Cultura e criatividade devem nortear parcerias público-privadas

por José Emilio Nunes Pinto

Muito embora o título deste artigo possa parecer, à primeira vista, uma daquelas “sopas de letrinhas”, daquelas que, na infância, junto a irmãos e primos nos faziam saborear, buscando-se sempre encontrar as mais exóticas, como o “k”, o “w” e o “y”, trata-se, na realidade, de questão central na discussão das parcerias público-privadas, já conhecidas entre nós, a exemplo do que ocorre em outros países, como as PPPs.

E os dois “C” das PPPs, a que se referem eles? Falamos de dois elementos essenciais para a implementação bem sucedida das PPPs. “C” de Cultura e “C” de Criatividade. A consolidação de cada um desses “C” irá nortear o caminho de sucesso das PPPs.

Ao longo da História, várias têm sido as posturas do agente privado e do cidadão nas suas relações com o Estado e, no dia a dia, com a Administração Pública.

Do “pai patrão”, temido e respeitado, ao “pai protetor”, assumindo o lugar do privado no processo de tomada de decisões, o Estado vem incorporando uma nova face, reservando para si atitudes que visam ao interesse público, retirando-se de cena e cessando a interferência nas decisões de caráter individual.

A relação entre o Estado e o cidadão beneficia-se do processo de maturidade mútua. O Estado dota a Sociedade dos meios legais destinados à preservação de direitos, criando um sistema jurídico-legal bastante complexo, sancionando, inclusive, os desvios de comportamento que afrontam padrões éticos e morais.

O Direito não se destina a criar, nem cria, na realidade, fatos sociais. Se assim pensarmos, estaremos invertendo o que ocorre no mundo real. Na verdade, da observação meticulosa dos fatos sociais, cuja ocorrência constante demonstre tendência comportamental de grupos sociais, surge um complexo jurídico-legal para regulá-los.

Assim ocorre o mesmo com as PPPs. A normatização de operações complexas dessa natureza responde a uma tendência verificada nas sociedades modernas. Trata-se de fenômeno que podemos chamar de compartilhamento de responsabilidades entre o estado e o particular.

O Estado e a Administração Pública têm demonstrado falta de fôlego para cumprir, a contento, sua função de investimento. As despesas correntes da Administração Pública, oneradas pela necessidade de manutenção de uma máquina pesada, de custo muito elevado e, nem sempre com padrão adequado de eficiência, tragam com voracidade as receitas arrecadadas.

Ao administrador público impõe-se o dever de satisfazer, em primeiro lugar, as necessidades de caráter social, sobrando-lhe muito pouco para investir. Ocorre, no entanto, que, muitas vezes, esse investimento se destinaria a projetos estruturantes, capazes de contribuir para a satisfação das necessidades de caráter social.

Essa realidade encontra eco no mundo jurídico, refletindo uma nova ordem vigente na Sociedade.

O privado começa a reconhecer que não só o Estado, mas ele também, tem responsabilidade; responsabilidade que passa a compartilhar com o Estado e que se reflete nas suas relações com o ambiente em que atua, em seu relacionamento com comunidades onde esteja presente, com vistas a incluí-los no processo de desenvolvimento em curso, garantindo os direitos fundamentais da cidadania. Em suma, estamos hoje diante dessa realidade que se baseia e se fundamenta na denominada Responsabilidade Social.

Fatos como esse não passam ao largo do mundo jurídico e dos sistemas legais.

No Brasil, foi a Constituição de 1988 a precursora de princípios fundamentais da responsabilidade social. A legislação que se seguiu, em nível infra-constitucional, consolidou essa nova situação e essa nova realidade. Exemplo inequívoco disso é o Código Civil de 2002, que passou a conter as denominadas cláusulas abertas, onde os direitos individuais somente poderão ser legitimamente exercidos se estiverem matizados pelo interesse público. A “santidade” dos contratos continua preservada em nossa lei civil; não se revogou (e nem seria cabível assim proceder) o princípio latino da “pacta sunt servanda”, que permanece inalterado, consagrado, na sistemática do Código, como a liberdade de contratar e ver preservados os ajustes aceitos pelas partes. No entanto, essa “santidade”, expressão adotada para refletir a segurança e primazia do que as partes deliberaram quando da celebração do contrato, somente será assegurada se a vontade das partes se pautou pelos limites impostos pela vontade coletiva, expressa nos direitos reconhecidos à coletividade, sintetizada no interesse público.

Daí se poder afirmar que, no mundo das leis, a divisão tradicional entre direito público e direito privado é bem menos radical ou melhor dizendo mais tênue do que costumava ser.

Fala-se muito na constitucionalização do direito civil, já que a Constituição de 1988 contém princípios fundamentais e normas de aplicação geral em matéria de direitos individuais. Pode-se falar, e não sem razão, na privatização do direito público, visto que determinadas entidades, criadas e mantidas, em sua existência, pelo Poder Público, pautam suas atividades fundamentalmente por normas de direito privado.

Testemunhamos, dessa forma, a convergência de ramos tradicionais do direito, da mesma maneira que convergem as ações da Administração Pública e dos agentes privados, e, quanto a estes, no exercício, inclusive, de ações de Responsabilidade Social.

As PPPs podem ser, portanto, encaradas como manifestação dessa convergência de ações. O que pretende o estado com as PPPs nada mais é do que assegurar a implementação de projetos cujo efeito estruturante há de ter um impacto positivo na satisfação das necessidades dos cidadãos. Projetos de PPPs serão aqueles que o Estado, por suas restrições orçamentárias e esgotamento de sua capacidade de endividamento, não será capaz de implementar. Projetos de PPPs serão aqueles que o particular, dado o grau do risco a eles inerente, não está disposto a implementar sem que possa contar com garantias adequadas. Para casos como esses, desenvolveu-se, no Reino Unido, espalhando-se daí para outras partes do mundo as parcerias público-privadas.

O surgimento, no Brasil, das PPPs somente foi possível graças à mudança de postura nas relações entre o particular com o Estado e a Administração Pública, assumindo aquele o papel que lhe cabe no contexto da Responsabilidade Social.

Essa mudança de postura representa uma manifestação inequívoca de surgimento de uma nova Cultura nas relações entre o setor público e o setor privado, justificando a importância do “C” que quer exprimir Cultura. Mas a pergunta que resta é saber se essa mudança cultural é suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs no Brasil. Parece-nos que ainda falta a ambas as partes dar passos adicionais, mais concretos, no processo de desenvolvimento e consolidação de uma nova Cultura negocial.

Desde sempre a Administração Pública e o particular negociaram. Grandes obras de infra-estrutura são realizadas pelos particulares contratados pela Administração. Licitações são realizadas para a escolha da proposta mais atrativa para a Administração e os termos desses negócios estão refletidos em contratos administrativos, cujas características diferem substancialmente dos contratos em geral entre partes privadas, já que naqueles reconhecem-se ao Estado direitos que, se inseridos em contratos entre particulares, tangenciariam a ilegalidade. Esses direitos estão presentes nas denominadas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos e refletidos em disposições contidas na Lei de Licitações.

No entanto, a relação entre a Administração e o particular, no âmbito da contratação pura e simples, padece de um traço de desconfiança. Desconfiança de que a Administração não honre seus compromissos, na forma e época devidas, já que esta é vista como uma má pagadora. Desconfiança de que o privado não cumpra as suas obrigações contratuais, deixando de entregar o objeto da contratação, na época devida, ainda que a custos superiores que embutem um risco inerente à contratação com a Administração.

Vale lembrar que essa circunstância não é um traço desse tipo de contratação no Brasil. O surgimento e estabelecimento, na França, pelo Conselho de Estado da teoria do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo foram influenciados pelo traço de ser a contratação com a Administração ser percebida como de risco. Ao se garantir a manutenção da equação inicial de equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo assegurou-se que os preços ofertados pelo particular deixassem de embutir uma remuneração pelo risco, risco esse que poderia, inclusive, não se materializar, mas cuja taxa cobrada seria paga inexoravelmente.

As PPPs exigem uma postura negocial de confiança mútua, de parceria e de envolvimento contratual de longo prazo, desde a negociação dos termos contratuais até o cumprimento integral de todas as obrigações ao final do termo do contrato. Ser parceiro significa compartilhar os resultados do investimento, buscar soluções negociadas, fundadas num comportamento pautado pela boa fé.

A magnitude dos investimentos e o longo prazo de sua maturação exigem, mais do que a segurança contratual, a convicção de que os interesses entre a Administração e o particular são convergentes. O balanço equilibrado entre os direitos individuais e a supremacia do interesse público é um grande desafio na busca do sucesso nas PPPs.

A Cultura contém em si mesma um outro “C” que é a ela inerente. Referimo-nos à Confiança. A relação contratual deve ser baseada na confiança que uma das partes deposita na outra, confiança essa que está vinculada à boa fé e expressa no dever lateral de cooperação. A boa fé deve estar presente em todas as fases do contrato, de sua negociação ao período de desempenho das funções atribuídas a cada uma das partes e, até mesmo, no período pós-contratual. Essa confiança recomenda que as partes estejam imbuídas de boa fé (boa fé subjetiva) e a materializem durante todo o período contratual (boa fé objetiva), inclusive para resolver controvérsias que venham a surgir entre elas. É nesse momento que a arbitragem, prevista nos textos legais relativos às PPPs, assume grande importância. Mesmo com as limitações decorrentes da presença do Estado, a arbitragem se revela legal e de grande valia para as partes, já que permite solucionar as controvérsias de forma célere, segura, ética e por árbitros que sejam conhecedores das características específicas de cada projeto conjunto.

Por tudo isso e por tudo aquilo que se pudesse listar e dizer, o “C” é peça fundamental. Se os parceiros, envolvendo nisso a Administração e o particular, não forem capazes de criar uma nova Cultura de relacionamento, os resultados pretendidos com as PPPs estarão ameaçados. Essa nova Cultura, no entanto, não basta ser explicitada. Há de ser praticada e o tempo é fator fundamental para que ela se desenvolva e se consolide definitivamente. Mais do que atender aos interesses individuais das partes em parceria, essa nova Cultura é fundamental para que se atenda ao interesse público, interesse da coletividade, função do Estado e expressão eloqüente da Responsabilidade Social, essa função do particular.

Entretanto, uma nova Cultura não será, por si só, suficiente para assegurar a trilha de sucesso das PPPs. Daí insistirmos que esse sucesso depende de dois “C”, e o segundo “C”, não menos importante que o primeiro, se refere à Criatividade.

Quando examinamos o trajeto das PPPs no mundo, dissemos que estas surgiram no Reino Unido e daí se espalharam para outros países, principalmente os do leste da Europa. No Brasil, muito se tem ouvido falar das experiências inglesas, tendo estas tido uma influência capital na elaboração das chamadas leis das PPPs, seja a federal, seja a nível dos Estados. Desde já, ressaltamos que a existência de experiências similares em outros países há de ser uma fonte importante de informação. Casos vividos, lições aprendidas, erros minimizados. Esse trinômio nos ajuda a evitar que nos lancemos à tarefa inglória de tentarmos “reinventar a roda”.

No entanto, muito embora saibamos que a “roda há de assumir a forma do círculo”, teremos que analisar os caminhos e estradas por onde essa roda irá passar. Portanto, seja quanto à escolha do material para sua fabricação, seja quanto ao aro mais adequado, seja, enfim, quanto a materiais acessórios – tudo isso resta a ser definido. E essa definição há de se basear em decisões criativas.

Nas PPPs, a história não se passa de forma distinta. Sabemos que as PPPs são estruturas operacionais destinadas a assegurar a implantação de um projeto, seja construção ou mera remodelação, mas que se faz acompanhar da prestação de um serviço, manifestada essa na gestão do empreendimento. Essa é nossa roda em forma de círculo, complementada pelas lições aprendidas por todos os que a puseram para rodar antes de nós.

As experiências anteriores de que se tem notícia, não necessariamente atendem integralmente a nossas necessidades. As características de nossa economia, o perfil de nossas necessidades e os reclamos da Sociedade podem fazer com que venhamos a proceder a ajustes na modelagem das operações de PPPs.

Por essa razão, defendemos que o segundo “C” – o da Criatividade – há de ser amplamente exercido por todos os participantes dessas operações. Mantidas as características fundamentais dessa modalidade, devemos deixar que a Criatividade nos guie na modelagem de cada caso. Portanto, nada mais sábio do que resistir à tentação de definir por lei modelos operacionais ou traços operacionais, deixando que cada uma das leis das PPPs se limite a cuidar de questões e aspectos estruturais, deixando às partes a escolha da melhor forma de implementação, sabendo-se, de antemão, que os parâmetros internacionais existem, mas que devemos “tropicalizá-los”.

A tropicalização é função do exercício da Criatividade e será capaz de assegurar os melhores resultados pretendidos, posto que adequada à nossa realidade.

Se às PPPs, portanto, agregarmos e exercitarmos os dois “C”, teremos andado boa parte da trilha que nos levará à bem sucedida implementação de operações solidamente estruturadas, ficando o saldo à conta da boa fé, que deverá estar presente em toda a fase de cumprimento das obrigações contratuais até a extinção do prazo ajustado.

Revista Consultor Jurídico, 13 de Maio de 2004

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