Crimes Hediondos e a concessão da suspensão condicional do processo (sursis)

Ricardo Oliveira Zanella

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inc. XLIII, trouxe à tona, como resposta a vários setores da sociedade que cobravam uma maior severidade aos infratores de crimes de maior monta, o surgimento dos Crimes Hediondos, determinando que os mesmos fossem inafiançáveis, e insuscetíveis de graça e anistia.
O legislador, com o advento da Lei n. 8972/90, que regulamentou os crimes hediondos, ao invés de proceder a definição de crimes hediondos achou melhor determina-los restritivamente, e o fez dessa forma para subtrair o subjetivismo doutrinário e jurisprudencial, tão capazes de realizar distorções, como se vê freqüentemente em nosso país.
Pelo artigo 1o da referida Lei são considerados crimes hediondos na forma consumada ou tentada: o homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V), o latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), a extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º), o estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), o atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único),a epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), o crime de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956). Mais recentemente a Lei nº 9.695, de 20.08.98 acrescentou ao rol dos crimes hediondos a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais.
Essa escolha discricionária dos crimes, feita pelo legislador, abarcou os anseios da sociedade e a inclusão futura de outros tipos no rol dos crimes hediondos dependerá da indignação da sociedade em relação a certas figuras delituais. Se, por exemplo, houver um número muito grande de roubos a mão armada a ponto de fazer a sociedade se revoltar, o legislador num instante incluirá esta forma delitual no rol dos crimes hediondos. Portanto, pode-se definir crimes hediondos como aqueles que provocam uma indignação e revolta na sociedade em uma determinada época , tendo, porém, sua hediondez que ser considerada em lei.
A Lei n. 8.072/90, em seu artigo 2o e parágrafos, proíbe concessão de anistia, graça e indulto, e progressão do regime, assim como a concessão de fiança e liberdade provisória para os crimes considerados hediondos.
Percebe-se que a Lei dos Crimes Hediondos, destoou da sistemática legal criminal ao dispor que os crimes com caráter hediondo, determinados por aquela lei, serão punidos sob o regime integralmente fechado. O Código Penal em seus artigos 33 a 36 e a Lei de Execuções Penais adotam um sistema progressivo de cumprimento de pena, que nas palavras de Carlos Roberto Bittencourt, “possibilita ao próprio condenado, através de seu procedimento, da sua conduta carcerária, direcionar o ritmo de cumprimento da sua sentença, com mais ou menos rigor”1. Porém, devemos lembrar que, essa dissonância não afronta o ordenamento legal, uma vez que a Constituição Federal em seu art. 5o, XLVI conferiu ao legislador ordinário a competência para dispor sobre a individualização da pena.
Uma coisa importante a ser observada é o disposto na Lei 9457/97, que tipifica e disciplina o crime de tortura. Esse diploma estabelece que o condenado por crime de tortura iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Ora, se o condenado iniciará cumprimento em regime fechado, subtende-se que, respeitadas as condições legais, poderá progredir. É certo também que a danosidade do crime de tortura é a mesma ou até maior que àquela contida nos crimes hediondos, razão pela qual, através de uma interpretação extensiva pode-se concluir pela aplicabilidade da progressão de regime prisional nos crimes hediondos.
Uma interessante questão é saber acerca da possibilidade da concessão ou não de sursis ao condenado por crime hediondo.

O sursis da forma como é tratado no CP em seus artigos 77 a 82 e na Lei de Execução Penal (artigo 156 e seguintes) consiste na possibilidade da suspensão condicional da pena pelo juiz obedecidos certos requisitos. “O réu não inicia o cumprimento da pena, ficando em liberdade condicional, por um período, chamado período de prova, que varia de dois a quatro anos. Se o juiz marca o prazo de dois anos, quer dizer que o condenado ficará durante esse período em observação. Se não praticar nova infração penal e cumprir as condições impostas pelo juiz, este, ao final do período de prova, determinará a extinção da pena que se encontrava com sua execução suspensa. Se durante o período de prova houver revogação do sursis o condenado cumprirá a pena que se achava com a execução suspensa”2
Então, por exemplo, um indivíduo com mais de 70 anos condenado a quatro anos de pena privativa de liberdade por atentado violento ao pudor e, sabendo-se que faz juz aos requisitos do sursis etário, existe possibilidade da concessão da suspensão condicional da pena?
A Lei 8072/90 não proíbe a concessão de sursis para os condenados por crimes hediondos. Quando a Lei dos crimes hediondos proíbe a progressão da pena, diz respeito exclusivamente ao regime prisional, ou seja ao local de cumprimento da pena, nada tendo a ver com o sursis , que é um modo especial de cumprimento de pena.
Há entendimento contrário, como se vê neste acórdão do STJ:
ESTUPRO. CRIME HEDIONDO. REGIME PRISIONAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA.
– A LEI DOS CRIMES HEDIONDOS – LEI N. 8.072/90 -, AO ESTABELECER NO SEU ART. 2., PAR. 1., QUE OS DELITOS NELA ARROLADOS DEVEM SER PUNIDOS SOB O RIGOR DO REGIME FECHADO INTEGRAL, EMBORA DISSONANTE DO SISTEMA PRECONIZADO NO CÓDIGO PENAL – ARTS. 33/36 – E DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS, QUE PRECONIZAM A EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE DE FORMA PROGRESSIVA, NÃO AFRONTA O TEXTO CONSTITUCIONAL, POIS A CARTA MAGNA CONFERIU AO LEGISLADOR ORDINÁRIO COMPETÊNCIA PARA DISPOR SOBRE A INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (ART. 5., XLVI), SITUANDO-SE AQUELE DIPLOMA LEGAL NA LINHA FILOSÓFICA DO ESTATUTO MAIOR, QUE ESTABELECEU PRINCÍPIOS RIGOROSOS NO TRATO DOS CRIMES HEDIONDOS (ART. 5., XLIII).
– O REGIME PRISIONAL FECHADO INTEGRAL E INCOMPATÍVEL COM O INSTITUTO DA SUSPENSÃO DA PENA.
– RECURSO ESPECIAL CONHECIDO. (RESP 91852 – MG, 6ª Turma, Rel. Min. Vicente Leal, j. 01/04/1997, D.J.U. de 05/05/1997, p. 17139).
Mesmo entendimento se encontra presente neste acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul:
“Não se concede sursis para os chamados crimes hediondos, observando-se o que dispõe o artigo 2º., parágrafo 1º., da Lei n. 8.072/90. A Lei n. 8.072/90 não foi revogada pela Lei n. 9.455/97, prevalecendo o regime integral fechado para cumprimento da pena.” (TJMS – ACr – Classe A – XII – N. 58.708-8 – Campo Grande – 2ª T. – Rel. Des. Carlos Stephanini – J. 10.06.1998)

Não sendo o sursis considerado atualmente um benefício concedido no curso da execução penal, ou uma forma de progressão, mas simplesmente o cumprimento da pena em regime comum, ousamos discordar deste posicionamento da 6o Turma do Superior Tribunal de Justiça e do acórdão do TJMS, pois, como dito acima, a lei que regula os crimes hediondos não vedou de forma expressa a concessão do sursis, e qualquer interpretação extensiva do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 se caracteriza como uma analogia in malan partem, totalmente incompatível com os princípios do Direito Penal. A proibição a este tipo de analogia visa evitar o desrespeito ao princípio da legalidade.
Devemos lembrar que se o indivíduo descumprir as condições impostas pelo juiz para a concessão da susrsis, a mesma será revogada e ele cumprirá a pena em regime integralmente fechado, conforme determina a Lei de Crimes Hediondos. No mesmo diapasão, se o condenado por crime hediondo não fizer juz a concessão do sursis, como por exemplo, no caso de as circunstâncias judiciais não o serem favoráveis, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
Ou seja, se o condenado preenche os requisitos do sursis, sua pena deverá ser suspensa; se não, a cumprirá integralmente em regime fechado, sendo-lhe vedada a progressão.
Várias decisões já vem seguindo esta linha de pensamento, como as que se seguem:
“a imputação de crime hediondo pode conduzir à presunção de incompatibilidade da suspensão condicional da pena. Todavia, inexiste norma expressa a impedir a concessão, além de ser impossível a interpretação extensiva a refletir analogia in mallam partem, de forma a afligir a situação do condenado. Tal se mostra intolerável ante um sistema que prestigiou sensivelmente a presunção de inocência e a plenitude da defesa …” (TJSP in RT 676/298, rel. Des. Renato Nalini)

“…inexistindo na Lei 8.078/90 norma expressa a vedar a concessão de sursis, não pode o intérprete lançar mão de interpretação extensiva ou dilatória para suprimir o benefício. Não há, também, incompatibilidade lógica entre o sursis e a norma do art. 2º, §1º, já que inexiste qualquer relação entre regime de cumprimento de pena e este instituto. O que importa para suspensão condicional da pena é o preenchimento dos seus requisitos legais estabelecidos no CP, independentemente do regime prisional imposto” (STJ in RT 739/572).
Talvez poderia se pensar que pelo simples fato do autor ter cometido um crime hediondo, já não faria juz a concessão da suspensão condicional do processo, uma vez que as circunstâncias judiciais não o favoreceria, porém muito das vezes, aliás, na quase totalidade das situações em que o réu é condenado a uma pena compatível com a concessão do sursis, o crime é tentado ou o agente tem uma participação delitual de menor monta, ou o agente é maior de 70 anos ou doente, o que se torna perfeitamente possível, em alguns casos que o magistrado conceda a suspensão, que visa “a mais rápida e eficaz inserção infrator na sociedade”3.
Portanto, conclui-se que é totalmente possível a substituição da pena pelo sursis, uma vez que não existe norma expressa na Lei dos Crime Hediondos a vedar essa concessão, sendo impossível fazer uma interpretação extensiva analógica, pois no caso em comento seria uma analogia in malan partem, proibida pelo Direito Penal. Revogado o sursis, o condenado cumpriria a pena no regime fechado de acordo com os preceitos do artigo 2o da Lei dos Crimes Hediondos.

Notas
1 Manual de Direito Penal: parte geral, volume 1 – 6 ed. São Paulo: Saraiva ,2000, pág. 424.
2 Jesus, Damásio E. de, Direito Penal, 1o volume – Parte geral.-25 ed. –São Paulo : Saraiva, 2002.
3 Lima Filho, Altamiro de Araújo Lima, Anotações ao Código Penal: parte geral – 2o ed. Araguaia Editora Jurídica, 2000, pág. 310.

Luiz Cláudio Barreto Silva é Advogado em Cataguases-MG

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