Crime de Porte de Arma de Fogo ou Correlato Cometido por Integrante de Órgão Público ou Entidade Privada
Nos termos do art. 20 do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003), “nos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6.º, 7.º e 8.º” da mesma Lei.
A agravação da pena só é aplicável aos delitos de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14), disparo de arma de fogo (art. 15), posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito ou proibido (art. 16), comércio ilegal de arma de fogo (art. 17) e tráfico internacional de arma de fogo (art. 18). Além disso, exige-se que o fato seja cometido por integrantes dos órgãos e empresas mencionados nos arts. 6.º, 7.º e 8.º. O texto refere-se a integrantes das Forças Armadas, órgãos policiais etc.; quanto às empresas, diz respeito às de segurança privada e entidades de desporto.
Interpretação literal da norma conduz à errônea afirmação de que é suficiente que o sujeito ativo do crime seja integrante de órgão público especificado na lei ou de empresa privada referida no texto legal para que incida a agravação da pena. Tal conclusão é insustentável. A circunstância só pode atuar quando praticado o delito no exercício da função ou em razão dela, ainda que fora da atividade funcional, ou na realização de atividade profissional ou empregatícia[1]. Exige-se nexo de causalidade entre o crime e a função de natureza pública ou atividade privada. Caso contrário, não se aplica a circunstância agravadora da pena[2].
O legislador, ao elaborar o art. 10, § 4.º, da revogada Lei n. 9.437/97[3], que previa aumento de pena em face da qualidade funcional do agente, sabiamente preferiu a expressão “servidor público” a “funcionário público”, empregada no art. 327 do Código Penal, fonte de infindáveis críticas e dúvidas de interpretação[4]. Adotado pelo estatuto constitucional[5], atualmente o termo “servidor” é recomendado pela doutrina em face de sua abrangência, estendendo-se a todos que estão ligados à Administração Pública por uma relação de caráter profissional[6].
A Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, alterando a redação dos arts. 37, V, X e XIV, 38, caput, e 39, §§ 2.º e 8.º, da Constituição Federal, consagrou a expressão “servidor público”. O art. 20 da Lei n. 10.826/2003, contudo, emprega os termos “integrante dos órgãos referidos nos arts. 6.º, 7.º e 8.º”. Ocorre que a locução “servidor público” dava a impressão de que bastava à agravação da pena a qualidade funcional do autor, qualquer que fosse a sua classificação. Daí por que a Lei nova restringiu o seu alcance, devendo ser aplicada somente aos integrantes de determinados órgãos de natureza pública.
Perdura, entretanto, a orientação da nossa interpretação, válida também para as empresas privadas: não é suficiente que o sujeito seja integrante de órgão público, sendo necessário que o fato se relacione com o exercício da sua atividade, de forma direta ou indireta (no exercício da função ou fora dela, mas por sua causa). Como afirmou o então Juiz damião cogan, analisando a Lei antiga, só é admissível a agravação da pena na hipótese de a condição funcional pública “servir como meio de tornar mais gravosa a conduta”, sendo inaplicável “quando o servidor acusado estiver agindo como qualquer do povo”[7]. Suponha-se que um policial militar, em período de férias, numa pescaria, dispare arma de fogo pertencente a um dos colegas. O fato não se relaciona com o exercício da função pública, nem é cometido em razão dela. Se atendidos os elementos do tipo, deve responder pelo delito do art. 15 da Lei n. 10.826/2003. Mas sem a causa de aumento da pena.
[1] Nesse sentido, abordando o art. 10, § 4.º, da antiga Lei n. 9.437/96: TACrimSP, 2.ª Câm., ACrim n. 1.262.505, rel. Juiz Osni de Souza, RT 794/626.
[2] Nesse sentido, apreciando a legislação anterior: TACrimSP, 1.ª Câm., ACrim n. 1.145.331, rel. o então Juiz Damião Cogan, RT 771/621; TACrimSP, 2.ª Câm., ACrim n. 1.262.505, rel. Juiz Osni de Souza, RT 794/626.
[3] Antiga Lei de Armas de Fogo.
[4] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1956. vol. 4, p. 59; FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7.ª ed. São Paulo: RT, 2001. vol. 2, nota ao art. 327; GOMES, Eloy Ojea. Lei n. 9.437/97: quem é servidor público? Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 70, p. 7, set. 1998.
[5] Carta Magna, arts. 37 a 43.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Regime constitucional dos servidores da administração direta e indireta. 2.ª ed. São Paulo: RT, 1991. p. 50-51.
[7] TACrimSP, 1.ª Câm., ACrim n. 1.145.331, rel. o então Juiz Damião Cogan, RT 771/621.
* Damásio E. de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS