Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Direito Penal, Político e Econômico
Especialista em Direito Constitucional.
Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós)
Coordenador Cultural da Escola Superior
do Ministério Público do Estado de São Paulo
Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia
Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador
do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP)
Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)
Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP)
Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal
Membro da Comissão Regional de Bioética e Biodireito da OAB –
São José do Rio Preto-SP
Autor do livro: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001)
SUMÁRIO: 1. Abordagem do tema; 2. Natureza e objeto da execução penal, 2.1. Natureza da execução penal, 2.2. Objeto da execução penal; 3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal; 4. Conclusão.
1. Abordagem do tema
Conforme sentenciou ROBERTO LYRA, é pela execução, em última análise, que vive a lei penal.
Que a lei penal não tem “andado bem” é cediço. Os mais variados “equívocos legislativos” nos dão conta do caos em que se encontra a produção legislativa em matéria penal e processual. A tal respeito temos nos pronunciado não é de hoje.[1]
Está em fase de estudos o Projeto que modificará a Lei de Execução Penal. É preciso, então, estabelecer reflexões sobre algumas questões doutrinárias e práticas da Lei, conforme buscaremos nas próximas linhas, dentro da singela visão que o trabalho propõe, estabelecendo afirmações e questionamentos relevantes para o estudo do tema.
2. Natureza e objeto da execução penal
2.1. Natureza da execução penal
Jurisprudência e doutrina nos apontam as divergências reinantes sobre a natureza da execução penal.
Para alguns, “a execução criminal tem incontestável caráter de processo judicial contraditório” (TACrimSP, HC nº 307.582/5, 2ª Câm., rel. juiz José Urban, j. em 10.07.97, v.u.). É de natureza jurisdicional (JUTACrimSP 94/99).
ADA PELLEGRINI GRINOVER ensina que: “Na verdade, não se nega que a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Nem se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes estaduais: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos estabelecimentos penais”.[2]
Segundo PAULO LÚCIO NOGUEIRA, “a execução penal é de natureza mista, complexa e eclética, no sentido de que certas normas da execução pertencem ao direito processual, como a solução de incidentes, enquanto outras que regulam a execução propriamente dita pertencem ao direito administrativo”.[3]
Por fim, JULIO FABBRINI MIRABETE anota que: “… afirma-se na exposição de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal”.[4]
Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante a intensa atividade administrativa que a envolve.
Embora envolvida intensamente no plano administrativo, não se desnatura, até porque todo e qualquer incidente ocorrido na execução pode ser submetido à apreciação judicial, por imperativo constitucional, o que acarreta dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de Execução Penal é meramente exemplificativo.
Não bastasse, as decisões que determinam, efetivamente, o destino da execução, são jurisdicionais.
2.2. Objeto da execução penal
Visa-se pela execução fazer cumprir o comando emergente da sentença penal condenatória ou absolutória imprópria [5], assim considerada aquela que não acolhe a pretensão punitiva, mas reconhece a prática da infração penal e impõe ao réu medida de segurança.[6]
3. Artigos 3º a 8º da Lei de Execução Penal
Diz o art. 3º da LEP: “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.
São várias as conseqüências da condenação e os direitos atingidos pela sentença. Podemos citar, exemplificativamente: a. lançamento do nome do réu no rol dos culpados (art. 393, II, do CPP), providência que após a Constituição Federal de 1988, por imposição do art. 5º, LVII, só é possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; b. prisão do réu (cf. art. 393, inc. I, do CPP, arts. 321 e s., e 594, do mesmo Codex; c. tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I, do CP e art. 63, do CPP); d. perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé: dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, porte ou detenção constitua fato ilícito (art. 91, II, alínea “a”, do CP); do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso (art. 91, II, alínea “b”, do CP); e. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo (art. 92, I, do CP); a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos a pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado (art. 92, II, do CP); a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso (art. 92, III, do CP); f. constitui obstáculo à naturalização do condenado (art. 12, II, alínea “b”, da CF); g. suspensão dos direitos políticos enquanto perdurar os efeitos (art. 15, III, da CF); g. induz reincidência (art. 63, do CP); h. formação de título para execução de pena ou, no caso de semi-imputabilidade, medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial ou internação (arts. 105 e 171, da LEP).
De outro vértice, não são atingidos pela sentença penal condenatória os seguintes direitos: a. inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, caput, da CF); b. de igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I, da CF); c. de sujeição ao princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF); d. de integridade física e moral, não podendo ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III e XLIX, da CF; Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997); e. liberdade de manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5º, IV, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); f. direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, da CF; Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, alterada pela Lei nº 7.300, de 27 de março de 1985); g. liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos (art. 5º, VI, da CF); h. de não ser privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII, da CF); i. expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, da CF); j. inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X, da CF); k. inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer (art. 5º, XII, da CF); l. plenitude da liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar (art. 5º, XVII, da CF); m. o direito de propriedade (material ou imaterial), ainda que privado, temporariamente, do exercício de alguns dos direitos a ela inerentes (art. 5º, XXII, da CF); n. o direito de herança (art. 5º, XXX, da CF); o. o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder, e obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situação de interesse pessoal (art. 5º XXXIV, alíneas “a” e “b”, da CF); p. direito à individualização da pena (art. 5º XLVI, da CF); q. ao cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII, da CF); r. relacionados ao processo penal em sentido amplo (art. 5º, LIII a LVIII, entre outros, todos da CF); s. direito de impetrar habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção e habeas data (art. 5º, LXVIII, LXIX, LXXI e LXXII, da CF), com gratuidade (art. 5º, LXXVII, da CF); t. à assistência jurídica integral gratuita, desde que comprove insuficiência de recursos (art. 5º LXXIV, da CF); u. indenização por erro judiciário, ou se ficar preso além do tempo fixado na sentença (art. 5º, LXXV, da CF).
Comporta destaque o direito de “sujeição ao princípio da legalidade”.
Com efeito, a Lei de Execução Penal estabelece diversos benefícios em favor dos executados, sendo certo que tais não são efetivados durante a execução. Onde, então, a legalidade? Qual legalidade?
Legalidade é a estrita observância da Lei ou o que é possível praticar em razão do descaso do Estado?
O que se dizer, então, do direito à “individualização da pena” ?
É sabido que o processo individualizador se desenvolve em diversas fases. Inicia-se com a individualização formal, passa pela judicial, e culmina com a individualização na execução.
Como se afirmar, entretanto, que a individualização ocorre na execução?
Sabemos que em completa desatenção ao art. 5º da LEP [7], não há uma devida classificação do condenado ou do internado.
Como regra, também não há um “programa individualizador” para a execução das penas, restando no vazio o art. 6º da Lei de Execução Penal.
Em relação ao exame criminológico a situação não é diversa.
A despeito do que vem determinado nos arts. 8º e 9º da LEP, é do conhecimento de todos que não se dispõe de pessoal capacitado e treinado, para a realização do exame criminológico, que quando é feito, muito pouco ou quase nada de seguro aponta.
A bem da verdade, na maioria das comarcas do Estado de São Paulo tal exame é substituído por um parecer apresentado por Assistente Social, que não dispõe de conhecimento específico para a análise do comportamento do criminoso, restringindo seu trabalho a uma única entrevista. Soma-se a tal relatório de entrevista um parecer psicológico também decorrente de um único encontro.
O resultado, evidentemente, não poderia ser outro.
Realizam-se tais entrevistas e utilizam-se tais trabalhos técnicos, mais pelo formalismo do que pelo conteúdo.
4. Conclusão
A crise instalada na execução penal se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso.
É certo que, na medida em que não se efetivam as regras da execução penal, pune-se o condenado duas vezes.
Contudo, a apenação maior recai sobre a sociedade ordeira que financia, com o pagamento de impostos, taxas etc, a estruturação de um sistema que idealiza, busca e não atinge, mercê do descaso daqueles que foram eleitos e são pagos com o fruto do trabalho e do esforço dos que a integram.
A parcela ordeira da população é, no mínimo, triplamente vítima.
Vítima do medo; do crime, e também da inércia/ineficiência de seus representantes junto a Poderes Instituídos, há muito fracassados ante a incontida ascensão do império em que reina absoluta a ilicitude penal.
Notas:
1. MARCÃO, Renato Flávio, e MARCON, Bruno. Direito Penal brasileiro: do idealismo normativo à realidade prática. RT 781/484-96. Disponível na internet:
http://www.juridica.com.br; www.mp.sp.gov.br; www.direitopenal.adv.br; www.saraivajur.com.br; www.jusnavigandi.com.br; www.direitonet.com.br; www.emporiodosaber.com.br; www.bpdir.adv.br; www.suigeneris.pro.br; www.apoena.adv.br; ww.teiajuridica.com.br; www.mundojuridico.com.br
2. Execução Penal, São Paulo : Max Limonad,1987, p. 7.
3. Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo : Saraiva, 1996, p. 5/6.
4. Execução Penal, São Paulo : Atlas, 1997, p. 25.
5. MARCÃO. Renato Flávio. Lei de execução penal anotada. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 3.
6. CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. São Paulo : Saraiva, 1998, p. 342.
7. “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”.