Culpabilidade e livre arbítrio

Antonio Carlos Santoro Filho

Para a aplicação de uma pena à pessoa humana não basta a existência de uma ação (princípio do ato) adequada a um tipo de injusto (princípio da legalidade), imputável ao agente a título de dolo ou culpa em sentido estrito (princípio da responsabilidade penal subjetiva), ofensiva a um bem juridicamente protegido (princípio da lesividade). Indispensável, também, que sobre o comportamento recaia um juízo de valor negativo, uma reprovação social, que denominamos de culpabilidade.
A culpabilidade, como ensina Muñoz Conde (1), não é um fenômeno individual, mas social, pois a sociedade, por meio de seu Estado representante, define os limites do culpável e do inculpável, da liberdade e da não-liberdade.
O princípio da culpabilidade, assim, nesta acepção, constitui o fundamento da pena, na medida em que, para justificar-se a imposição de uma sanção penal a um sujeito, pressupõe-se a ocorrência, sobre o seu comportamento, de um juízo de reprovação. Um ato não reprovável, seja pelas circunstâncias que o cercam (coação moral irresistível, obediência a ordem de superior hierárquico não manifestamente ilegal), seja pelas condições internas do agente (ausência de potencial consciência da ilicitude), não legitima a atuação do poder punitivo do Estado. Onde não há culpabilidade, não pode haver pena.
Predomina na doutrina atual, que recepciona a teoria normativa da culpabilidade, o entendimento de que o seu fundamento encontra-se no “poder agir de outro modo”, distinto daquele que configura a infração à norma penal.
Esta concepção, todavia, valendo-nos mais uma vez das lições de Muñoz Conde (2), não comporta sustentação científica, uma vez que a capacidade de se atuar de modo diferente daquele que se atuou é racionalmente indemonstrável, pois impossível a recriação do evento, com todas as suas circunstâncias.
Pensamos que outro é o substrato da culpabilidade: a quebra da expectativa social de observância da norma, que acarreta o juízo de reprovação.
De fato, ao promulgar o Estado as suas leis, legitimamente, amparado no fundamento constitucional da democracia, cria na sociedade a expectativa de cumprimento dos preceitos nelas contidos. A frustração dessa expectativa, no caso concreto, tem por conseqüência a reprovação social, ou seja, o juízo de culpabilidade.
Logo, o que é relevante para se perquirir o juízo de culpabilidade, não é se poderia o sujeito, ou não, agir de outro modo, mas responder às seguintes questões: nas circunstâncias do caso, era esperado do agente, no contexto da normalidade das relações sociais, que observasse o imperativo normativo? Diante da situação circundante, criou-se a expectativa social de observância da norma?
Se positivas as respostas, isto é, se frustrada a expectativa social de cumprimento da norma, certo restará o juízo de reprovação. De outro lado, na hipótese de restarem negativas as indagações, não se afirmará a culpabilidade do agente.
Para a aferição da culpabilidade, portanto, cabe ao juiz reconstituir o atuar do agente, apreendendo-o, e, a partir da situação concreta vivenciada, estabelecer um juízo a respeito do comportamento que não se determinou adequadamente aos valores normativos. Se era esperada a adequação e houve a frustração desta expectativa, a conduta será reprovável, culpável (3).
Desse modo, podemos formular, a partir de seu fundamento, o seguinte conceito de culpabilidade: a declaração da frustração social de uma expectativa de conduta determinada na lei penal, que recai sobre seu autor e possibilita, em virtude do juízo de reprovação, a imposição de uma sanção penal.
Este conceito, à evidência, traz como embasamento a liberdade do ser humano optar, ou não, no momento do fato, pela realização da conduta. Não um livre arbítrio absoluto, como pretendiam os clássicos – tanto que admitidas causas legais e supralegais de exculpação -, mas uma liberdade limitada, que, como ensina Nicola Abbagnano (4), “é uma questão de medida, de condições e de limites, e isso em qualquer campo, desde o metafísico e psicológico ao até econômico e político – e jurídico. Hoje se destaca que a liberdade ou fato de que a liberdade humana é situada, enquadrada no real, uma liberdade sob condições, uma liberdade limitada”.
Àqueles que negam, de forma absoluta, qualquer livre arbítrio ao ser humano, uma vez que não passível de comprovação científica, vale lembrar a lição de Hirsch (5), para quem “se o direito deve servir ao homem, então deverá tomá-lo como ele se entende a si mesmo. Se não, desembocaria no vazio. Dado que o homem se sente fundamentalmente livre, este fenômeno deve conformar o ponto decisivo. Isto não significa que o homem não possa ver-se exposto a coações e influências, as quais, evidentemente, jogam seu papel. Porém, a experiência mostra que ele também pode resistir, renovadamente, a fortes pressões externas (…) Por isso o homem se autodefine, justamente, como um ser livre e responsável. Também sua luta permanente pelo ideal de liberdade, com freqüência plena de sacrifícios, prova isto cabalmente”.
Esta capacidade de liberdade que caracteriza a culpabilidade, mesmo que somente vivenciada, ou seja, constatada de modo empírico pela experiência comum, constitui, ainda, o substrato mais relevante para se dotar o direito penal do respeito à dignidade humana que requer o Estado Democrático de Direito, e garantia indispensável ao indivíduo – seja como fundamento, seja já como limite de pena -, à qual não ofereceu a doutrina, pelo menos até este momento histórico, alternativa viável.
A culpabilidade representa, portanto, instrumento insubstituível à concretização da democracia, o que revela a necessidade de sua manutenção como categoria jurídico-penal.

(1) Teoria Geral do Delito, p. 128.
(2) Teoria Geral do Delito, p. 127.
(3) REALE JR., Miguel. Teoria do Delito, p. 145.
(4) Dicionário de Filosofia, p. 612.
(5) Derecho Penal – Obras Completas, t. I, p. 170.

Antonio Carlos Santoro Filho é Juiz de Direito em São Paulo

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