Críticas à posição do TSE sobre a responsabilidade do candidato beneficiário

Autor: Victor Aguiar Jardim de Amorim (*)

 

O presente artigo tem por objetivo levantar as premissas teóricas básicas a respeito da responsabilidade e seus efeitos jurídicos no âmbito do sistema eleitoral, em especial tocante aos pressupostos de fundamentação das sanções típicas e peculiares de tal seara do Direito. Para tanto, é necessário averiguar os pontos de contato e distanciamento da responsabilidade eleitoral em relação aos aspectos dogmáticos da teoria da responsabilidade civil.

Em linhas gerais, pode-se conceituar a responsabilidade civil como a obrigação de reparar o dano que uma pessoa causa a outra. A ideia de responsabilidade relaciona-se ao objetivo de não causar prejuízo a outrem, tratando de recurso extremamente caro ao papel pacificador das relações sociais ao qual se propõe o direito.

Em um primeiro plano, a doutrina classifica a responsabilidade civil em razão da culpa (subjetiva e objetiva) e quanto à natureza jurídica da norma violada (contratual e extracontratual). A configuração da responsabilidade civil subjetiva demanda que o dano tenha sido ocasionado por uma conduta culposa lato sensu, o que abrange tanto a culpa stricto sensu (negligência, imprudência ou imperícia) quanto o dolo (vontade conscientemente dirigida à produção do resultado ilícito).

A responsabilidade subjetiva foi largamente utilizada nos ordenamentos jurídicos dos países ocidentais, estando umbilicalmente ligada à concepção liberal dos direitos, com forte viés de proteção à liberdade do indivíduo e, principalmente, de seu patrimônio, uma vez que, em última instância, são os bens que garantem o cumprimento da obrigação de indenizar. Ocorre, contudo, que a evolução da complexidade das relações sociais e o desenvolvimento de abissais desproporções econômicas e políticas entre indivíduos evidenciou que o modelo de responsabilidade baseado na culpa não era suficiente para solucionar todos os casos existentes.

Com efeito, o “declínio” do modelo de responsabilidade subjetiva é verificado, principalmente, a partir da metade do século XIX, como resultado da consolidação da sociedade industrial e urbana e o consequente aumento dos riscos de acidente de trabalho. Emerge em tal contexto, a noção de responsabilidade civil objetiva, que prescinde da existência de culpa.

Existem, ainda, situação tão graves, dada a periculosidade da atividade realizada por determinado agente, que a sua responsabilidade é baseada na “teoria do risco integral”, pela qual, mediante expressa previsão legal, seria responsabilizado por todo dano decorrente de tal atividade, mesmo diante de caso fortuito ou de força maior, como ocorre, v.g., nas atividades nucleares (art. 21, XXIII, “c”, da Constituição Federal, e Lei 6.453/1977) e nos danos ambientais (Lei 6.938/1981).

Outro ponto que merece destaque especial e que evidencia a diferenciação de regime da responsabilidade no Direito Civil para outros ramos, como o Direito Penal, é a questão da consumação real e efetiva do dano. Materialização clara de tal diferença é percebida no Direito Penal, porquanto há a responsabilização do agente por crimes sem a ocorrência de um resultado material, como nos chamados “crimes de mera conduta”, “crimes formais” ou, ainda, “crimes de perigo abstrato”. Em tais casos, o bem jurídico tutelado, em regra, é a segurança pública e a paz social e o resultado material é considerando “mero exaurimento” do tipo penal. Ou seja, nessas situações, a responsabilidade penal do agente exsurge com a conduta e a ocorrência de um “resultado normativo”, sendo a consumação do crime indiferente para o direito penal.

Apresentadas as premissas básicas da teoria da responsabilidade civil, passa-se a apurar as condições de aplicabilidade dos pressupostos, bem como as peculiaridades que envolvem a responsabilização de cidadãos no âmbito do sistema jurídico eleitoral.

O estudo da responsabilidade no Direito Eleitoral não pode prescindir da análise do “ilícito eleitoral”, porquanto tais categorias jurídicas apresentam um elo indissociável e necessário. Conforme ensinamento de José Jairo Gomes, no aspecto estrutural, o ilícito eleitoral compõem-se dos seguintes elementos: a) conduta abusiva; b) resultado; c) relação causal; d) ilicitude ou antijuridicidade.

Como salientado alhures, a configuração de resultado material da conduta, para o Direito Eleitoral, é irrelevante, porquanto o bem jurídico tutelado é de ordem difusa e relaciona-se aos aspectos mais caros ao Estado Democrático de Direito: o adequado funcionamento das instituições e do regime democrático, a higidez do processo eleitoral e a legitimidade do exercício do poder político.

Para parte significativa da doutrina, igual deferência há que se atribuir à questão do nexo causal, uma vez que, no sistema eleitoral, o vínculo existente entre a conduta e a lesão ao bem ou interesse tutelado “é lógico, não material ou físico; cuida-se de relação imputacional em que um resultado é atribuído a pessoa ou ente, que por ele deverá responder”.

A partir da responsabilidade será possível imputar a determinada pessoa um dever jurídico, cuja consequência é a sanção. No âmbito eleitoral, a responsabilidade “é aquela que decorre de atos considerados ilícitos e sujeitos a sanções como multa e até inelegibilidade e cassação (de registro, de diploma ou de mandato) daquele que agiu com irresponsabilidade eleitoral”. Nessa esteira, o Direito Eleitoral sofre profunda influência do modelo objetivo de responsabilidade, porquanto o elemento “culpa” não é determinante para a fixação da sanção jurídica.

Dada as vicissitudes do sistema eleitoral, o tema da responsabilidade ganha relevo a partir da ilicitude de condutas havidas em sede das eleições (em toda a amplitude do “processo eleitoral”) e do exercício do mandato, envolvendo aspectos relacionados ao abuso de poder (econômico, político e “político-econômico”), propaganda política-eleitoral e captação ilícita de sufrágio e seus consectários.

A noção de responsabilidade no direito eleitoral e sua conformação estrutural são regidas pela natureza de fundamentalidade dos bens e interesses jurídicos tutelados no paradigma do Estado Democrático de Direito e, nesse desiderato, sobreleva-se a necessidade de prevenção geral, de modo a desestimular a prática de atos atentatórios à democracia.

A perspectiva hermenêutica ora delineada é desenvolvida não apenas pela doutrina especializada, como, também, pela jurisprudência dos tribunais eleitorais. De se salientar, ainda, que a própria legislação eleitoral apresenta exemplos de previsão de responsabilidade objetiva. Nesse sentido, vale observar as prescrições contidas nos artigos 20, 21, 31, 40-B e 73 da Lei 9.504/1997, a chamada Lei das Eleições.

A partir de tais dispositivos, notadamente no que tange à propaganda eleitoral, prática de conduta vedada e abuso de poder, a responsabilidade restará configurada com a evidenciação do benefício eleitoral angariado com o ato, independentemente de prova da efetiva participação ou prévio conhecimento do beneficiário. Reiterando os ensinamentos de Jairo José Gomes, a imputação de responsabilidade eleitoral funda-se, ainda, “nos benefícios que elas proporcionaram (ou teriam proporcionado) a determinada candidatura”. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral agasalha tal entendimento.

Não se pode olvidar que a seriedade na proteção aos valores democráticos pelo sistema eleitoral influencia a guinada hermenêutica do Poder Judiciário quanto ao elemento “culpa” para a configuração da responsabilidade. Tal paradigma orienta, até mesmo, a aferição da ocorrência de captação ilícita de sufrágio prevista no art. 41-A da Lei 9.504/1997.

Em se tratando de responsabilidade decorrente de abuso de poder, vale observar, a partir do voto da Relatora do Recurso Ordinário 406.492/MT, ministra Laurita Vaz, que o TSE, com esteio no art. 23 da Lei Complementar 64/1990, entende que a anuência do candidato quanto ao ilícito eleitoral que configure abuso de poder político ou econômico “pode ser revelada por presunções ou indícios, sem necessidade de existência de prova robusta de sua participação direta ou indireta nem mesmo da mera ciência ou conhecimento do fato”.

Outrossim, na ótica da corte superior, a responsabilização do beneficiário nos casos de abuso de poder político e econômico, com a consequente sanção de cassação do registro ou diploma, decorre, ainda, de previsão legal contida no inciso XIV do art. 22 da Lei de Inelegibilidades.

Por conseguinte, convém analisar o entendimento jurisprudencial quanto a outro pressuposto da responsabilidade: o nexo de causalidade. Partindo da mesma premissa utilizada para apontar a prescindibilidade de comprovação do resultado material da conduta na seara eleitoral, em caso de abuso de poder (político, econômico ou político-econômico) incidirá a responsabilidade e seus efeitos (cassação do mandato, inelegibilidade, etc.) quando demonstrada a potencialidade ou o risco da conduta de influenciar indevidamente o espírito do eleitor e, assim, o resultado do pleito.

Resta claro, portanto, que, independentemente da participação direta ou imediata na prática do abuso de poder ou condutas vedadas, os candidatos devem responder pelo ato ilícito, sofrendo as sanções previstas, inclusive, a perda do mandato nos casos de gravidade suficiente para macular a legitimidade do pleito. Assim, no Direito Eleitoral, é admissível falar em responsabilização por ato de terceiro.

Para tanto, consoante o entendimento do TSE, “embora o candidato não participe do ato e não atue com culpa, dolo ou prévio conhecimento, a supressão do mandato seria a única forma de restabelecer a legitimidade do pleito viciado pelo ato de terceiro”.

Com fulcro na jurisprudência do tribunal, é possível depreender que se admite a responsabilidade objetiva para sancionar não apenas os responsáveis diretos e imediatos pela prática de conduta vedada ou abuso de poder, mas também dos beneficiários de tais atos, independentemente de prova da culpa ou participação.

Sobressaem em tal entendimento, dois importantes aspectos que merecem atenção mais detida quanto aos seus fundamentos: 1) os candidatos beneficiados são juridicamente responsáveis por ato de terceiros, ainda que não tenha qualquer participação comprovada; 2) para imputar a responsabilidade ao beneficiário e, assim, aplicar-lhe as sanções cabíveis (multa, cassação do registro e do mandato e inelegibilidade), o TSE dispensa a necessidade de demonstração do nexo de causalidade material ou físico entre a conduta e o resultado (mácula do pleito e/ou vontade do eleitor), bastando apenas o nexo de causalidade lógico-argumentativo.

De fato, tal conclusão se mostra pertinente e palpitante. Afinal, diante do paradigma do Estado Democrático de Direito e das garantias fundamentais que lhe são inerentes, inclusive em relação ao indivíduo no exercício de seu legítimo direito de cidadania, seria admissível, sob o pálio do objetivo de restaurar a legitimidade do pleito, o sancionamento “pessoal” de candidato beneficiado (multa e inelegibilidade), dispensando a comprovação/verificação da culpa e do nexo de causalidade entre o dano e o ato ou comportamento de terceiro?

O desenvolvimento da resposta de instigante questionamento demanda uma espécie de depuração dos fundamentos lançados pela jurisprudência do TSE e pela doutrina que admitem a responsabilidade do beneficiário por ato de terceiro a partir dos efeitos jurídicos das sanções correspondentes.

Partindo-se do pressuposto de que o Direito Eleitoral é regido por um sistema peculiar que assegure o reestabelecimento da legitimidade do pleito, ainda que tal objetivo resulte em “efeito colateral” para aqueles candidatos que não são efetivamente culpados pelo ilícito, a responsabilização do beneficiário do ato (com a dispensa da prova da culpa e do nexo de causalidade material) fica destituída de sentido nos casos em que não há cassação do registro ou do diploma, uma vez que, nessas situações, não se fala em legitimidade do pleito a ser restaurada.

Em se tratando de cominação de multa ou declaração de inelegibilidade há, tão somente, a sanção pessoal do candidato. Daí, diante da inexistência de legitimidade ou lisura do pleito a ser restabelecida, resta ausente qualquer substrato ou fundamentação jurídica para o sancionamento do indivíduo beneficiário.

É de se reconhecer, de forma alvissareira, no tocante à cominação de multa decorrente da realização de propaganda eleitoral extemporânea (art. 36, §3º, da Lei 9.504/1997), que o Tribunal Superior Eleitoral reputa ser exigível, ao menos, a comprovação de seu “prévio conhecimento”, o que demonstra certa amenização do entendimento anteriormente exposto.

Outrossim, se não está a se falar em cassação do registro ou cassação do mandato, não haverá objetivo de restauração de legitimidade do pleito e, destarte, para a aplicação da sanção ao candidato meramente beneficiado por ato de terceiro, não poderá ser admitida a utilização das mesmas premissas que lastreiam a desnecessidade de comprovação da participação (culpa) e do nexo de causalidade material entre a conduta e o resultado.

Forte nesses argumentos, cabe indicar a existência de emblemático julgado do TSE: “caso o candidato seja apenas beneficiário da conduta, sem participação direta ou indireta nos fatos, cabe eventualmente somente a cassação do registro ou do diploma, já que ele não contribuiu com o ato” (REspE 13.068).

Há que se ter em mente que o sancionamento correspondente à inelegibilidade é de extrema gravidade para o indivíduo, porquanto lhe retira, temporariamente, o exercício da cidadania passiva, vedando, assim, o direito de ser representante do povo no Poder e, sob outro prisma, o direito de outros cidadãos em votar naquele indivíduo que consideram o mais adequado para o desempenho do mandato.

Logo, não se pode olvidar a incidência na hipótese dos primados mais caros do Estado Democrático do Direito: devido processo legal (em todas as suas dimensões), segurança jurídica e proteção à cidadania (não apenas sob o ponto de vista coletivo como também individual).

 

 

 

 

Autor: Victor Aguiar Jardim de Amorim é mestre em Direito Constitucional, professor de pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado especialista em Direito Público.


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