Autor: Leonardo Corrêa (*)
The judiciary, operating outside its scope, is the greatest threat to representative government we face today.”
(Mark R. Levin)
O objeto do presente artigo está, nos dias de hoje, um tanto quanto fora de moda — ou, como diriam alguns, démodé. Num universo editorial de teses, livros, artigos e comentários sobre a constitucionalização do Direito Privado, nos quais, em muitas ocasiões, defende-se a aplicação imediata de dispositivos abertos nas relações privadas, pode soar quixotesca a tentativa de defesa da lei (ordinária). Mas, quando a consciência geral acadêmica começa a caminhar num mesmo sentido, é o momento de se invocar o contraponto. A reflexão honesta, nessas ocasiões, pode ser útil para criticar, sem medo da conotação de reacionarismo, o que é avanço aos olhos de muitos, mas que, para alguns, não passa de um retumbante retrocesso.
A ordem do dia é bradar com grandiloquência indignada a palavra “justiça”, de preferência correlacionada ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como panaceia geral para a solução de todos os conflitos de interesses. E ai de quem ousar argumentar contra as teses mais calorosas. O poder místico que a palavra somada ao princípio ganhou, praticamente, impede o debate dialético-racional.
Nesse ambiente de sectarismo, a lei ordinária — aquela que deve ser clara e específica para que as pessoas saibam o que podem ou não fazer — foi relegada a um plano secundário. Ora, de que vale um artigo do Código Civil em face da “justiça” e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana? Ao olhar de alguns, quase nada.
Está-se vivendo um delírio jurídico. Essa aplicação imediata de conceitos fluidos é, na realidade, o retorno à Justiça salomônica, quando o julgador, guiado pelo seu exclusivo arbítrio, determina o que é a “justiça” para o caso concreto. Trata-se, essencialmente, de um processo absolutamente antidemocrático, totalitarista e tirânico.
Essa forma de solução de conflitos está nos primórdios do Direito, e o seu principal defeito, do ponto de vista estritamente técnico, é que nela não há previsibilidade para a sociedade. Ninguém sabe, previamente, o que pode ou não fazer. Fora a questão estritamente técnica, esse sistema carece de legitimidade — na concepção do Estado Democrático de Direito. Ora, a legitimidade da Justiça salomônica está na figura do rei, não em um consenso social, e o risco de tirania nesses casos é praticamente absoluto. Thomas Hobbes não nos deixa mentir…
Uma das maiores evoluções do Direito, no sentido do fim da opressão e da tirania de um só homem, foi a positivação das normas jurídicas. Positivada, a norma torna-se universal, aplicável a toda sociedade. Nesse contexto, para saber o que se pode ou não fazer, basta, grosso modo, a leitura dos textos legais. Há, portanto, previsibilidade nesse sistema, gerando segurança jurídica aos jurisdicionados.
Veja-se bem, não se quer dizer com isso que nesse sistema o juiz é um mero autômato acorrentado e tolhido pelo ordenamento jurídico. Há liberdade criativa na interpretação e aplicação da lei. Entretanto, essa liberdade está limitada às regras concebidas pelos representantes da sociedade que atuam no Poder Legislativo, gostemos ou não deles — aliás, se não gostamos, devemos aprender a votar.
No final das contas, a legitimidade das decisões emanadas do Poder Judiciário está na própria sociedade, que elegeu livremente os seus representantes para criar as normas, que devem ser observadas por todos, inclusive — e sobretudo — pelos próprios magistrados. Sobre esse ponto, a nossa Constituição dispõe, expressamente: “Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Com o devido respeito, é inadmissível que se faculte a escolha de aplicar ou não a lei. Critérios sentimentais ou dispositivos abertos, fluidos e imprecisos, não são aptos para justificar a não aplicação de uma lei específica. Os conflitos de interesse postos perante o Poder Judiciário devem ser resolvidos com base nas regras em vigor para toda a sociedade, e nunca nos sentimentos (de pena, misericórdia, ou o que quer que seja) que o julgador nutra por uma das partes, pois, se assim proceder, torna-se um jogo de dados, um lance de sorte. Nesse estado de coisas, ninguém mais sabe como cumprir as leis, pois as decisões judiciais se tornam extensões das convicções individuais de seus prolatores.
Aparentemente, tudo isso é fruto de uma compreensão míope do Direito. Inculca-se essa ideia (abstrata) de justiça, e todos se esquecem que o Direito deve, entre outras coisas, trazer segurança às relações jurídicas. Se não atentarmos para a necessidade de segurança, mirando todos os recursos na busca de uma “justiça” idealizada, corremos sérios riscos de violentar o princípio democrático, o garantidor supremo das liberdades individuais.
Essa tensão, entre justiça e segurança, deve ser objeto de toda e qualquer meditação sobre a aplicação da lei. Sem ela, corremos sérios riscos de sermos parciais, passionais, precipitados e autoritários. Aliás, a precipitação tem sido uma constante nas esporádicas decisões em que se aplica, diretamente, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e deixa-se de aplicar a legislação ordinária. Nesses casos, invariavelmente, só se enxerga dignidade em relação a uma das partes.
Um magnífico exemplo disso encontra-se nos casos de cortes (seja de energia elétrica ou de telefone) por inadimplência. Em todas as decisões contra o corte, sem exceção, o princípio é aplicado em prol do consumidor inadimplente. Mas, sem falar no simples fato de que a lei ordinária deveria ser observada — a despeito dos sentimentos que o juiz nutre em sua análise da situação —, há diversas consequências extra-autos resultantes de uma decisão como essa.
A primeira delas é: o que dizer para todos os demais consumidores que pagam as suas contas, religiosamente, a despeito de todas as dificuldades? Outra: o que dizer aos funcionários da empresa que podem ser demitidos em razão da redução de receita proveniente dos inadimplentes? Essas pessoas não estão sob o manto da dignidade?
Se não se está, puramente, querendo satisfazer um sentimento de desconforto pessoal do julgador com a ideologia da sociedade em que vivemos, é fundamental que a dignidade seja analisada sob um prisma muito mais amplo que o de uma única pessoa, a qual, de antemão, invariavelmente se trata de um inadimplente.
Por trás desse tipo de decisão está, na realidade, uma vontade de legislar, evidentemente contrária à democracia. Ora, a base de todo o sistema democrático é a separação dos Poderes, que, aliás, de acordo com a nossa Constituição, devem ser “independentes e harmônicos entre si”. A usurpação, caracterizada pela interferência de um poder na competência dos demais, é o mais breve caminho para a crise e eclosão de todo o sistema.
Não fosse tudo isso, diferentemente de outros sistemas jurídicos (como o americano), no Brasil os juízes não são eleitos. Todos eles são concursados. São pessoas que demonstraram notável conhecimento técnico, destacando-se como exímios operadores do Direito. Nessa situação, salvo melhor juízo, parece não ser inerente à carreira de magistrado julgar com base em posicionamentos ideológicos ou sentimentais. É importante não ser omisso à realidade e aos problemas que as populações enfrentam, mas, antes de tudo, o juiz deve ser o guardião da lei, zelando pela sua efetiva aplicação.
Aliás, é da própria Constituição que vem o comando para que a lei ordinária seja aplicada. Justificar o seu não cumprimento, a partir de uma norma da Carta Magna, com o devido respeito, é girar em círculos. Ou, pior, é corromper o Direito pelo próprio Direito, garantindo ao intérprete a opção de aplicar ou não o dispositivo legal a partir de seus critérios pessoais. Ao nosso ver, com todo o respeito, isso não passa de uma volta à tirania salomônica, ou, pior, a uma visão estrábica da República almejada por Platão.
Como disse sir Winston Churchill: “It has been said that democracy is the worst form of government except all those other forms that have been tried from time to time”. Nosso sistema não é o ideal, mas, se prezamos as nossas liberdades e queremos construir instituições democráticas sólidas, temos de fazer a lei ser cumprida. Se a lei é ruim, temos que ir ao Poder Legislativo para conciliar interesses e alterá-la de forma legitima. Nunca construiremos uma nação séria e respeitada na aldeia global se deixarmos de seguir o caminho correto para a solução dos nossos conflitos, buscando atalhos e não enfrentando o problema de frente.
O retorno à tirania — qualquer que seja ela — não pode ser considerado solução para os defeitos da democracia, assim como decidir não aplicar a lei não é a solução para a evolução legislativa. William Pitt bem assinalou que — e isso em meados do século XVIII — “onde termina a lei começa a tirania”. Cumpra-se, pois, a lei, para não termos apenas um arremedo de democracia.
Autor: Leonardo Corrêa é advogado formado pela PUC-Rio, com LL.M pela University of Pennsylvania (EUA).