Por Regina Beatriz Tavares da Silva
Desde o ano de 2000, em artigo intitulado “Reflexões sobre o reconhecimento da filiação extramatrimonial”, defendo a possibilidade de aplicação dos princípios da responsabilidade civil pela recusa injustificada ao reconhecimento da paternidade, o que se estende ao abandono moral e material paterno, pelo descumprimento de outros deveres dos pais para com os filhos (TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz, Reflexões sobre o reconhecimento da filiação extramatrimonial. In NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade (coords.), Revista de Direito Privado, Ano 1 – janeiro a março de 2000, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 83).
Naquele artigo, já observava a natureza declaratória da decisão judicial que reconhece a filiação, eis que declara a existência de uma relação anteriormente estabelecida, existente desde a junção do gameta masculino ao feminino, com a fecundação e a formação gestacional do ser humano. Daí os efeitos ex tunc da decisão de reconhecimento da paternidade. Tanto é assim que o reconhecimento da paternidade após a morte do pai gera direitos sucessórios, que não poderiam existir se a decisão fosse constitutiva. Portanto, proferida a decisão judicial de reconhecimento da paternidade, seus efeitos retroagem. Por isso, é possível a condenação na reparação de danos anteriores àquela decisão judicial.
No ano de 2006, em mais uma publicação sobre o tema, realizada em capítulo da obra “Questões controvertidas no novo Código Civil”, tive a oportunidade de analisar um acórdão sobre abandono paterno, proferido em 29 de novembro de 2005 (REsp 757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves). Tratava-se do caso em que um pai havia se afastado de seu filho por conta do nascimento de sua segunda filha, proveniente de outras núpcias. O menino, então com seis anos, tentou a aproximação até seus quinze anos de idade, quando passou a apresentar problemas emocionais oriundos da ausência paterna.
Foi ajuizada ação de reparação de danos morais, cujo fundamento era a falta de amor por parte do pai ausente. Em razão dessa causa de pedir, que não tem apoio no ordenamento jurídico, o Superior Tribunal de Justiça acolheu o Recurso Especial interposto pelo pai, sob o fundamento de que o desamor não gera indenização (TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz, Responsabilidade civil nas relações entre pais e filhos. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. (Org.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, v. 5, p. 463-475).
E, efetivamente, amar não é dever ou direito. Amar é sentimento intangível pelo Direito. A falta de amor, como sentimento, portanto, não pode gerar indenização. Mas o dever do pai e da mãe de ter o filho em sua companhia e educá-lo, de natureza objetiva, está previsto no art. 1.634, I e II do Código Civil. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê também deveres para os pais, como o dever de assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social do filho menor, em condições de dignidade (ECA, arts. 3º, 4º e 5º). Esses, sim, são deveres de natureza jurídica, cujo descumprimento, ao gerar danos, pode acarretar a condenação do inadimplente em pagamento de indenização.
O dever de ter o filho em sua companhia, que é muito mais do que um direito de visitar o filho por parte daquele que não tem a guarda (Código Civil, art. 1.589), é examinado por Theodureto de Almeida Camargo Neto: “Pressupõe, assim, que haja convivência entre ambos, para que, conforme o caso, o vínculo se estabeleça ou se consolide, gradativamente, e que a criança ou o adolescente possa receber o afeto, a atenção, a vigilância e a influência daquele ou daquela que não detém sua guarda, de modo a alcançar a plena higidez física, mental, emocional e espiritual, que, como se sabe, depende, entre outros fatores, do contato e da comunicação recíproca e permanente com seus dois progenitores” (CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida, A Responsabilidade Civil por Dano Afetivo. In TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz e CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (coords.), Grandes Temas de Direito de Família e das Sucessões, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 23).
No acórdão proferido no REsp 1.159.242, da 3ª Turma do STJ, que é agora comentado, relatado pela Eminente Ministra Nancy Andrighi, proferido em 24 de abril e 2012, a questão foi colocada em seus devidos termos. “Amar é faculdade, cuidar é dever”, como diz o julgado. De acordo com os artigos 186 e 927 do Código Civil, “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” e “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, respectivamente.
Assim, segundo a sistemática do Código Civil, a responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar ocorrem quando presentes os seguintes requisitos: ação ou omissão violadora de direito, dano moral e/ou material e nexo de causalidade. Importante salientar que, por estar a responsabilidade civil prevista na Parte Geral do Código Civil, não há dúvida sobre sua aplicação nas relações de família, como bem acentuou o v. acórdão aqui comentado, relatado pela ministra Nancy Andrighi, segundo o qual “…não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no Direito de Família.”.
No caso julgado em 2005, o afastamento voluntário e injustificado do pai preenchia o requisito da ação ou omissão violadora de direito, já que o dever do pai de ter o filho em sua companhia e o direito do filho à convivência familiar foram desrespeitados. Os requisitos do dano e do nexo causal também restaram atendidos, pois foi comprovado por laudo pericial que o filho sofria de distúrbios psicopatológicos causados pela ausência paterna. O dano, nesta hipótese, era moral, já que houve ofensa a direitos da personalidade do filho, sendo eles o direito à honra subjetiva (autoestima) e subjetiva (consideração social) e à integridade psíquica. A razão de o Superior Tribunal de Justiça ter indeferido o pleito indenizatório decorreu da equivocada causa de pedir. Houve grande confusão na fundamentação do pedido, com a miscelânea de conceitos como falta de amor, afetividade etc.
A questão primordial é distinguir o real pressuposto da indenização na seara da responsabilidade civil entre pais e filhos. Não é o desamor ou qualquer outro aspecto sentimental que gera a responsabilidade civil. A prática de atos ilícitos – descumprimento de dever e violação a direito – é que pode dar causa à indenização. Passemos a analisar o acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, proferido em 24 de abril de 2012. É com grande contentamento que constato que o tema da responsabilidade civil entre pais e filhos foi acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, com fundamentos jurídicos precisos, no acórdão em análise.
O julgado relata o caso de uma filha que foi reconhecida por sentença proferida em ação de investigação da paternidade. Após o reconhecimento forçado da paternidade, a filha promoveu ação indenizatória em face de seu pai, requerendo a indenização dos danos materiais e morais em razão do abandono paterno. Em primeira instância, o pedido foi indeferido, sob o fundamento de que o afastamento era decorrente da atitude agressiva da mãe, ou seja, de suposta alienação parental. Já em Segunda Instância, no Tribunal de Justiça de São Paulo, a Sétima Câmara “B” de Direito Privado, em acórdão relatado pela Desembargadora Daise Fajardo Jacot, reformou a decisão de primeiro grau, considerando-se o abandono moral e material:
“Ação de indenização. Danos morais e materiais. Filha havida de relação amorosa anterior. Abandono moral e material. Paternidade reconhecida judicialmente. Pagamento de pensão arbitrada em dois salários mínimos até a maioridade. Alimentante abastado e próspero. Improcedência. Apelação. Recurso parcialmente provido”.
O pai alegou no Recurso Especial que não havia abandonado a filha e que, mesmo que houvesse, a pena aplicável deveria ser a de perda do poder familiar, não a de indenização. Todavia, a relatora do acórdão, Ministra Nancy Andrighi, brilhantemente reconheceu que não há qualquer óbice à aplicação das regras referentes à responsabilidade civil e ao consequente dever de indenizar nas relações de família, por assim entender: “Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica. por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o ‘non facere’ que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal.” (grifos constam do original).
O acórdão corretamente consignou que a destituição do poder familiar não exclui a possibilidade de indenização, pois os objetivos de cada instituto são diversos. A perda do poder familiar visa à proteção da integridade do menor, enquanto a indenização tem em vista a reparação dos danos decorrentes do ato ilícito praticado. Na hipótese de dano moral, a indenização objetiva uma compensação à pessoa lesada e um desestímulo à prática de novas agressões pelo ofensor. Pode-se entender que a perda do poder familiar abrange somente um destes aspectos, o da punição ao agressor, ou, quiçá, nem mesmo importe em qualquer punição, já que o pai não desejava conviver com a filha, tanto que a abandonou.
Também de maneira acertada, versou o acórdão em análise sobre a culpa. A regra geral do Código Civil é de que a responsabilidade seja subjetiva, decorrente da culpa, e não objetiva, decorrente do risco. O caso em tela enquadra-se na hipótese de responsabilidade subjetiva, de forma que deve ser verificado se o pai incorreu em dolo ou culpa (imperícia, imprudência ou negligência) e se há alguma excludente de ilicitude, como impossibilidade financeira, distâncias geográficas e alienação parental.
A princípio, verifica-se que o pai agiu com culpa (negligência) em relação ao descumprimento do dever de cuidar de sua filha. A respeito da existência de fatores que possivelmente impediriam o correto exercício do poder familiar, o pai, ao que parece, alegou como excludente de ilicitude a alienação parental, já que argumentava com a agressividade materna como causa do afastamento. Contudo, a alienação parental não decorre simplesmente do afastamento, deve ser provado que esse afastamento é oriundo de atitudes da mãe e guardiã da filha menor. Mas, em suma, como constou do v. acórdão, na estreita via do recurso especial não caberia o reexame das provas sobre excludentes de ilicitude.
Por último, sobre o dano moral, configurado pela violação à dignidade da filha, como cláusula geral de tutela da personalidade, também constou do v. acórdão em comentário que inobstante tenha a filha superado as vicissitudes decorrentes da omissão paterna, ao ponto de ter família e colocação profissional, ocorreu aquela violação ao ser considerada “filha de segunda classe”.
E sobre o valor da indenização, excepcionalmente objeto de nova deliberação pela instância superior, a qual ocorre somente quando os valores são havidos como irrisórios ou exacerbados, foi reduzido dos R$ 415.000,00 constantes do acórdão do TJSP para R$ 200.000,00 pelo acordão do STJ, havidos como suficientes para compensar os danos morais sofridos pela filha. Em suma, a aplicação da responsabilidade civil nas relações de família está colocada em seus devidos termos por esse brilhante acórdão, aqui comentado.
Regina Beatriz Tavares da Silva é presidente da Comissão de Direito de Família do IASP, coordenadora e professora dos cursos de pós-graduação em responsabilidade civil da Escola de Direito da FGV – GVlaw e dos Cursos de Especialização em Direito de Família e das Sucessões da ESA – OAB/SP, doutora e mestre em Direito Civil pela USP e advogada sócia e titular do escritório Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.