André Luís Callegari
Verifica-se que alguns tribunais, diante da mercadoria descaminhada, têm se pronunciado pela criminalidade de bagatela tendo em vista o valor das mercadorias apreendidas. Fato esse que ocorre também no juízo de primeiro grau quando o titular da ação penal pede o arquivamento do inquérito ou a absolvição ao final do processo. Ou ainda, quando o próprio julgador, diante do valor da mercadoria apreendida, expede decreto absolutório.
Porém, cabe salientar que o critério adotado, ainda que busque uma solução justa, não parece o mais correto. Ocorre que as decisões pretorianas levam em conta o valor das mercadorias apreendidas como fator determinante da apreciação da bagatela no crime de descaminho. No entanto, não é esse o bem jurídico tutelado, ou seja, a mercadoria apreendida, logo não pode ela também determinar o critério do crime de bagatela.
A objetividade jurídica do crime de descaminho é a proteção do interesse arrecadador do Estado, ou seja, o imposto devido decorrente da introdução da mercadoria estrangeira no País. No dizer do professor Mirabete, em primeiro lugar o objeto jurídico do crime é o erário público, prejudicado pela evasão de renda que resulta do descaminho(1).
Nesse passo, o bem jurídico tutelado é o erário público, que deixa de arrecadar quando o tributo é iludido. Portanto, nessa ótica, a mercadoria apreendida não pode ser critério informador do crime de bagatela, visto que é sobre a mercadoria que incide o tributo e é este tributo que o Estato deixa de arrecadar. Então, na realidade, para considerarmos se o crime é de bagatela deveríamos analisar a alíquota que incide sobre a mercadoria e, sobre este percentual, ou seja, o tributo que deixa de ser recolhido, é dizer, é iludido, é que deveríamos considerar para a apreciação do crime de bagatela. É esse valor que o Estado deixa de arrecadar e não o valor da mercadoria apreendida.
Ocorre que na grande maioria dos casos, os operadores do Direito restringem-se a análise do laudo de avaliação das mercadorias apreendidas e não da alíquota que sobre elas incidiria. Torna-se claro que o valor das mercadorias apreendidas é bem superior ao tributo que o Estado deixa de recolher, então, esse critério é falho, devendo-se levar em conta a alíquota que incide sobre o produto e o valor do tributo iludido.
Esse enfoque deve ser realizado posto que há grande quantidade de mercadoria descaminhada, principalmente por pessoas de baixa renda, que formam a denominada economia informal. Diante desses argumentos, caberia a análise se realmente ocorre a adequação típica da conduta daquele que ilude o tributo e introduz mercadoria desacompanhada de documentação fiscal, visto que o tributo iludido é de pouca significância. Então, diante de cada caso concreto devemos analisar qual seria o prejuízo da União com a ilusão dos tributos, para, então, concluirmos se este valor justificaria a condenação do agente.
Com efeito, a conduta dos acusados corresponde, normalmente, ao tipo legal de crime previsto no art. 334, caput, do Código Penal, visto que a tipicidade, de acordo com sua concepção formal, sempre foi vista como mera correspondência entre uma conduta da vida real e o tipo legal de crime, constante da lei penal(2). Portanto, alguma conduta socialmente adequada ou mesmo insignificante pode ser alcançada pelo tipo legal de crime. Nesse caso, como lembra Francisco de Assis Toledo, não se pode exigir que o agente, para que sua conduta não configure um delito, aja sob o amparo de alguma causa de exclusão de ilicitude ou da culpabilidade. Seria fazer com que uma pessoa que age de acordo com os padrões vigentes na sociedade em que vive tenha que se justificar acerca de uma conduta desprezada ou até aceita pelos outros(3).
Para evitar situações de tal ordem, procura-se, atualmente, atribuir ao tipo penal, além do sentido puramente formal, um caráter material(4). Assim, pode-se afirmar que o comportamento humano, para ser típico, não só deve ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito, mas também ser materialmente lesivo a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovável(5).
Nesse passo, embora a conduta do sujeito do delito previsto no art. 334, CP, seja formalmente típica, entendemos não ser materialmente típica, nos casos em que a incidência da alíquota leve a um valor mínimo iludido posto que o dano social em tela é irrelevante, ou seja, o seu conteúdo valorativo é tão pequeno que a aplicação do Direito Penal não se faz necessária, posto que não se pode falar até mesmo em dano significativo ao bem jurídico tutelado, no caso em tela a União, que não recebeu os impostos devidos.
Portanto, para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o direito penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade(6).
As indagações que devem ser feitas são no sentido da significância lesiva da conduta do agente, ou seja, se materialmente poderemos considerar típica a conduta diante do tributo que foi iludido. Ainda, se houve ofensa significante ao bem jurídico tutelado ou se a ação descrita tipicamente revelou-se ofensiva ou perigosa ao bem jurídico tutelado. Portanto, a tipicidade não se esgota no juízo lógico formal de subsunção do fato ao tipo legal de crime.
Conforme o professor Odone Sanguiné, a imperfeição do trabalho legislativo faz com que possam ser consideradas formalmente típicas condutas que, na verdade, deveriam estar excluídas do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal(7). Ocorre que ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento indiscriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves (8).
O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crime sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal. No que diz respeito à origem, pode-se afirmar que o princípio já vigorava no direito romano, pois o pretor, em regra geral, não se ocupava de causas ou delitos insignificantes, seguindo a máxima contida no brocardo minimis non curat praetor(9).
Modernamente, como ensina Quintero Olivares, entende-se que o Estado não deva “recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se existir a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não-penais”(10). A utilização do direito penal nas hipóteses em que outros procedimentos sejam suficientes para reinstaurar a ordem pública não dispõe da legitimação da necessidade social, produzindo efeitos que contrariam os próprios objetivos do Direito(11). Com efeito, não podemos olvidar as lições do professor Eugenio Raúl Zaffaroni, quando menciona que o outro fundamento do princípio da insignificância reside na idéia da proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime. Nos casos de ínfima afetação do bem jurídico, o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste qualquer razão para imposição da reprimenda. Ainda a mínima pena aplicada seria desproporcional à significação social do fato(12).
Portanto, no caso da ilusão de tributos de ínfimo valor não podemos considerar que houve afetação do bem jurídico tutelado, não restando assim qualquer razão para a imposição da pena. A pena aplicada pelo delito praticado seria totalmente desproporcional em relação a este, não guardando qualquer relação com o moderno direito penal.
(1) Cf. MIRABETE, Julio Fabrini, Manual de Direito Penal, Parte Especial, v. 3, Atlas, 3ª ed., 1987, p. 352.
(2) Cf. MAÑAS, Carlos Vico, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito Penal, 1994, p. 52.
(3) Princípios Básicos de Direito Penal, Saraiva, 1987, p. 117.
(4) Cf. MAÑAS, Carlos Vico, ob. cit., p. 53.
(5) Cf. TOLEDO, Francisco de Assis, ob. cit., p. 119.
(6) Cf. MAÑAS, Carlos Vico, ob. cit., pp. 53/54.
(7) Observações sobre o princípio da insignificância, Fascículos de Ciências Penais, v. 3, nº 1, p. 46.
(8) Cf. ZIPF, Heinz, Introducción a la Política Criminal, p. 102.
(9) Cf. ACKEL FILHO, Diomar, O Princípio da Insignificância do Direito Penal, JTACrimSP, 94/73.
(10) A citação é de Carlos Vico Mañas, ob. cit., pp. 56/57.
(11) Cf. BATISTA, Nilo, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 87.
(12) Tratado de Derecho Penal, t. 3, p. 554.
André Luís Callegari
é advogado e professor de direito penal na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos /RS.