A Contribuição provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF – fruto de campanha inicial solitária e equivocada, mas feita com ardor e paixão, acabou por quebrar as resistências dos mais experientes membros do Parlamento Nacional que, repentinamente, como que tocados por varinhas mágicas, aprovaram de roldão a Emenda n. 12/96 concedendo à União o poder de instituir e cobrar mais esse malsinado tributo para acudir a área da Saúde. Assim, o antigo IPMF, imposto sobre o cheque, como ficou conhecido, foi ressuscitado com a roupagem de contribuição como se o nomen juris pudesse mudar a natureza jurídica do tributo. Trata-se de autêntico instrumento de retirada compulsória da parcela de riqueza produzida pelos particulares, independentemente de qualquer atuação específica do Estado dirigida ao contribuinte, o que corresponde rigorosamente à definição de imposto, nos precisos termos do art. 16 do CTN. Realmente, a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, que configura o fato gerador, nos termos do art. 2º da Lei instituidora de n. 9.311/96 nada tem a ver com qualquer atuação estatal específica. Dessa forma, esse imposto altamente regressivo e prejudicial à economia (1) sob todos os aspectos vai, aos poucos, perpetuando a sua provisoriedade inicial, tudo ao arrepio dos princípios constitucionais tributários e financeiros. Jamais um tributo conseguiu acumular tantas inconstitucionalidades como este, a começar pela própria Emenda que autorizou sua criação.
A Emenda 12/96, através do espúrio artifício de enxertar o art. 74 ao ADCT da Constituição de 1988 outorgou à União o poder de instituir e cobrar provisoriamente a CPMF, prescrevendo acintosamente que não se aplicam os artigos 153, § 5º e 154, I da CF, além de vincular, desde logo, o produto de sua arrecadação ao Fundo Nacional de Saúde (§§ 2º e 3º do art. 74). O § 5º do art. 153 determina que o ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial, sujeita-se exclusivamente ao IOF (2). O art. 154, I, por sua vez, sublimita a competência impositiva residual da União ao exigir em relação aos novos impostos a sua instituição por lei complementar, a não-cumulatividade e o ineditismo de seu fato gerador e de sua base de cálculo. Ambos os dispositivos estão inseridos na seção II, concernente a “Limitações do Poder de Tributar”, porque constituem escudo de proteção do contribuinte, ou seja, garantia fundamental do cidadão, insuprimível por meio de Emenda, conforme art. 60, § 4º, IV da CF. Os direitos e garantias fundamentais não são apenas aqueles enumerados no art. 5º, pois acham-se espraiados por todo o corpo da Constituição. Tudo que significa um “não” contra o Estado, a exemplo do que ocorre com os princípios tributários, configura uma garantia fundamental, protegida pela cláusula pétrea. Assim, uma Emenda que prescreva a inobservância de princípios tributários nem chega a nascer, porque a sua própria deliberação está vedada pela vontade soberana da Assembléia Nacional Constituinte.
A inconstitucionalidade do § 2º do art. 74, que determina a vinculação da receita ao FNS contra o expresso teor do art. 167, IV da CF, repousa em outro fundamento. Os dispositivos do corpo permanente da Constituição só podem ser excepcionados, de forma transitória, pelo próprio Poder Constituinte, tendo em vista a avaliação das circunstâncias e da conjuntura reinantes por ocasião da promulgação da Carta Magna. Não tem menor sentido e nem respaldo jurídico algum, passados mais de oito anos inserir disposições transitórias àquela Carta Política, contrariando ou esvaziando, ao sabor dos interesses do momento (3), o conteúdo das disposições permanentes que conferem segurança aos indivíduos. Uma Constituição deve ter o sentido de perenidade, para dar segurança a todos e não permitir a supressão temporária dos efeitos desta ou daquela norma, sob pena de manter o cidadão em permanente estado de guerra.
A Lei n. 9.311/96 é “n” vezes inconstitucional, pois não preenche qualquer dos três requisitos do art. 154, I, viola o § 5º do art. 153 e ofende o art. 167, IV da CF, tudo no equivocado pressuposto de que tais disposições constitucionais haviam sido cirurgicamente removidas pela Emenda que, como vimos, sequer chegou a nascer, apesar da barulheira feita em seu torno. E mais, o art. 18 da Lei, ao destinar ao FNS (4) a receita da CPMF para financiar genericamente as ações e os serviços de saúde, desobedeceu em bloco todos os princípios constitucionais orçamentários inviabilizando o mecanismo de controle e fiscalização da execução orçamentária, subtraindo o direito inalienável do povo de autorizar previamente as despesas públicas, uma conquista política que se seguiu ao princípio da prévia autorização para instituir e cobrar tributos. Por isso já escrevemos que o Parlamento Nacional ao aprovar a CPMF “plantou a semente do minifundo que, amanhã, poderá multiplicar-se” (5). Sabe-se que de lá para cá já foram criados o Fundo de Educação e o Fundo Rodoviário. Logo virão outros fundos e o orçamento anual, instrumento de exercício da cidadania, irá para o fundo do poço. Como se sabe os recursos de um fundo podem ser gastos da forma que for aventada pelo seu gestor, tal qual um senhor feudal. É preciso tomar cuidado para não confundir federalismo como feudalismo.
Agora os legisladores palacianos estão empenhados em agravar as inconstitucionalidades, desta vez, com afronta, também, de ordem moral. Querem isentar do malsinado imposto o ingresso de capital estrangeiro nas Bolsas e a sua saída, sob os mais indefensáveis argumentos: o estrangeiro nada tem a ver com a saúde do brasileiro; a incerteza nas regras do sistema financeiro pode espantar o capital estrangeiro (6). Em outras palavras, o nacional pode e deve suportar as incertezas nas regras do jogo; só o estrangeiro é que não pode. Até mesmo um leigo percebe que essa discriminação odiosa e intolerável contra o nacional fere o princípio da isonomia, duplamente reafirmado na Carta Política (arts. 5º e 150, II) de tão importante que é para a preservação do postulado do Estado Democrático de Direito. Ainda que fosse juridicamente possível essa isenção especial e específica para os alienígenas, os seus efeitos só poderiam produzir-se a partir de janeiro de 1998 (7), por força do princípio da anterioridade, que se aplica tanto para a hipótese de instituição ou majoração, como também, para o caso de isenção tributária. Afinal, subtrair receitas no curso do exercício seria o mesmo que provocar, premeditadamente, uma situação de desequilíbrio orçamentário, não se sabe com quê objetivo.
Sobre a Emenda Constitucional nº. 21, que prorrogou esse imposto inconstitucional, rotulado de contribuição, com o aumento de sua alíquota:
A EC nº 21, de 18 de março de 1999, ao pretender cobrar a contribuição provisória, a partir de junho de 1999, mediante prorrogação da vigência da Lei nº. 9.311/96 com a redação dada pela Lei nº. 9.539/97, incidiu em nova inconstitucionalidade.
De fato, descabe prorrogar o que não existe no mundo jurídico. Aquelas leis perderam vigência em janeiro de 1999. Assim, ainda que superadas as inconstitucionalidades antes apontadas, teria, necessariamente, que editar nova lei criando a CPMF nos limites autorizados pela Emenda, para ser cobrada após noventa dias, a contar dessa nova lei. Como está implicará contrariedade ao princípio da legalidade tributária.
NOTAS
1. Por isso esse malsinado imposto não contou com o apoio das autoridades da área econômica.
2. Imposto sobre operações financeiras.
3. Nem sempre legítimos.
4. Registre-se para o espanto de todos que esse Fundo, extinto pela Constituição Federal de 1988 (art. 165, II, c.c. art. 36 do ADCT), foi irregularmente recriado pela Lei n. 9.276/96 para ser novamente extinto, a partir de 31 de dezembro de 1996, através da MP n. 1.493-9/96, portanto, antes da entrada em vigor da CPMF. Como se vê, esse malsinado imposto é rico também em trapalhadas.
5. A Tribuna do Direito, setembro/96.
6. Interessante notar que esse capital meramente especulativo não foi afugentado na época do antigo IPMF.
7. Quando o esdrúxulo imposto estaria chegando perto de seu termo final de vigência.
*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)