da Constituição, não haveria qualquer necessidade de manifestação de outro órgão para que as suas decisões tenham efeito vinculante contra todos. Seria até mesmo uma falta de lógica se pensar assim, porquanto as decisões dos feitos originários no próprio Supremo, referentes à inconstitucionalidade de lei em tese, têm força vinculante própria. O Supremo Tribunal Federal é o órgão máximo do ordenamento jurídico da nação e por isso suas decisões de mérito, principalmente quando relativas a feitos originários na própria casa, têm de valer por si mesmas.
Sujeitar essas decisões à manifestação daquela casa legislativa é inclusive atentar contra a separação dos poderes, haja vista que competente para dirimir questões puramente de direito é o Poder Judiciário. De certo que os poderes (ou funções do Poder Público) têm um estrito relacionamento entre si, o que justifica muitas vezes a atuação de um na esfera do outro para limitar a atividade daquele que estiver ultrapassando a sua competência, desde que esta limitação não prejudique a independência e harmonia de cada um deles (art. 2º, CF). Portanto, há entre os poderes um sistema de pesos e contrapesos: checks and balances.
Locke visualizou na figura do todo poderoso Leviatan a manifestação do Poder Estatal o qual podia ser decomposto. Mais tarde, Montesquieu, através da teoria da separação dos Poderes, criou a tese que, a partir de então, iria influenciar toda a história da humanidade e, portanto, seria adotada por todos os Estados Constitucionais. Importante salientar que Montesquieu idealizou sua teoria da separação dos poderes, visando justamente a garantir as liberdades individuais. Então, a partir do momento em que um poder interferir na atuação de outro e, por isso, prejudicar a sua atividade, estará deturpando a teoria da separação dos poderes que tem por objetivo principal preservar o direito de liberdade dos cidadãos.
Isso posto, sujeitar as decisões definitivas do Supremo à manifestação do Senado é atentar contra a independência dos Poderes. Além do que, o Senado Federal maculado por questões políticas de interesses particulares poderia opor grave empecilho ao livre exercício da função jurisdicional do Supremo. Muito arriscado seria, portanto, sujeitar as sentenças declaratórias de inconstitucionalidade à manifestação do Senado para retirar a vigência da lei em tese.
Dentro ainda do controle abstrato, existe a Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva, consistente de intervenção federal em algum Estado, ou Estado em Município, caso haja descumprimento das exigências do art. 34, III, alíneas “a” a “e”, da CF. Só pode ser proposta pelo Procurador-Geral da República ou pelo Procurador de Justiça do Estado, conforme o caso.
Inovação que traz a Constituição Federal de 1988, no seu art. 103, § 2º, é a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, de influência da Constituição Portuguesa. Essa é uma medida que visa a dar plena eficácia aos princípios e às normas constitucionais, porque age diante do ato omissivo da autoridade responsável para dar efetividade aos preceitos da Constituição. Importante é observar que o constituinte não descreveu expressamente a competência para julgar as ações de inconstitucionalidade por omissão, entretanto, há que se entender ser o Supremo Tribunal Federal por ser o legítimo protetor da Constituição.
Antes de adentrar nessa discussão, há que se fazer distinção entre duas espécies de normas: normas programáticas – segundo Paulo Bonavides “Programáticas são as normas jurídicas com que o legislador, ao invés de regular imediatamente um certo objeto, preestabelece a si mesmo um programa de ação, com respeito ao próprio objeto, obrigando-se a dele não se afastar sem um justificado motivo4”. Dessa forma, vê-se que são normas programáticas todas aquelas que falecem de uma aplicabilidade imediata, por não ter o constituinte regulamentado inteiramente os procedimentos para a sua aplicação, ficando desta maneira uma lacuna, que compete ao legislador sanar através de uma lei ordinária ou complementar futura. São normas que suscitam dúvidas quanto à sua aplicabilidade e por isso servem de justificativa para o não cumprimento de preceitos constitucionais. Todavia, assim não devem ser interpretadas, pois o seu destinatário é o legislador, o qual tem o dever de suprir a falta de uma regulamentação; normas preceptivas ou de eficácia imediata – de acordo com Michel Temer “são aquelas de aplicabilidade imediata, direta, integral, independendo de legislação posterior para sua inteira operatividade5”. São portanto, normas que não causam qualquer dúvida quanto a sua eficácia, pois já estão plenamente positivadas no documento constitucional. Não precisam elas de um ato legislativo futuro, porque já regulam diretamente as relações entre os cidadãos e o próprio Estado. Assim, no caso da inconstitucionalidade por omissão, o problema sempre estará centrado nas normas programáticas, haja vista que as normas preceptivas, já estão, por assim dizer, perfeitamente acabadas, diga-se, não necessitam de legislação posterior, estando aptas para gerar de pronto todos os seus jurídicos e legais efeitos.
Então, de acordo com o art. 103, § 2º, da CF, declarada a inconstitucionalidade por omissão será dada ciência ao órgão administrativo responsável para, no prazo de trinta dias, providenciar a norma legal para tornar efetiva a norma constitucional. Neste caso, não há maiores problemas, pois decisão do Supremo Tribunal Federal sempre terá força de lei perante órgãos administrativos, não tendo estes por que desrespeitar aquela decisão, sob pena de sujeitar o agente público responsável pela prática do ato às sanções legais.
O grande problema está no caso de a norma omissa ser de competência do Poder Legislativo, pois nesta hipótese não há prazo para o legislador tomar as medidas necessárias, além do que, não há como obrigar o Poder Legislativo a legislar. Entende parte da doutrina que a decisão declaratória de inconstitucionalidade por omissão deveria ter força de lei, caso o legislador, dentro de um determinado prazo, não agisse nesse sentido.
Outra grande novidade da Constituição de 1988 é a Ação Declaratória de Constitucionalidade, prevista no art. 102, § 4º. Competente para julgar e processar originariamente a ação declaratória consoante o art. 102, I, “a”, da CF, é o Supremo Tribunal Federal. O mesmo dispositivo traz as hipóteses em que caberá a medida, a saber, lei e ato normativo federal. Propositadamente, não quis o constituinte destinar a ação declaratória às leis e atos normativos estaduais. O art. 103, § 4º arrola as partes legítimas para propor a referida ação, que são o Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.
A finalidade da ação declaratória de constitucionalidade é pôr fim a uma série de decisões referentes a questões constitucionais em processos concretos. Dessa maneira, havendo decisões controvertidas em casos concretos, proferidas em diferentes unidades da federação, por exemplo, a referida ação teria a finalidade de estancar esses debates, através de uma decisão definitiva. A decisão proferida pelo Supremo, quer confirme a inconstitucionalidade, quer declare constitucional a lei ou o ato normativo federal, tem efeito erga omnes, assim dispõe o art. 102, § 2º, subjugando, por conseguinte, todos os órgãos do Poder Judiciário, bem como o Poder Executivo. Além de vincular àquela decisão todos os órgãos do Judiciário, o próprio Supremo também estará vinculado a ela, haja vista tratar-se de coisa julgada material, impedindo até mesmo a inaplicabilidade de uma eventual ação rescisória.
Sendo a Constituição a base de todo o ordenamento jurídico do Estado, além de ser o controle da constitucionalidade uma atividade extremamente relevante e sensível, o julgamento de questões dessa índole não poderia estar sujeito a um único magistrado, por isso, dispõe a Constituição no art. 97, que “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.” Procedendo dessa maneira, haverá uma maior segurança dos julgados dessa natureza e, por conseguinte, ter-se-á a certeza de que os preceitos constitucionais estarão mais bem guardados.
Já foi dito que o legítimo guardião da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, entretanto, se este órgão atuasse por si só, sua atividade de proteção estaria com certeza fadada a uma imperfeição. De toda sorte é que se faz necessária a atividade de todos os entes federados para que em conjunto possam tirar do ordenamento jurídico aquelas normas que não estão em conformidade com a Carta Magna. Daí é que o constituinte, no art. 23, I, da CF, delegou competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para juntos zelarem pela guarda da Constituição.
O constituinte de 1988 alargou a legitimidade ativa para propor a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, CF), fato que não ocorria nas constituições anteriores. Agora não mais apenas órgãos públicos têm legitimidade para defender a ordem jurídica. Todavia, dentro do rol do art. 103, em meio aos inúmeros agentes, que nele foram arrolados, o constituinte achou por bem não incluir o cidadão. Ora, no direito positivo alemão, que também admitiu uma legitimidade ampla, qualquer pessoa pode acionar a jurisdição constitucional em casos de lesão a direitos individuais, através do Verfassungsbeschwerde, que é uma espécie de recurso constitucional. Na definição de Capelletti, seria: “o recurso constitucional consiste num meio de queixa jurisdicional perante o Tribunal Constitucional Federal a ser exercitado por particulares objetivando a tutela de seus direitos fundamentais, assim como de outras situações subjetivas constitucionais lesadas por um ato de qualquer autoridade pública”. Para a atuação do cidadão enquanto parte legítima para propor a ação direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, pode-se inclusive sustentar a tese do art. 102, § 1º, sempre que for descumprido preceito fundamental da Constituição. Entretanto, para dar eficácia a tal dispositivo, era preciso uma lei ordinária, que o regulamentasse, a qual só veio a ser promulgada em 03/12/1999: Lei n. 9.882. Infelizmente, a referida lei, no seu art. 2º, I, arrolou as mesmas partes previstas no art. 103, da CF, para propor a argüição de descumprimento de preceito fundamental. O inciso II, do mesmo dispositivo, que com certeza traria outras partes legitimadas para propor a argüição foi vetado. Quem sabe esse inciso não estivesse legitimando o cidadão?
Outro argumento utilizado para justificar a não inserção do cidadão como parte legítima para propor a ação direta de inconstitucionalidade é o fato de o constituinte ter criado o mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF). Sobre pretexto de que esse instrumento seria documento hábil para argüir a inconstitucionalidade de leis, argumenta-se que o cidadão poderia valer-se dele para reivindicar seus direitos e liberdades constitucionais, quando a falta de norma regulamentadora tornar inviável o seu exercício. Seria, portanto, uma espécie de controle de constitucionalidade por omissão. Ocorre que o mandado de injunção, ainda que deferido o pedido do impetrante, está sujeito à necessidade de se dar ciência ao Legislativo para suprir a falta da norma regulamentadora. É assim que tem decidido a jurisprudência. A decisão favorável ao impetrante, portanto, não tem eficácia imediata.
Acontece que, com esse mesmo objetivo, já temos no texto constitucional a ação de inconstitucionalidade por omissão, que, declarada a inconstitucionalidade pela falta de medida para tornar efetiva a norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente ou ao órgão administrativo para tomarem as providências cabíveis (art. 103, § 2º, CF). Ora, então qual seria a razão para o constituinte ter criado dois instrumentos idênticos? Além do que, tendo o impetrante que se sujeitar a uma eventual manifestação da autoridade competente, estaria prejudicado o seu objetivo. Portanto, incabível utilizar tal argumentação, a fim de não legitimar o cidadão como parte ativa para propor ação declaratória de inconstitucionalidade nos fins do art. 103, CF.
Bem que poderia ser adotada uma norma semelhante à do art. 61, § 2º, CF, para que o cidadão também pudesse ser parte ativa legítima para propor ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, apresentar perante o Supremo Tribunal Federal uma ação subscrita por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento do eleitorado de cada um deles.
Entretanto, não há medida alguma nesse sentido, o que deixa o cidadão no aguardo de que algumas das partes legitimadas para a propositura da ação direta se manifestem. Mas e se, em função dessa espera, estiver sendo preterido um direito fundamental do indivíduo? A atual Constituição traz normas e direitos que asseguram e regulamentam a atuação da soberania popular, que como se sabe, emana do povo, que a exerce por meio de representantes ou diretamente (art. 1º, parágrafo único). Como bem expõe José Afonso da Silva, quando se refere à cidadania: “(…) é atributo que qualifica os participantes da vida do Estado, é atribuição das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política6”. Com base nisso, não seria possível dizer que privar o cidadão de interpor uma ação direta de inconstitucionalidade seria também um atentado à própria cidadania?
Como muito se frisou no início deste trabalho, a Constituição é um documento histórico e que está afeta à evolução social, política, cultural e econômica da sociedade, de sorte que não seria demais admitir a legitimação do cidadão para tratar também de questões constitucionais, haja vista que a sua participação no cenário político vem suscessivamente crescendo, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem e, no Brasil, principalmente, a partir da promulgação da Constituição de 1988, com o seu artigo 5º. Dessa forma, num cenário onde o cidadão conquista a cada dia espaço para participar de maneira efetiva da vida da nação, não é de se estranhar que a Constituição, absorvendo essa evolução, se adapte para agasalhar essa nova realidade. É o que se espera.