Márcio Fernando Elias Rosa
1. Introdução
O debate proposto e o tema a ele imposto já encerram e anunciam as conclusões a que se pode chegar: a corrupção é fenômeno capaz de inviabilizar o desenvolvimento. A justificativa para a inserção no III Fórum Mundial Social parte da acertada consideração de que a qualidade moral das instituições é também fator significativo para o desenvolvimento social das nações.
A corrupção, porque tange à aplicação de recursos públicos e privados e também diz respeito ao modo pelo qual são estabelecidas as relações entre os que compõem a sociedade, reclama formas eficazes de combate e ampla discussão da sua gênese. Saber o que se pode entender por corrupção pública, quais as suas causas e efeitos, torna-se tarefa imprescindível para qualquer estudo. A compreensão, por isso, não é obtida a partir de exames superficiais ou pela suposta medição dos custos da corrupção conversíveis em dinheiro.
Em verdade, a condução do tema obriga considerar que tal fenômeno alimenta baixos índices sociais e econômicos, contribui decisivamente para injustas estratificações e é capaz de comprometer, dentre outros, o princípio republicano, a democracia e os valores essenciais aos homens, como a igualdade, a dignidade e a liberdade. No entanto, diga-se que a corrupção se mostra indissociável de qualquer Estado ou regime político e não constitui privilégio de tiranias ou democracias. Não é fato próprio de países do Terceiro Mundo ou em estágio de desenvolvimento menos avançado; a corrupção se apresenta em toda e qualquer sociedade organizada, que quanto mais bem organizada, mais hábil será no seu enfrentamento ou na sua repressão.
Para gizar os limites do presente debate, há que se considerar, também, que a discussão é patrocinada por entidades representativas do Estado ou do aparato estatal e que se dedicam à aplicação do Direito, a saber: entidades relacionadas ao Ministério Público e ao Judiciário; entidades que congregam Procuradores da República e Promotores de Justiça, além de Juízes Federais. Assim, ainda que seja tentador o debate crítico da situação vivida nas últimas décadas, a compreensão não pode ignorar que para essas instituições, em boa medida, foi cometida também a responsabilidade pelo concreto enfrentamento dos problemas decorrentes da corrupção.
O estudo não pode, dada a transcendência, ser realizado apenas a partir da ótica jurídica e carece ser efetuado sob outras vertentes, como a econômica e a política, mas reclama, aqui, a análise segundo a perspectiva de agentes que operam o Direito – procuradores, promotores, juízes, advogados. Em síntese, ainda que o propósito seja debater a corrupção como entrave ao desenvolvimento, os que lidam com o Direito devem, para encaminhar a discussão, necessariamente recorrer a dados sociais, políticos, históricos e econômicos, e tudo fazer sem perder de vista que o Estado e suas instituições são os responsáveis primários pelo combate do ilícito da corrupção pública.
2. A corrupção como ilícito e as instituições encarregadas de combatê-la
O Direito, como sabemos, por ser ciência que maneja fatos sociais e que tem a pretensão de dirimir conflitos interpessoais, além de regular o papel que ao Estado cumpre desempenhar, não pode ignorar dados e conceitos advindos de outros ramos do saber, ou seja, o fenômeno jurídico é antes fenômeno social, político, econômico.
A formulação de estratégias de prevenção e de repressão à corrupção, a apresentação de sugestões para o aprimoramento do serviço público, pode ser efetuada por qualquer cidadão, e é usual que seja, mas para que se possa validamente contribuir para a efetiva repressão e verdadeiramente desencorajar a corrupção é preciso que se tenha visão global da crise que a corrupção provoca, onde verdadeiramente se aloja e quais são seus efeitos sabidamente nefastos.
Na perspectiva do Direito, a corrupção é ilícito retratador de conduta humana que desafia valores éticos os quais devem presidir o manejo da coisa pública. É ilícito pluriobjetivo, que permite a reprovação sob a ótica do Direito Penal (porque constitui crime), sob a ótica civil (porque obriga a reparação do dano ou prejuízo), sob o enfoque exclusivamente funcional (porque constitui antes falta funcional), além de admitir sanção de natureza outra, comportando a reprovação política (por violação de decoro e infidelidade do político).
O Brasil já mantém razoavelmente estruturado um sistema normativo capaz de reprimir a improbidade administrativa, os ilícitos do colarinho branco, a corrupção em todas as suas formas. Historicamente, no entanto, manteve o Estado brasileiro triste associação da corrupção como sinônimo de enriquecimento ilícito do agente público, e apenas a partir da Constituição Federal de 1988 ampliou-se o modo jurídico de compreender a prática do ilícito, sobretudo em razão da Lei nacional n. 8.429, de 1992, que concebeu outras duas modalidades de atos de improbidade. Pelo sistema atual, a improbidade pode ser resultante de enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou violação de princípios da Administração.
A despeito disso, ou seja, de não ser recente a possibilidade de punição dos agentes e não ser possível a punição apenas em razão do enriquecimento ilícito, sempre houve no Brasil um abismo entre o que prevê a norma e o que concretiza a sua aplicação.[1] Há um distanciamento entre a realidade normativa e a social, não sendo da tradição político-brasileira a adoção de estratégias sérias de redução de tal abismo. Ao contrário, é da tradição o excesso de legislação, de regulamentação administrativa, de ingerência fiscalizatória e intervencionista, que muitas vezes funcionam como matizes para as duas realidades – a normativa e a social. No plano normativo, há excesso de legislação, na realidade ou no dia-a-dia, expedientes improvisados para viabilizar a vida em sociedade ou para fazer com que a máquina burocrática possa operar. O cidadão, tratado simplesmente por “administrado”, não compreende o funcionamento da Administração, a ela é submetido e, não raro, é premido por circunstâncias que desafiam princípios éticos. A hiper-regulação estabelece dificuldades e no final permite a venda de facilidades, como anuncia o ditado popular.[2]
Em boa medida, a sociedade brasileira reconhece as seriíssimas atuações contrárias à corrupção, sendo mesmo inegável que o Brasil já experimentou algum avanço mercê da atuação de membros do Ministério Público e de devotados Magistrados. Mas também é verdade que, por vezes, alguns agentes dessas Instituições já deram lugar a indiretos incentivos ao círculo vicioso da corrupção.[3] A atuação positiva, ainda que majoritária, é derrotada duramente pela atuação isolada e comprometida de alguns, ou seja, mais produz nocivamente o que nada faz do que todos os que atuam com seriedade. É que os devotados, invariavelmente, são detentores de tarefas meramente executórias, situam-se em órgãos de execução e poucos ocupam pontos estratégicos ou definidores da política de atuação dessas instituições, ao passo que, não raro, dos agentes ocupantes de elevados cargos partem as iniciativas reprováveis e indesejadas.
Com isso quero dizer que, a despeito do compromisso de muitos agentes, o resultado não será positivo se a Instituição ou Poder não estiver, por seus dirigentes, igualmente comprometido com a mesma causa, e o reconhecimento de tal identidade não está nos discursos de ocasião, mas na formulação das políticas de atuação e mesmo no exercício de suas atribuições e competências. Prestam terrível desserviço às instituições encarregadas de combater a corrupção os que manejam o poder para nele se perpetuar, os que apostam na hereditariedade, os que empregam os seus, os que arregimentam grande número de apaniguados para funções de confiança e reduzem órgãos de execução, os que criam ambientes propícios para o tráfico de influência e para a troca de favores. O Ministério Público e o Poder Judiciário devem recusar, nas suas estruturas administrativas, políticas desse tipo, que beneficiam vergonhosamente uma dada geração, mas que comprometem décadas e gerações de homens e mulheres compromissados com o efetivo resultado de suas atuações. Afastar os aproveitadores, os que se anunciam combatentes da imoralidade e nada fazem, os que dizem ter feito, os que prometem aquilo que somente outros farão, os que se encastelam no Poder, os que, por terem o horizonte tímido de suas próprias vidas, fazem da função pública um palco de tragédias de muitas vidas.
3. Corrupção como questão mundial
Aquele que zela pelo regime democrático, pelo Estado de Direito, há de estabelecer, antes, ainda na premissa, a negativa à associação da corrupção com a democracia ou com o Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito não é sinônimo de Estado permissivo da corrupção; antes, é o único regime hábil a viabilizar a sua repressão. Em verdade, o Estado de Direito, sem o elemento ético-político da democracia, não é capaz de indicar intransigência com a perdição pela corrupção, podendo albergar regras e princípios absolutamente dissonantes de valores morais. A democracia, como usualmente é dito, qualifica o Estado de Direito, torna-o vinculado a valores sociais representativos da igualdade entre os homens, do direito de participação política, do incremento do controle das políticas sociais. Por isso, o Estado brasileiro, que é assumidamente organizado segundo o modelo da democracia, precisa afugentar nichos ou espaços de irresponsabilidade política, afastando normas e pessoas que colocam em risco a estabilidade do próprio regime, do Estado e de seu povo.
A lembrança é útil porque, não raro, a redemocratização induz a um sentimento de aumento dos níveis de corrupção. A liberdade da imprensa, o asseguramento do acesso a informações administrativas, a transparência, podem incutir a idéia – falsa – de que os índices sofreram brutal aumento e, com isso, torna-se fácil defender irresponsavelmente o retorno às políticas da truculência e da supressão da democracia.
Existe inegável preocupação mundial com o controle dos níveis de corrupção; há uma onda moralizante e repressora da corrupção, que deixou de ser apenas um problema local ou regional e ganhou, com as mudanças operadas no mundo e nas relações internacionais, espectro ou abrangência maior.
Há algumas décadas, e sobretudo por conta da tal globalização, a corrupção é tema que preocupa todas as nações, e não há Estado que não reconheça a sua própria incapacidade em combatê-la internamente, ou sem a ajuda ou a cooperação de outras nações.
Os EUA, cujos ideais nem sempre são partilhados com Estados estrangeiros e que têm, historicamente, a falsa percepção de que podem ou poderão sempre atinar apenas aos assuntos que tocam diretamente ao seu povo, historicamente somente se mostravam preocupados com a corrupção interna, para definir condutas de seus agentes que cometiam a corrupção ou para os particulares que patrocinavam o suborno percebido. Passaram, no entanto, a patrocinar, em conjunto com outros grandes Estados, iniciativas de Instituições internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ainda na década de 1970, para incrementar o combate à corrupção pública. A indicar a mudança radical de postura, pode-se ilustrar com um dado interessante e que denuncia que, até recentemente a preocupação era centrada nas questões internas. Nos EUA, a dedução fiscal pelo suborno foi extinta ainda em 1958 – certamente para favorecimento do Fisco –, mas a tipificação do suborno a agentes estrangeiros somente passou a constituir crime em 1977. Por isso, apenas no final do século tiveram repercussão mundial as idéias globalizantes do combate à corrupção.
Os motivos da preocupação das grandes potências econômicas e bélicas podem não ter sido apenas o favorecimento do desenvolvimento, da receita ou a justa alocação de recursos, mas contribuíram decisivamente para que a ordem mundial, ao menos nesse início do novo século, sinalizasse para a necessidade de fortalecimento do combate à corrupção em todas as suas formas.
O fortalecimento de organizações criminosas com ramificações em vários países e as desigualdades cada dia mais cruentas fizeram com que vários Estados deixassem de ser centrados neles mesmos, com egoística compreensão de que a corrupção praticada em Estado estrangeiro era um mal necessário ao desenvolvimento de seus interesses econômicos. A corrupção não é um problema interno, mas questão da agenda de todas as nações e exige enfrentamento em escala mundial.
Diga-se, é bem verdade, que a preocupação dos EUA e de outras nações coincidiu com o final da Guerra Fria, com a desnecessidade de patrocinar governos corruptos e com o propósito de evitar que esses governos se aproximassem da extinta URSS, da Alemanha Oriental, da China ou de Cuba, ou seja, em nome de um suposto compromisso democrático, países desenvolvidos financiaram e incrementam a corrupção em Estados subdesenvolvidos, marcados por ditaduras e tiranias.
Não se trata de discutir – porque seria estéril – quais os responsáveis efetivos pelo incremento mundial da corrupção, mas isso não significa que não se possa atribuir o fomento para a corrupção em países em desenvolvimento a uma política irresponsável de países desenvolvidos que patrocinaram regimes autoritários, especialmente como forma de expandir o domínio econômico em sociedades menos organizadas. A atuação irresponsável dos países do Primeiro Mundo atendia interesses políticos e econômicos, significando a perpetuação de esquemas políticos liberais e o atendimento de interesses de investidores pouco comprometidos com as questões éticas. Com os investimentos externos, vendia-se facilidade e estruturava-se a corrupção, num manejo de ações políticas: muito dinheiro e nenhuma moral pública.
O crescimento do combate internacional coincidiu, por isso, com o fim da Guerra Fria, com o desinteresse no patrocínio ou manutenção de regimes autoritários ou hipocritamente democráticos. Mas, como dito, as iniciativas eram primordialmente para atender à demanda interna, e somente depois passaram a incluir ações contra a corrupção internacional.
A preocupação mundial, no entanto, não é suficiente, já que há paraísos fiscais que patrocinam estratégicos esquemas de lavagem de dinheiro e somente a união de esforços pode reprimir iniciativas de tal ordem. Veja-se que, em 1995, o governo das ilhas Seychelles promulgou uma lei – chamada de Lei do Desenvolvimento Econômico – a qual oferece imunidade penal de quaisquer crimes aos estrangeiros que realizarem investimentos superiores a 10 milhões de dólares. A Lei, diga-se, somente admite alteração por plebiscito ou emenda constitucional. Todos os países protestaram, sobretudo os europeus, e anunciou-se que todos os investimentos e recursos enviados para as ilhas seriam investigados.
Esse movimento, ainda que havido em país de nenhuma repercussão mundial e que entre nós só ganhou notoriedade quando um certo Presidente da República, após ser eleito e ainda não empossado, resolveu visitá-lo em núpcias, é bastante para o reconhecimento de que não há combate isolado e que, por mais que se afirme a soberania, não há tentativa séria que possa desprezar a ajuda internacional. Como resultado da reação contrária de países, notadamente os EUA, a França e a Inglaterra e de diversos organismos internacionais, como a OCDE, a Comunidade Britânica e a Comunidade Européia, além de importantes veículos de comunicação[4], aquele Estado sofreu diminuição em seus índices de desenvolvimento – a lei produziu efeitos contrários e desencorajou os investidores.
Diga-se, no entanto, que a repercussão é medida pelo peso político que o Estado mantém na ordem externa e que os resultados desencorajadores de iniciativas daquele tipo apenas são obtidos se há efetiva atuação concertada de organismos internacionais. O ilícito transnacional reclama atuação da mesma ordem, da mesma natureza.
Os efeitos deletérios da corrupção, no entanto, são produzidos internamente; ela distorce os processos de decisão, desvia os custos e os benefícios das decisões políticas.
4. Efeitos visíveis da corrupção
Quando se fala nos efeitos da corrupção, basta que se use a imaginação, e eles serão devastadores. Sem ter a pretensão de esgotar o rol, podem ser indicados: primeiro, a corrupção leva ao desperdício e à ineficiência por conta do desvio na alocação de recursos disponíveis, provocando distorções discriminatórias dos serviços públicos e comprometendo a qualidade de vida do povo – é razoável supor que o empresário corrupto vença determinada licitação de concessão de serviços sem que seja o mais eficiente, além de elevar a tarifa porque nela há embutida a comissão paga aos que permitiram a contratação.
Impõe o desperdício porque, não raro, a partir da vantagem paga, o administrador enseja o ambiente necessário para a contratação, engendrando fórmula capaz de justificá-la. Nesse ambiente, o corrupto cumpre o seu papel, o de estabelecer a necessidade a ser satisfeita pela contratação desejada pelo corruptor.
É tradicional compreender nessa hipótese a presença de agentes públicos e de empresários interessados em contratação necessária a atender aos interesses da população. Nem sempre isso ocorre. Não raro, empresários empregarem modos indiretos de criação de suposta necessidade e, a partir da corrupção indireta, imporem ao setor público a contratação. Campanhas que divulgam novos equipamentos ou novas fórmulas induzem o consumidor a desejá-las e, se apresentadas como imprescindíveis, podem compelir o Estado a contratar a aquisição da novidade. Trata-se de desfocar a realidade, engendrar necessidades, contratando o que não é imperioso ou mesmo o que é desnecessário. A iniciativa privada em acerto criminoso com agentes públicos programa obras, prestação de serviços, induzindo assim um cronograma de contratações a ser cumprido a partir do pagamento de vantagens diretas ou mesmo indiretas (contratações de pessoas próximas, financiamento de campanhas políticas etc.). A providência primeira sempre será a de criar o ambiente que justifique a contratação, a suposta necessidade da contratação.
Segundo, afugenta investidores honestos, na medida em que para a máquina burocrática funcionar há necessidade do suborno, e, se há um concerto mundial crescente de reprovação em não se admitir a corrupção internacionalizada, minguam os investimentos externos e há o comprometimento do desenvolvimento econômico e social.
É possível que existam exploradores de riquezas capazes de ambientar sentimentos nobres e não apenas os ditados pelo padrão monetário e que não querem, e nem merecem, estar associados a Estados que funcionam a partir da corrupção, do crime organizado e da lavagem de dinheiro. Há inúmeros países que nos fazem lembrar ilícitos, com imagem pública de corrupção institucionalizada, de permissividade ou de paraíso fiscal. Não há investidor honesto que freqüente estabelecimentos de investimentos. Insisto, não há investidor honesto que almeje ser associado à ilicitude da origem de sua riqueza. Por isso, ante a reprovação mundial e o risco de perdimento da credibilidade, agentes externos honestos devem deixar o mercado que abriga formas ilícitas de enriquecimento, porque conspira contra a própria imagem, a credibilidade de seus produtos ou empresas.
Outro efeito devastador, mas quase sempre esquecido, deriva do comprometimento dos recursos naturais em escala indesejada e derivante da escassez de recursos de investimentos. É que, ao inibir tanto os investimentos quanto o desenvolvimento, a sociedade passa a necessitar do comprometimento de recursos naturais com maior voracidade. Na medida em que as despesas públicas são encaminhadas para áreas inúteis e há o desencorajamento de investimentos externos, a indústria, a ciência e tecnologia ficam comprometidas. Não há opção saudável de investimentos, não há desenvolvimento do parque tecnológico porque o Estado não reúne credibilidade, e fazer funcionar a máquina pode custar muito caro. Para suprir as necessidades de desenvolvimento e atender a suas demandas próprias, resta o confronto com os bens vitais dispostos no meio ambiente. A exploração direta, autêntica degradação ambiental, passa a ser vital para o homem ou para o trabalhador, e será a partir dessas atividades que ele encontrará seu meio de subsistência. O homem pode não desejar, mas necessita recorrer insistentemente à flora, à fauna para prover o que lhe seja vital.
A corrupção necessita, ainda, para se efetivar, da lavagem do dinheiro, da remessa ilegal para o exterior, o que compromete a poupança interna e, também por isso, exacerba a miséria do povo.
Por tudo, a corrupção eleva sobremaneira os custos das contratações públicas, alimenta o nepotismo, debilita o serviço público e, por todos esses efeitos, compromete a democracia, a legitimidade do poder, a eficiência e a eficácia da máquina administrativa, como agora passaremos a debater.
5. Efeito invisível da corrupção
É certo que a corrupção alimenta discursos oportunistas e, como ferrugem, se embrecha nas entranhas da máquina burocrática, impondo a seus serviços má qualidade, ineficiência, elevando custos e comprometendo recursos. Mas há, dentre tantas, dois efeitos invisíveis da corrupção que podem ser identificados: a elevação do grau de desconfiança do povo em relação às instituições estatais; o perdimento de níveis razoáveis de desenvolvimento social.
No comprometimento paulatino da democracia, está o primeiro efeito invisível: passa o homem simples a acreditar que “não tem mais jeito” ou que “todos são corruptos” e, o que é pior, “que o Estado está à venda”. A idéia de um “Estado à venda”, pronto para a comercialização, embute ainda a noção equivocada de que o valor moral tem sempre representação monetária, pode ser medido ou precisado pelo montante envolvido. A moral associada ao dinheiro, como se não existissem ou não fossem importantes outras formas igualmente nocivas de corrupção, de abuso de poder, de deslealdade, é incrementada pela idéia de que só há corrupção se concorrer prejuízo material ou enriquecimento ilícito do agente público. Historicamente, o sistema jurídico brasileiro reforçou essa compreensão, porque sempre se permitiu (ainda que nunca tenha se efetivado) a corrupção associada ao enriquecimento ilícito, ou seja, punia-se apenas o servidor ou agente que percebesse dada vantagem como expressão econômica, não se cuidando de punir também o que favorecesse terceiros ou conspirasse contra os princípios morais.
Assim, a corrupção que chama a atenção e causa comoção é a que envolve o dinheiro e, se não há expressão monetária identificável, advoga-se que a corrupção não se consumou, não tem importância. Este é um efeito invisível da corrupção: incute no homem a idéia de que a moral está associada ao dinheiro e não relacionada no atendimento ou não das necessidades do povo, do interesse público, do aperfeiçoamento do serviço público, dentre tantas outras, mas que pode ser resumida na transgressão de interesses públicos por metas egoísticas, interesses privados, sejam ou não patrimoniais.
O segundo efeito invisível da corrupção é detectado nas ruas, praças e grandes cidades, sobretudo. Há miséria e uma legião de desassistidos. O Estado corrupto nega a seu povo acesso ao desenvolvimento tecnológico, à saúde pública e à educação eficientes e menos onerosas. A associação de dado investimento externo com o pagamento de propinas ou de vantagens, ou encarece o produto final ou inviabiliza o próprio investimento. O povo não terá acesso à descoberta porque ela não existe ou porque lhe será muito custosa, proibitiva.
Se o que se necessita é vital, o Estado deve prover e, por isso, a receita pública mingua em outros setores, o círculo vicioso da corrupção atinge assim o seu ápice: alimenta o enriquecimento de alguns e estabelece a definitiva dependência de todos.
6. A medição da corrupção
Não há estratégia absoluta para a medição da corrupção – há propostas sérias como as da Transparência Internacional, mas não há método capaz de indicar o grau de corrupção de determinado Estado. A corrupção é mais facilmente percebida, sentida, do que preventivamente detectada.
Pode-se tentar medir a corrupção a partir de pesquisas de opinião, pela mídia ou pelo número de condenações judiciais, mas essas tentativas tendem a fracassar na medida em que dependerão de fatores que não as favorecem.
Pesquisas de opinião são subjetivas, tomam em conta o grau de desconforto pessoal do entrevistado, mas tendem a ser regionalizadas e a refletir o desejado pelos formadores de opinião. A pesquisa de opinião sempre será útil para a descoberta da imagem desfrutada pelo Estado na sociedade que ele organiza, mas não se mostra razoável para a medição da sua eficiência de atuação. Evidentemente sempre haverá relação; o grau de impunidade elevado faz crescer o desconforto ou reprovação da maioria, mas o resultado somente será indicativo. A partir da mídia toma-se conhecimento apenas dos escândalos, e a fidelidade do noticiado dependerá sobretudo da independência e da imparcialidade jornalísticas, daí que o método de medição segundo a imprensa também não se mostra razoável.
Por fim, as medições pelos resultados de ações judiciais também são improváveis, seja pela possibilidade de múltiplo enquadramento da conduta, seja porque somente retratará o que o próprio Estado denuncia, seja porque dependerá do que é previsto no sistema jurídico e que nem sempre retrata a reprovação esperada ou desejada pela sociedade. A medição do nível de corrupção passa a depender, assim, da união de todas as estratégias indicadas (a pesquisa de opinião, o número de ações e de condenações efetivamente impostas e executadas, o que é divulgado pela mídia), mas requisita outras análises, como o custo material das contratações, o aumento de número de cargos e de funções etc.
Por não ser facilmente detectada, a corrupção também não é facilmente mensurada.
7. Os níveis de corrupção: corrupção sistêmica
corrupção política
corrupção administrativa
A corrupção é fenômeno que se verifica em vários planos ou pode ser compreendida sob variados aspectos, e a definição pode ser obtida a partir de sua fonte ou causa primária. A corrupção pode ser estrutural ao regime jurídico ou ao Estado, à qual chamo sistêmica, mas pode ser política ou exclusivamente administrativa.
Invariavelmente, no entanto, é patrocinada pela intermediação do setor privado, sobretudo empresarial, e reclama intenso jogo de estratégias, manejo de poder e troca de favorecimentos pessoais. Tomo de empréstimo as sugestões de Manuel Villoria, do Instituto Universitário Ortega y Gasset, que sugere três níveis de corrupção: a) do regime político; b) política; c) administrativa[5] para definir os nichos nos quais se alojam as formas de corrupção no Brasil.
A corrupção estatal sistêmica é a mais nefasta e se verifica sempre que o Estado esteja estruturalmente concebido como instrumento de troca, de clientelismo ou de privilégio de setores da sociedade ou, ainda, tal como se opera em regimes autoritários, mero instrumento de perpetuação de interesses privados.
A corrupção política e a administrativa se verificam nas entranhas das instituições políticas e burocráticas e são parcialmente próximas quanto ao modo de perpetuação: dependem da troca de favores, do privilégio de interesses particulares e são detectáveis no funcionamento da máquina estatal.
A corrupção política, porém, tange ainda ao funcionamento de partidos políticos, ao processo eleitoral, ao processo de recrutamento para algumas funções estatais primárias, como também ao modo de atuação dos agentes políticos, quais sejam os que atuam em nome do Estado, exercendo funções primárias e exclusivas do Estado.
No entanto, ainda que possamos estabelecer perspectivas diversas para conceber a matriz da corrupção – se do regime jurídico, se política ou se administrativa, é fato incontestável que a corrupção sistêmica alimenta as demais, seja a que se verifica no plano administrativo ou a que favorece alguns agentes do Estado.
7.1. Corrupção sistêmica
A corrupção sistêmica é estrutural e imposta ao sistema jurídico, sendo a mais terrível porque dissimulada, quase sempre, em normas impessoais, falsamente genéricas, mas que se traduzem, na aplicação, em favorecimentos com endereços certos. É própria dos regimes falsamente democráticos e autoritários, mas é verificável mesmo nas democracias mais avançadas e consolidadas. É a mais terrível forma de privilégio de interesses particulares ou de grupos, e acaba por comprometer as finanças do Estado, o atendimento de demandas sociais justas, e se traduz em maior entrave ao desenvolvimento econômico e social.
Porque travestida em normas jurídicas ou em soluções políticas, quase sempre se apresenta impessoal e sem que se possa responsabilizar seus atores. É, ainda, a mais terrível porque incide decisivamente na cadeia destrutiva das instituições, da própria democracia; ela fecunda e alimenta o círculo vicioso da corrupção, permitindo a corrupção dos agentes políticos e alimentando a corrupção dos burocratas.
É fácil associá-la a regimes autoritários, marcados pela constituição de aparatos estatais intangíveis a qualquer controle. É fácil reconhecê-la presente em regimes de irresponsabilidade política, mas, em verdade, pode ser detectável em qualquer Estado. Nos Estados democráticos ou regidos pelo Estado de Direito, a ordem jurídica passa a contemplar a ótica da corrupção, dos corruptores, dos que manejam a coisa pública sob o enfoque do interesse privado e egoístico. Ela está presente em inúmeros exemplos, como nas renúncias fiscais, nas isenções tributárias e em toda e qualquer norma jurídica que, afastando-se da moralidade, do dever de probidade, se traduz em benefícios desproporcionais.
Dentre tantos exemplos possíveis, há o decorrente do Programa de Recuperação Fiscal (Refis) instituído pela Lei n. 9.964/2000, que permite, ou obriga, a suspensão da ação penal enquanto a pessoa jurídica devedora estiver inscrita no tal plano de recuperação. A norma legal incutiu a inviabilidade de repressão penal à empresa sonegadora, dando-lhe tratamento diferenciado, a despeito da gravidade social do delito. Duas considerações serão o bastante para que seja reconhecida a imoralidade que o preside: há, no Rio Grande do Sul, ação penal suspensa por 747 anos e, em Brasília, ação penal suspensa por mais de um milênio, como informa o Procurador da República LUCIANO FELDENS.[6]
Serve de exemplo, ainda, o que se fez recentemente com a Lei de Improbidade e o estabelecimento, via alteração do Processo Penal, das regras de competência para processar determinadas autoridades. Com uma só alteração da regra processual negou-se o princípio do juiz natural, alterando-se o rol de competência originária dos tribunais, e perpetuou-se o privilégio para além das funções ou depois de cessado o vínculo, como se o benefício fosse deferido à pessoa física e não à função. Há, a partir do que foi criado, singular proteção da função que se perpetua na pessoa física. Em última análise, podemos dizer que no final da legislatura, com largo apoio da classe política e sob o direto patrocínio do então Presidente da República, alterou-se o Código de Processo Penal e com ele a Constituição da República. O exemplo calha com perfeição, infelizmente. Tem-se a partir da inovação a inclusão de um espaço jurídico próprio para beneficiar os detentores do poder e, ainda que haja algum substrato doutrinário que o sustente – desconheço –, é certo que somente se presta a inibir a repressão dos atos ímprobos cometidos pelos agentes políticos.
Há, desafortunadamente, outros tantos exemplos. Estão na ordem do dia as tais agências criadas após a reforma da Administração. Em verdade, o Estado abriu mão de áreas antes consideradas estratégicas, franqueando a exploração de alguns serviços ao setor privado e, não bastasse, abriu mão do controle direto ou realizado pela Administração direta, concebendo uma curiosa figura importada do Direito norte-americano: as tais agências reguladoras. Com um só passo, renunciou-se ao monopólio de serviços e a exploração de bens, permitiu-se a privatização ou transferência para o setor privado, mesmo externo, e derrubou-se o controle direto a ser exercido pela Administração. As agências não são mais do que as velhas autarquias de regime especial, mas seus dirigentes são detentores de supostos mandatos, atuam com suposta liberdade e não devem respeito às políticas públicas fixadas pelo Poder central. A dicotomia política entre a Chefia do Poder e as tais entidades da Administração direta dará azo a inúmeras situações conflituosas e que tendem a colocar em disputa a moralidade administrativa. Algumas já são debatidas e questionadas: o regime jurídico de contratação do pessoal que compõe as agências, a acumulação de cargos e o aproveitamento de servidores de outras entidades, a fiscalização da política tarifária à revelia da política econômica, dentre tantas.
Algumas questões merecem aqui uma abordagem rápida pela estreita ligação que têm ou que poderão vir a ter com o tema em debate. As agências, dizem alguns, poderão definir a remuneração pelo uso dos serviços que tenham sido concedidos, deverão ser também os agentes de fiscalização e haverão de presidir a formulação da política de remuneração dos contratados. Os seus dirigentes autuarão com independência, a entidade será autônoma.
O modelo imposto contrasta com o sistema constitucional. As agências e seus dirigentes não poderão atuar por critérios próprios (ainda que devotados a bons propósitos), simplesmente porque não há espaço para a autonomia irrestrita e sempre haverá a possibilidade de sujeição a mecanismos de controle ou tutela. Seus servidores deverão ser ocupantes de cargos públicos e gozar das prerrogativas próprias do serviço público. Seus dirigentes não serão agentes políticos contratados à revelia da ordem constitucional (que obriga o acesso por concurso ou livre nomeação) e jamais serão detentores de mandato ou investidura por tempo certo. Os usuários têm direito de acesso ao serviço público e as tarifas devem respeito à modicidade. A política tarifária desprendida da realidade social poderá vir a ser obstáculo ao acesso a serviços essenciais, e, como se sabe, a política de preços públicos somente pode ser definida pela política econômica do Poder Central, e não como resultante de meros cálculos aritméticos realizados por contratantes e contratados.
Os serviços objeto de concessão ou de regulação pelo exercício de poder das tais agências são fundamentais para o desenvolvimento do Brasil, além de serem indispensáveis para a qualidade de vida do povo. Os custos de alguns desses serviços, como a energia elétrica, o gás e os derivados de petróleo, vinculam a política econômica de qualquer país, em especial dos que estão em busca da estabilização da própria moeda, que almejam controlar a inflação e desenvolver algum projeto social (ou de inserção social pela garantia de acesso aos serviços fundamentais). Não há legitimidade em iniciativas que tencionam a instituição de um tecnicismo alheio a políticas sociais. O problema não é puramente formal, é antes social.
A situação descrita é típica de um Estado estruturalmente corrupto, porque insensível à ordem social e privilegiador de interesses pessoais, de grupos econômicos e políticos ou dos que manejam elevada carga de poder estatal sem qualquer compromisso social.
7.2. Corrupção política
A corrupção dos agentes políticos, alimentada também pela primeira (sistêmica), é a que se verifica na atuação dos homens e mulheres que, valendo-se da temporariedade própria dos mandatos ou da perpetuidade própria dos cargos vitalícios, atuam orientados também pelo atendimento de interesses particulares, nada importando se haverá ou não o sacrifício de interesses públicos.
Para essa forma de corrupção conspira decisiva a impunidade instituída pela corrupção sistêmica, a primeira analisada, já que se nega a possibilidade de sanção daquelas condutas e está presente seja no processo eleitoral corroído pelos favorecimentos (financiamento de campanhas, abuso da propaganda eleitoral, uso da máquina estatal), seja nos concursos de ingresso a determinadas carreiras. É no recrutamento, na seleção, por via da eleição direta ou pela competitividade técnica, que esse tipo de corrupção tem início.
Os agentes políticos – eleitos ou exercentes de funções primárias do Estado (parlamentares, juízes, promotores, dentre outros) podem cometer a corrupção administrativa, que é própria dos burocratas e que é traduzida no abuso de poder ou na violação da finalidade da atuação, como ocorre na chamada troca de favores, no enriquecimento ilícito, mas a mais nociva corrupção política é a que, valendo-se da primeira – sistêmica – permite a esses agentes a perpetuação de vantagens imorais para si ou para terceiros: o nepotismo, as licenças remuneradas, os jetons e sempre que, usando indevidamente seus poderes, embrecham no sistema jurídico novas fórmulas de corrupção estrutural. Se a mais nociva é a corrupção estrutural ao Estado, essa segunda modalidade é igualmente nociva porque idealiza aquela, viabiliza sua perpetuidade.
São os agentes políticos os que engendram fórmulas capazes de tornar ou não o Estado corrupto, e podem ser muitos os exemplos, a instituição de entidades despidas de controle, a transferência para setores civis de atividades essencialmente estatais, a discricionariedade desmedida, o desapego à razoabilidade, a criação e nomeação de cargos em comissão, dentre tantas conhecidas na lida diária dos problemas brasileiros.
7.3. A corrupção administrativa
A terceira, a mais combatida, a despeito de mais modesta, e a única debatida livremente no Estado corrupto é a administrativa. Perpetrada por agentes públicos, servidores, e realizada para viabilizar interesses privados e sob o custo do enriquecimento do servidor, ela é tradicional e alimentada por inúmeros fatores (econômicos, culturais, políticos) que dizem respeito à formação moral e intelectual dos homens recrutados para o serviço público.
A mais combatida forma de corrupção é a mais facilmente detectável e única incapaz de efetivamente inibir a ocorrência das demais. Ela não tem nenhuma repercussão sobre as outras formas, decorre quase sempre da primeira (a sistêmica) e é alimentada pela segunda (dos agentes políticos).[7] Daí porque qualquer solução deve ser iniciada pelo combate à corrupção estrutural ao Estado e pela diminuição do campo de discricionariedade para os agentes políticos, elevando-se a carga de reprovação e de sanção.
Evidentemente, esta forma de corrupção (administrativa) também há de ser duramente reprimida, sem que se constitua, no entanto, em fácil discurso de ocasião, próprio dos falsamente ocupados do combate à corrupção. É que por atingir o pólo menos poderoso dentro da estrutura administrativa, por ser mais detectável (ela não envolve estratégias políticas e decorre da exploração direta do serviço), há sempre a possibilidade de campanhas políticas demagógicas (caça aos marajás, combate aos corruptos, devassa de caixas-pretas etc.). Os que entoam esses discursos querem mesmo é ocupar o poder e nada fazem para combater as outras formas de corrupção; ao contrário, alimentam-nas.
As três formas resumidas, no entanto, tomam em conta a corrupção sob o enfoque jurídico e político, desprezam outros fatores capazes de também permitir a identificação desse fenômeno. Poder-se-ia dizer, sob o enfoque econômico, que a corrupção é negócio e, como tal, visa ao lucro, à vantagem patrimonial, serve para ajeitar o funcionamento da máquina burocrática. Poder-se-ia dizer também, sob o enfoque filosófico, que a corrupção é antes o rompimento de lei universal, da lei universal da ética que deve presidir as relações interpessoais ou forma de fazer imperar a individualidade em detrimento do interesse coletivo.
8. O combate pela participação política
De qualquer modo, e como síntese puramente ilustrativa, a corrupção é forma de abuso de confiança ou violação do dever de lealdade; lealdade para com a coletividade e para com a Administração ou o Estado.
Há lembrança útil ao debate: a democracia não favorece a corrupção. Todos os Estados denotam maior ou menor incidência, o que varia é apenas o grau de reprovação, medido pela imparcialidade do Judiciário, pelo aperfeiçoamento da lei penal, pela imparcialidade da imprensa.
A corrupção não é uma doença do Estado, mas um sintoma de que o Estado vai mal. Está mal estruturado, mal aparelhado e distorcido na realização de suas funções. Os modelos repressores e os inibidores da corrupção devem ser idealizados conjuntamente, ou seja, a atuação deve ser permanentemente preventiva e eficazmente repressiva.
A idealização, no entanto, não pode ignorar que a corrupção é fomentada pelo baixo nível de consciência social e política, tão comum em Estados cuja população tem negado o seu acesso à educação, saúde ou cultura. O baixo índice educacional alimenta altos índices de corrupção. No entanto, a falta de consciência política não pode ser atribuída ao homem, ou cidadão, mas aos que presidem o destino do Estado e de seu componente humano: o homem caminha por onde caminham as instituições estatais; o processo histórico o conduz.
O estabelecimento de mecanismos de contenção às desigualdades requisita, então, o compromisso de atuação de setores da propriedade civil; menos do Estado e de seu aparato e mais de setores organizados da própria população.
A ordem jurídica precisa, para efetivar o regime democrático, instituir ambientes seguros de atuação desses movimentos sociais organizados, instrumentalizando ações capazes de ser realizadas pelo povo, por seus representantes diretos ou por organizações por ele próprio constituídas.
Daí a responsabilidade também de entidades sociais, não-governamentais, de classe, associativas, de categorias profissionais, de buscar o permanente diálogo acerca do fenômeno da corrupção, porque o aparato estatal – seja ele residente em qualquer dos Poderes ou mesmo no Ministério Público –, será sempre absolutamente ineficaz para a absoluta contenção e máxima reprovação das transgressões morais.
O diálogo, no entanto, não pode ficar centrado na corrupção burocrática, ou no crime de peculato ou de concussão, mas deve ter como fonte primeira o combate sistemático da corrupção estrutural. Identificar as normas jurídicas que abrigam prescrições contrárias aos valores morais, as regras que estabelecem nichos de impunidade ou de evidentes privilégios injustificados e imorais, constitui a tarefa primordial desses grupos de pressão; de pressão por mudanças e de transformações. O aparato estatal pode, quando muito, mostrar-se hábil ao combate da corrupção administrativa, praticada nas repartições, perpetrada nos baixos escalões, mas não será capaz de investigar suas próprias entranhas, seja para eliminar os tais favorecimentos ou para incrementar a justa repressão dos detentores do Poder.
A partir de tais considerações, pode-se compreender que a adoção de códigos de ética para servidores, com o controle da evolução patrimonial de agentes e a alteração de mecanismos de contratações do Estado, somente alcançará algum resultado prático se acompanhada de medidas mais abrangentes, que estendam os compromissos éticos aos agentes políticos ou que instituam controle de resultados das suas políticas públicas. O que se fará, por mais abrangente que possa ser, não pode desprezar mecanismos até prosaicos e óbvios, como os que coloquem fim à idéia de sigilo bancário e fiscal para os que ocupam cargos públicos, especialmente os de investidura política ou vitalícia, a necessidade de efetiva transparência nas contratações públicas, o debate em torno das justificativas para as contratações e a proibição do nepotismo.
Deve haver recusa a fórmulas fáceis, como a criação de novas entidades, agências ou organismos supostamente independentes da Administração. Primeiro, não será aumentando o aparato que se garantirá eficiência; segundo, a autonomia das entidades dessa ordem constitui falácia; terceiro, já há entidades de mais e controle de menos.
9. Conclusão
A corrupção é causa determinante de obstáculo ao desenvolvimento, mas também sugere que se deva, na senda jurídica, estabelecer novas perspectivas para a sua compreensão, vista como inimiga da democracia e não o seu defluente, capaz de ser combatida pelo concurso direto de setores do próprio Estado e da sociedade civil organizada.
A eficácia do combate, no entanto, restará comprometida se estiver centrada na repressão à corrupção burocrática, praticada por agentes subalternos. O compromisso que a todos se deve exigir é o de combater a institucionalização de nichos de corrupção supostamente compatíveis com o Estado de Direito. Dos operadores do Direito a hora exige compromisso com a concretização do desejado pela sociedade e que é retratado nos fundamentos da República Federativa do Brasil.
O Estado brasileiro tem por pressuposto, a par da opção republicana, do regime democrático, a prevalência da dignidade da pessoa, a constituição de uma sociedade justa e organizada a partir da igualdade entre todos. Qualquer forma de privilégio de alguns, detrimento de outros ou modos espúrios de relacionamento deve ser rechaçada, e o compromisso dos agentes sociais e estatais há de ser, primeiro, a recusa ao discurso fácil, de ocasião, próprio dos que apenas querem ascender ao poder – seja ele em que instituição estatal for –, ou dos que desejam fazer da luta da corrupção mais um tipo de alpinismo político. A revisão das formas de recrutamento de agentes, seja pela efetiva democratização dos processos eleitorais ou pela transparência nos concursos de recrutamento de pessoal, carece ser o ponto de partida para a nova configuração da Administração brasileira em todos os seus níveis.[8]
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[1] Desde a Constituição de 1824 admite-se a defesa da probidade administrativa, sendo as primeiras leis protetivas do Erário de 1828, 1834 e 1841. “O que sempre faltou foi a real passagem da preceptividade à sanção”, cf. FERRAZ, Sérgio. Aspectos processuais na Lei sobre Improbidade Administrativa. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.) Improbidade administrativa: 10 anos da Lei n. 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2002. p. 433.
[2] Criar dificuldades para vender facilidades.
[3] Funcionam como exemplos os escândalos de nepotismo, favorecimentos em contratações, quebra de sigilação em concursos de ingresso, afastamento da carreira para o exercício de funções incompatíveis, a acumulação de aposentadorias, dentre outros.
[4] Como o Financial Times, edição de 3 de fevereiro de 1996.
[5] Control de la corrupción y reforma legal y judicial – artigo divulgado por ocasião do seminário Reforma legal e judicial e controle da corrupção na Amércia Latina e no Caribe – programa de educação para Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, México e Peru – 22 de maio a 23 de julho de 2002.
[6] Cf. Tutela penal dos interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 200-202.
[7] Manuel Villloria sugere que a corrupção administrativa não pode se separar da corrupção política e se alimentam umas das outras.
[8] Texto-base da exposição sob o mesmo título efetuada pelo autor na oficina “Promovendo a Justiça no Fórum Mundial Social”, durante o III Fórum Mundial Social, realizado em Porto Alegre, no dia 24 de janeiro de 2003 e organizado pelas Escolas Superiores do Ministério Público da União e do Ministério Público do Rio Grande do Sul, pela Associação dos Juízes Federais, dentre outras entidades civis.