CRIME ORGANIZADO E INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA

Fábio Ramazzini Bechara

Dispõe o art. 2.º, III, da Lei Federal n. 9.296/96 que a interceptação telefônica não será admitida quando o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção. Já o art. 5.º da mesma Lei prescreve que a interceptação não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

Indaga-se: a interceptação telefônica poderia ser admitida na hipótese de crime apenado com detenção conexo ao crime apenado com reclusão? A interceptação telefônica pode ser renovada mais de uma vez?

Ambas as questões foram objeto de recente julgamento pela 5.a Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RHC n.13.274, em 26.8.2003, sendo relator o Ministro Gilson Dipp. Em primeiro lugar, no que se refere ao crime apenado com detenção conexo com o crime apenado com reclusão, entendeu-se pela não-exclusão precipitada desse crime, pois cabe ao juiz avaliar se há provas e definir eventual condenação, até “porque é impossível em escuta interceptada separar as conversas em razão de os fatos serem apenados de forma mais grave ou mais branda”. Já no que se refere à renovação da medida, o Ministro relator sustentou a sua admissão por igual prazo inúmeras vezes, pois a lei não restringe a quantidade de tal renovação.

É importante consignar que a decisão judicial em exame, ao admitir a extensão e a validade da prova quanto aos crimes conexos apenados com detenção, bem como a possibilidade de renovação ilimitada da medida, observado o prazo legal de 15 dias, levou em consideração o fato de que os acusados situam-se na chamada macrocriminalidade, cuja investigação passou a ser uma exigência da comunidade internacional e cujas normas devem ser interpretadas levando-se em conta essa nova realidade reconhecida.

Os crimes praticados por associações criminosas geram grau de perturbação acentuado e diferenciado da criminalidade comum. Essa percepção faz com que se exija não somente uma punição mais rigorosa dos criminosos, mas principalmente a adoção de tratamento processual especial e particularizado. A legislação brasileira, em que pesem as inúmeras contradições e eventuais incoerências técnicas, é sensível a essa situação anunciada e, de fato, contempla um procedimento diferenciado ao dito crime organizado. Tais diferenciações evidenciam-se pela presunção de maior necessidade de determinados instrumentos como a prisão cautelar, a interceptação telefônica, a busca domiciliar, a quebra de sigilo bancário e fiscal, o seqüestro de bens e, ainda, a gravação ambiental e a infiltração de agentes na forma da Lei Federal n. 9.034/95. Em todas essas hipóteses, verifica-se maior restrição às liberdades individuais, justificada pela imperatividade de se tutelar o interesse coletivo, cuja gravidade, medida pelo comprometimento social gerado, exige maior rigor por parte do Estado.

A Constituição Federal, como sistema aberto de normas, e dentro da autoconformação e coerência exigidas entre as inúmeras liberdades públicas contempladas, encontra espaço mínimo de tolerância em todas elas, de tal sorte que a regra posta comporta limitações legítimas de caráter excepcional. Dessa dimensão é que aflora o denominado princípio da proporcionalidade, derivado do primado da isonomia, e cuja atuação viabiliza o equacionamento das situações de conflito verificadas entre direitos fundamentais ou entre princípios constitucionais. Segundo WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, para resolver o grande dilema da interpretação constitucional, representado pelo conflito entre seus princípios, aos quais se deve igual obediência, por ocuparem a mesma posição na hierarquia normativa, preconiza-se o recurso a um “princípio dos princípios”, o da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o(s) outro(s) o mínimo possível, e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu “núcleo essencial”, em que se acha esculpida a dignidade humana.[1]

O balanceamento dos bens, ou seja, a ponderação, constitui uma técnica de decisão que faz referência a duas situações diversas que encontram uma adequada relação entre si. Fala-se de relações intercorrentes entre indivíduo e comunidade, e tal ponderação se substancia na medida dos direitos e deveres ex parte individui e ex parte societatis. Genericamente, pode-se notar que o critério da proporcionalidade vem sendo utilizado para submeter à verificação as leis que produzem a colisão entre diversos direitos fundamentais individuais ou de grupo.[2] Trata-se de um princípio jurídico material, que se converte em fio condutor metodológico da concretização judicial da norma. A ponderação de bens constitui, enfim, um processo racional.[3]

Tratando-se de crime organizado, que se caracteriza por uma estrutura complexa e articulada, as dificuldades na obtenção da prova são acentuadas, o que leva os órgãos de investigação a necessitarem de determinados instrumentos mais ágeis, embora muitas vezes limitadores de direitos, em detrimento de outros mais convencionais, cuja eficiência fica muito aquém do exigido. A hipótese em estudo, exatamente pela singularidade que a diferencia, pode vir a exigir ao longo da investigação diversas renovações do prazo da escuta, constatada sempre a imprescindibilidade da providência, assim como a abrangência do crime conexo apenado com detenção. Integra a lógica do razoável a possibilidade de renovação ilimitada, justamente em razão da impossibilidade de se prescrever e dimensionar abstratamente quanto tempo pode levar uma investigação. O receio que porventura os críticos possam vir a alimentar é afastado por conta do controle judicial permanentemente realizado, seja quanto à verificação dos pressupostos legais, seja a partir da leitura e análise dos relatórios encaminhados pela autoridade que investiga.

A incriminação dessas organizações visa a produzir um efeito de desestabilização, tomando por conta o grave abalo provocado ao sentimento de intimidade e fidelidade dos cidadãos aos valores propostos no ordenamento. Nessa perspectiva, a atenção do legislador ao perigo de perturbação da ordem pública tem por função ressaltar a justificativa da repressão em razão da sua danosidade social, não sendo tolerável que os cidadãos suportem as sensações de mal-estar, repulsa ou indignação, que, todavia, possam prejudicar a sua postura de fidelidade aos valores culturais mantidos como parte integrante das condições gerais que promovem e favorecem a consolidação da companhia social.[4]

Da mesma forma que não se concebe que o Estado utilize os mesmos instrumentos dos quais se valem os criminosos, não se pode negar que a postura do exegeta, por ocasião da interpretação e aplicação das normas incidentes, deverá buscar a precisão e a forma mais adequada de estabelecer a resposta estatal, que deve ser mais enérgica e, portanto, proporcional à gravidade da situação apresentada.[5] Essa noção conduz inevitavelmente ao estrangulamento e à possibilidade de maior relativização dos direitos fundamentais que abrigam as liberdades públicas individuais. Tal relativização é justificada a partir da indiscutível necessidade de preservação da ordem pública.

Em suma, a partir das considerações expostas, fica evidente o significativo avanço protagonizado pelo Superior Tribunal de Justiça, que buscou adequar o sentido da norma à realidade do caso a partir de um raciocínio constitucionalmente legítimo, autorizado e fundado no princípio da proporcionalidade.

[1] Princípio da proporcionalidade e teoria do Direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 269.

[2] REGASTO, Saverio Francesco. L’interpretazione costituzionale. Rimini: Maggioli Editore, 1997. p. 146.

[3] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 586-587.

[4] DE VERO, Giancarlo. Tutela penale dell’ordine pubblico. Milano, Dott: A. Giuffrè Editore, 1988. p. 292.

[5] Idem, ibidem. p. 277: “Va poi ricordato – eppure si tratta di uma considerazione di rilievo assolutamente prioritario sul piano politico-criminale – che uma prospettiva di anticipazione sia pure differenziata di tutela dei beni offesi daí delitti-scopo postula uma sera ricognizione della convenienza di siffatto livello di intervento del magister penale. (…) pur tuttavia non ci può esimere dal ricorrere al vaglio del fondamentale criterio di proporzione, quando si tratta di stabilire se a determinati interessi debba essere accordata la particolare protezione contro l’espozione a pericolo di tipo diffuso promanante dalla sola esistenza della struttura criminosa organizzata”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento