Antonio Carlos Santoro Filho
Para Claus Roxin o que fundamenta a imputação objetiva do resultado é o incremento do risco por parte do agente, de forma a ultrapassar os limites do permitido.
Assim, um resultado deve ser imputado ao autor da conduta mesmo que não seja certo, mas ao menos provável ou possível que a realização do comportamento conforme ao direito o evitasse. O que fundamenta a imputação, pois, é a criação de um perigo proibido de modo juridicamente relevante, e não a certeza da causação do fato pela ação.
Adota este posicionamento, em nossa doutrina, Damásio Evangelista de Jesus (1), para quem o princípio do aumento do risco encontra especial utilidade “e é aplicável às hipóteses em que, diante da interpretação dos Tribunais brasileiros, mostra-se difícil apurar o nexo causal em determinados delitos ambientais”.
Dois exemplos desta tese são emblemáticos:
1º Exemplo. O motorista de um caminhão pretende ultrapassar um ciclista, mas não respeita a distância mínima prevista em lei. Durante a ultrapassagem o ciclista, que está embriagado, em virtude de reação decorrente deste estado, move a bicicleta para a esquerda, caindo sob os pneus traseiros da carga do caminhão. Verifica-se que o resultado também teria provavelmente ocorrido, ainda que tivesse sido respeitada a distância mínima exigida (2).
2º Exemplo. O gerente de uma fábrica entrega a seus trabalhadores pêlos de cabra chineses, sem tomar as necessárias medidas de desinfecção. Quatro trabalhadores são infectados pelo bacilo antrácico e morrem. Investigação posterior não consegue apurar se a desinfecção com certeza salvaria os trabalhadores, mas aponta apenas probabilidade neste sentido (3).
Quatro questões não podem deixar de ser objetadas a este princípio geral de imputação, à luz do direito positivo brasileiro.
Em primeiro lugar constitui flagrante violação ao princípio constitucional da presunção de inocência, que fundamenta o princípio in dubio pro reo, pois transforma uma mera possibilidade ou conjectura em um juízo de certeza, que constitui o substrato indispensável à procedência da ação penal.
Como assinala Hirsch (4), “o que esquece a teoria do aumento do risco é que a essência mesma do delito culposo de resultado requer que a imprudência do autor se haja manifestado no resultado. Por isso, esta manifestação deve ser provada contra o autor. Na medida em que a teoria do risco encurta, contradizendo a essência mesma do delito culposo, as exigências de conexão à contrariedade ao dever, não faz senão manipular o prncípio in dubio pro reo”.
Em segundo lugar porque, ao sobrevalorizar a criação da situação de risco, descuida do desvalor do resultado, na medida em que, embora seja imprescindível a sua verificação para a imputação, este juízo – de imputação – passa a dispensar a comprovação segura do liame entre o comportamento e o fato. A crimes de resultado, assim, passa-se a conferir verdadeira consumação antecipada, pois à sua configuração basta a demonstração do perigo ao bem jurídico, em franca vulneração ao princípio da tipicidade.
Em terceiro lugar porque o art. 13, caput, do Código Penal brasileiro, embora não se contente com o nexo causal meramente físico para o juízo de imputação – tanto que os §§ 1º e 2º conferem limites estritamente normativos a esse juízo -, impõe, como limite ao intérprete, a sua existência e comprovação.
O simples afastamento do contido neste dispositivo, com a adoção, em sua integralidade, do “princípio do aumento do risco”, constituiria inadmissível negativa de vigência a Lei Federal regularmente promulgada.
Logo, se a suficiência de um mero juízo de probabilidade de existência do liame objetivo entre a ação e o dano pode ser eventualmente sustentada em um ordenamento jurídico como o alemão, que à evidência privilegia o desvalor que recai sobre o ato em detrimento daquele relativo ao resultado (punibilidade do crime impossível) (5), o mesmo posicionamento é inadmissível no sistema jurídico-penal brasileiro, pois, para nós, nos delitos de resultado, o nexo causal relevante constitui elemento indispensável à configuração da tipicidade, na medida em que é exigido por norma expressa da Parte Geral do Código Penal, promulgada de acordo com o processo legislativo constitucionalmente estabelecido.
A jurisprudência brasileira, neste ponto, é pacífica no sentido de afastar a imputação nas hipóteses em que o nexo causal material acaba não sendo cabalmente demonstrado nos autos. A título de exemplo:
APELAÇÃO-CRIME. DELITO DE TRÂNSITO.
Recurso defensivo deferido em parte. Em não havendo na prova carreada para o bojo do caderno prova segura que especifique ou explicite ter sido o acidente causa direta ou indireta do óbito sofrido pela vítima, a desclassificação para lesões corporais culposas se impõe. Apelo da Justiça Pública prejudicado, face às regras contidas nos artigos 88 e 89 da Lei nº 9.099/95, que exige representação e proposição de suspensão do processo. Decisão unânime (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS. Apelação-Crime nº 70.001.059.054 – 2ª Câmara Criminal – Torresj. 31 de agosto de 2000).
ABORTO – Não caracterização – Materialidade do crime confirmada pelo laudo de exame de corpo de delito – Omissão, entretanto, quanto à causa do mesmo – Ausência de ligação causal entre a agressão corporal à gestante e o posterior abortamento – Desclassificação para o delito de lesões corporais – Recurso parcialmente provido. Não estabelecido convenientemente o nexo causal entre a agressão da vítima e o aborto que dela seria resultante, impõe-
se a desclassificação do delito para o de ferimentos leves (TJSP – Ap. Criminal nº 147.078-3 – São José do Rio Preto – 2ª Câm. Criminal – Rel. Egydio de Carvalho – J. 08.05.95 – v.u).
JÚRI – Homicídio Qualificado – Ausência do nexo causal entre o fato e o resultado – Deficiência do conjunto probatório – Provimento.
Ocorrida a morte da vítima quase um ano após o fato denunciado e por motivo de septicemia, patenteia-se a ausência do nexo causal entre a agressão a arma de fogo imputada ao réu e o resultado morte daquela. Dúvidas razoáveis e prevalentes e carência de provas efetivamente incriminadoras devem ser contabilizadas em prol do réu, deixando de preponderar o princípio do in dubio pro societate. Vencido o JDS Des. Valmir Ribeiro (TJRJ – RSE nº 382/1997 – 2ª C. Crim. – Rel. Des. Jorge Uchoa de Mendonça – DORJ 02.02.2000 – m.v).
HOMICÍDIO CULPOSO – Médico que não suspende tratamento radioterápico, apesar dos problemas técnicos do equipamento e dos reclamos do paciente – Prova inequívoca do nexo causal – Necessidade: – Inteligência: artigo 121, parágrafo terceiro do Código Penal.
Impossível a condenação, nas penas do artigo 121, parágrafo terceiro, do CP, do Médico que, procedendo a tratamento radioterápico, não suspende a terapia, apesar dos problemas técnicos e dos reclamos do paciente, se inequivocamente não for comprovado o nexo causal entre a conduta do acusado e a morte da vítima.(TACrimSP – Ap. nº 881.609/8 – 2ª Câm. – Rel. Ricardo Lewandowski – J. 24.11.94 – RJDTACRIM 24/255).
LESÃO CORPORAL GRAVE – Não caracterização – Prova frágil – Dúvida quanto ao nexo causal – Absolvição decretada – Recurso provido.(TJSP – Ap. Crim. nº 201.620-3 – Suzano – 3ª Câm. Crim. – Rel. Des. Gonçalves Nogueira – J. 11.11.97 – v.u). JTJ 204/285
Por fim, a teoria do aumento do risco, como elaborada, acaba por instituir, ainda que por via transversa, a culpa pela inobservância de leis e regulamentos, algo que, a nosso ver, é mais grave do que a responsabilidade objetiva – não admitida pelo nosso direito – (6), na medida em que, em crimes de resultado, este elemento essencial do tipo penal passa a ser dispensado.
Como ressalta Juarez Tavares (7), no entanto, “o importante é, assim, o que deveria ser concretamente realizado para se evitar o perigo e não a infração abstrata da norma de trânsito ou regulamento destinado a traçar técnicas de profissão, arte ou ofício”, os quais, por si sós, retratam meros ilícitos administrativos.
O “princípio do aumento do risco”, portanto, embora seja útil para a aferição da culpa em sentido estrito – o que já extrapola os limites da imputação objetiva – e constitua, por vezes, indício de sua ocorrência, não esgota o problema da imputação objetiva do resultado e nem serve, isoladamente considerado, a solucionar toda a problemática do crime culposo.
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Notas
(1) Imputação Objetiva, p. 83.
(2) ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, p. 338.
(3) Funcionalismo… pp. 332 e 346.
(4) Derecho Penal – Obras Completas, pp. 30-31.
(5) Dispõe o § 23, inciso III, do Código Penal Alemão: “Quando o autor, por incompreensão básica, haja ignorado que a tentativa, pelo tipo de objeto ou pelos meios que deveriam empregar-se para a realização do delito, não pode chegar à sua realização, o tribunal poderá prescindir de aplicar a pena ou atenuá-la segundo seu justo parecer”.
(6) Do Crime Culposo, p. 86.
(7) Direito Penal da Negligência, p. 147.
Antonio Carlos Santoro Filho é Juiz de Direito em São Paulo