Autor: Alexandre Sankievicz (*)
A doutrina brasileira tradicional tipifica o crime de desacato como o ato de desrespeitar, ofender ou menoscabar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Segundo a doutrina, tal conduta pode manifestar-se por palavras, gritos, gestos, escritos ou vias de fato quando presente o funcionário público. O crime atingiria não apenas a dignidade do servidor, mas também o prestígio funcional e da própria Administração Pública.
Luiz Regis Prado é um dos arautos entre os juristas nacionais que defende possuir o crime de desacato de caraterística similar ao crime de injúria, diferenciando-se deste quanto ao sujeito passivo.[i] Celso Delmanto, citando Nelson Hungria, destaca que o desacato pode consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas bem como qualquer palavra que redunde vexame, humilhação, irreverência ou desprestígio ao servidor público.[ii]
De acordo com a maior parte da doutrina, o desacato é punido de forma mais rigorosa do que a injúria, a calúnia e a difamação justamente porque, no desacato, o servidor é portador de interesse público e desempenha função de particular importância dentro do ordenamento jurídico. O desacato, além de implicar desrespeito à vítima em questão, acarretaria assim desrespeito ao próprio Estado, merecendo sanção mais gravosa independentemente de o servidor ter-se sentido ofendido.
O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.127-8/DF, declarou a inconstitucionalidade de parte do parágrafo 2° do artigo 7° da Lei 8.906/94, que conferia imunidade ao advogado em relação ao crime de desacato por suas manifestações no exercício da profissão.[iii] A eficácia do artigo encontrava-se suspensa desde 1994 em razão da concessão de medida liminar pelo próprio Supremo. Segundo o STF, a imunidade profissional do advogado não compreende o desacato, pois conflita com a autoridade do magistrado na condução da atividade jurisdicional.
O julgamento proferido na ADI 1.127-8/DF corrobora a opinião da doutrina nacional, na medida em que indica ser a tipificação do desacato essencial para preservar a autoridade da Administração Pública, neste caso o juiz. Assim, o crime de desacato seria compatível com o ordenamento jurídico brasileiro justamente em razão da necessidade de especial proteção da autoridade do servidor público e do prestígio da Administração.
Interpretação dos princípios elencados nas Convenções de Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988.
Nas democracias contemporâneas, a liberdade de expressão é fundamental para criar um povo forte e independente, que possa livremente criticar a correção da atividade estatal, questionar a legalidade e legitimidade de atos praticados por funcionários públicos e expor a corrupção ou a baixa qualidade na prestação de serviços. Dizer isso não significa afirmar que cidadãos estão livres para menosprezar servidores públicos com impunidade. O direito à liberdade de expressão pode ser sujeito a restrições, incluindo as que se baseiam na proteção da reputação de outrem.
No entanto, a fim de impedir restrições indevidas à liberdade de expressão, organismos nacionais e internacionais estabelecem critérios para avaliar se leis restritivas à liberdade de expressão são legítimas. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por exemplo, afirma que qualquer restrição à liberdade de expressão deve: a) buscar um objetivo legítimo, b) ser necessária em uma sociedade democrática, c) ser fixada por lei.[iv]
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por seu turno, afirma que limitações à liberdade de expressão devem: a) ser definidas de forma clara e precisa em lei; b) servir a um interesse autorizado pela Convenção Americana, c) ser necessária em sociedade democrática, estritamente proporcional e idônea para se alcançar o objetivo almejado. [v]
A questão, portanto, está em determinar se leis que criminalizam manifestações de pensamento passam no teste de proporcionalidade criado pelos distintos órgãos a fim de verificar sua compatibilidade com as constituições, convenções e tratados de direitos humanos. Nesta seara, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem dedicado especial atenção para legislações nacionais que tipificam o desacato, criminalizando expressões ofensivas a funcionários públicos no exercício de suas funções.
De acordo com a CIDH, a tipificação do crime de desacato confere à reputação dos servidores públicos, de maneira desproporcional, um grau maior de proteção do que a conferida a outros cidadãos, invertendo o princípio fundamental de que servidores públicos devem estar sujeitos a um grau de exposição e crítica maior do que particulares, em razão da natureza pública de suas funções. A Comissão Interamericana afirma que a tipificação do desacato dificulta o controle social e a crítica sobre as atividades dos servidores públicos, dificultando ações do público destinadas a prevenir e controlar eventual abuso de poder.[vi]
Segundo a Comissão, a tipificação do desacato para proteger a honra ou autoridade de funcionários públicos lhes confere de maneira injustificada uma proteção de que não dispõem os demais integrantes da sociedade. Esta distinção inverte diretamente o princípio fundamental de que, em um sistema democrático, submete-se o governo a mecanismos de controle; entre eles, a fiscalização da cidadania. Considerando que servidores públicos são para todos os efeitos o Estado, é direito dos indivíduos e da cidadania criticar e fiscalizar as ações e atitudes destes funcionários, naquilo que se refere ao desempenho da atividade pública.[vii] De acordo com a CIDH:
Além de constituir uma restrição direta à liberdade de expressão, a tipificação do desacato também restringe essa liberdade de maneira indireta, porque traz com o tipo penal a ameaça de prisão e multas para quem insulta ou ofende um funcionário público(…) O medo de sanções criminais necessariamente desencoraja aquelas pessoas que desejam expressar suas críticas em temas de interesse público, em especial quando a legislação não dispõe de critérios claros para distinguir entre fatos e opiniões expressadas.”[viii]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos também possui casos concernentes a leis sobre desacato. No caso, Palamara Iribane v. Chile, por exemplo, a Corte decidiu que a condenação do Sr. Palamara por desacato, em razão de suas críticas à atuação da Justiça Militar, constituiu uma violação do artigo 13.2 da Convenção. Segundo a corte, manifestações relacionadas a servidores públicos e outros que desempenham atividades de interesse público merecem um grau de proteção maior, pois permitem um debate aberto e essencial para o correto funcionamento do sistema democrático. Na ocasião, a corte declarou que:
“O controle democrático exercido pela sociedade, por meio da opinião pública, fomenta a transparência das atividades estatais e promove a responsabilidade dos servidores públicos sobre sua gestão, razão pela qual deve haver uma maior tolerância e abertura à crítica em face de manifestações emitidas por indivíduos no exercício deste controle democrático.”[ix]
A ameaça de responsabilização penal por desrespeito ao servidor público, mesmo quando a manifestação ocorre por meio de um juízo de valor, pode ser utilizada como método para suprimir a crítica. A maior proteção conferida a funcionários públicos produz uma estrutura jurídica que, em última análise, confere maior grau de proteção ao próprio Estado contra a crítica, o que é incompatível com os princípios concernentes à liberdade de expressão.[x] Nesta linha, a Declaração Americana sobre Liberdade de Expressão dispõe em seus princípios 10 e 11:
10. (…) A proteção à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas.
11. Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.
No ordenamento jurídico nacional, é interessante observar que o próprio Supremo Tribunal Federal já proferiu decisões que parecem contraditar o julgamento proferido na ADI 1.127-8/DF. No informativo 568/2009, o Supremo deixou claro que a honra de autoridades públicas e pessoas envolvidas em questões de interesse público deve possuir um grau de proteção menor do que aquela conferida a particulares, a saber.
Os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma.” (JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO CESAR – grifei)… observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicular opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender(…) [xi]
A concepção transmitida no trecho citado é incompatível com um tipo penal que, em abstrato, confere maior proteção à honra de funcionários públicos pelo simples fato de estes estarem atuando em nome do Estado, como quer a doutrina nacional. É verdade que a jurisprudência vem restringindo o âmbito de aplicação do desacato por meio da interpretação. Há decisões no sentido de que produtos de desabafo, refutação ou revolta momentânea não configuram desacato; bem como no sentido de que não se configura desacato quando a discussão é motivada pela exaltação mútua de ânimos com troca de ofensas. A crítica sem o propósito de injúria também não constitui desacato, segundo algumas decisões judiciais.[xii] A variação da jurisprudência, entretanto, é enorme e a insegurança jurídica, consequentemente, também.[xiii]
A situação jurídica nacional implica restrição direta e indireta à participação e manifestação política do cidadão comum, que: a) está sujeito as mais diversas interpretações judiciais da lei; b) não tem ciência da interpretação restritiva — mais benéfica — conferida à lei por alguns tribunais nacionais, mas somente possui uma ideia geral do texto explicitado no artigo 331 do Código Penal.
A ameaça de processo criminal, no caso em apreço, cria um profundo efeito silenciador sobre os cidadãos. Por receio de se ver como acusado em um processo criminal, o jurisdicionado não denuncia crimes e abusos cometidos por autoridades públicas ou mesmo se vê intimidado na hora de reclamar sobre a má prestação de serviços públicos. É a lei produzindo autocensura por meio do medo imposto pela criminalização.
Não é por outro motivo que, na última declaração conjunta proferida pelos relatores especiais para liberdade de expressão da ONU, OEA, da OSCE e da Comissão Africana de Direitos Humanos, destacou-se a necessidade de regimes jurídicos exigirem de funcionários públicos um grau de tolerância maior do esperado dos cidadãos comuns à crítica, bem como se ressaltou o caráter problemático de leis que protegem a reputação de entes abstratos como organismos públicos ou o próprio Estado.[xiv]
Ao declarar a inconstitucionalidade da lei que conferia imunidade ao advogado em relação ao crime de desacato por suas manifestações (ADI 1.127-8/DF), o Supremo Tribunal Federal focou apenas em uma suposta necessidade de conferir, por meio do direito penal, autoridade ao magistrado[xv]. Olvidou-se, no entanto, de que o respeito ao Poder Judiciário não pode ser obtido por meio da criação de uma blindagem que proteja os juízes de crítica, pois tal medida é algo incompatível com a liberdade de expressão ou com a ideia de uma sociedade democrática. Esqueceu-se de que o silêncio imposto com a finalidade de proteger a honra dos juízes, ainda que limitado, contribui mais para o cultivo de um ambiente de ressentimento e suspeição do que para a criação de um ambiente respeitoso. Não atentou para o fato de que nada é mais digno de respeito do que uma decisão que se mantém pela força do próprio argumento. Não alentou, por fim, para o caráter contraditório de se manter a imunidade do advogado quanto à injúria e difamação e ao mesmo tempo declarar a inconstitucionalidade da imunidade quanto ao desacato, já que, de acordo com a própria doutrina nacional, o desacato nada mais é do que uma espécie de injúria qualificada pelo sujeito passivo.
É certo que outros países democráticos possuem tipos penais que protegem a autoridade do magistrado durante a audiência, tal como o criminal contempt of court. No entanto, o desacato, ao menos da forma como disposto no Código Penal, vai muito além das salas dos tribunais. É algo que restringe de forma desarrazoada não somente a liberdade de expressão do advogado, mas de toda a sociedade. Da forma como escrito no Código e defendido pela doutrina nacional, ele vem fundado em uma concepção completamente equivocada: a necessidade de maior proteção à honra do servidor público, quando a real necessidade é de proteção da autoexecutoriedade do ato administrativo. A diferença para muitos pode ser tênue, mas é fundamental. Em um modelo se protege o ato, desde que constitucional e legal. No outro, protege-se, por meio da lei, a velha e arraigada cultura do “você sabe com quem está falando”.
Conclusão
Há duas perspectivas bem distintas concernentes à relação entre o Estado e o povo. De acordo com a primeira, o Estado e, consequentemente os servidores públicos, estão em uma posição privilegiada em relação ao povo e, portanto, não podem ser submetidos a críticas que possam diminuir a sua autoridade. De acordo com a segunda, agentes públicos são servidores do povo, que, em consequência, tem o direito de apontar erros, criticar e discutir questões relacionadas à legalidade e legitimidade dos atos praticados, ainda que a crítica possa gerar desconforto ao servidor.
No primeiro modelo, o cidadão deve ser grato pelos benefícios concedidos pelo Estado, como se esses benefícios fosses presentes oferecidos em razão da graça de seus servidores. A crítica aqui não é totalmente eliminada, mas apenas tolerada naquilo em que os próprios governantes e juízes qualificam como crítica construtiva. No modelo existente nas democracias contemporâneas, não obstante, a direito de crítica é algo bem mais amplo, pois o cidadão é alguém que possui o direito fundamental de questionar a legitimidade e legalidade dos atos proferidos por autoridades públicas. As democracias modernas valorizam o processo comunicativo de discussão como uma das melhores maneiras de tomar decisões coletivas concernentes a si e a seu Estado.
A criação de sanções, especialmente criminais, que possam inibir a crítica ou o debate é de particular relevância para o exercício dos direitos políticos. Quando estão em jogo questões de interesse público, as pessoas envolvidas devem possuir uma maior tolerância à crítica, justamente pelo fato de seus atos terem repercussões que vão além da esfera privada. Esta afirmação, como visto, expressa a jurisprudência não só do STF como de diferentes organismos de direitos humanos. Tal concepção de Estado é incompatível com um tipo penal que, em abstrato, confere maior proteção à honra de funcionários públicos do que a dos demais integrantes da sociedade.
Autor: Alexandre Sankievicz é consultor legislativo na Câmara dos Deputados. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.