Fábio Ramazzini Bechara
Os artigos 270 e seguintes do CPP cuidam da assistência no processo penal, mais especificamente da figura do assistente de acusação, estando legitimado para tanto o ofendido ou seu representante legal.
O tema suscita, porém, algumas indagações, dentre elas a identificação do papel da vítima no processo penal, bem como o real conceito de ofendido para fins de assistência.
Em primeiro lugar é possível visualizar a vítima, no processo penal, nas seguintes situações: a) como sujeito passivo de uma infração penal; b) como titular da ação penal privada – seja ela exclusiva, personalíssima ou subsidiária –, hipótese em que o seu poder de atuação se apresenta na forma mais ampla possível, respeitados, obviamente, os princípios que norteiam cada uma dessas espécies de ação; c) na Lei no. 9099/95, a vítima encontra a real possibilidade de satisfação da sua pretensão patrimonial, tendo em vista a possibilidade da composição civil por ocasião da audiência preliminar, com reflexos na punibilidade; d) e, finalmente, tem-se a vítima como assistente de acusação.
Qual o interesse que move a vítima no processo penal? Essa questão tem por base a dúvida suscitada em torno da possibilidade de o assistente recorrer para agravar a pena do réu já condenado. Parte da doutrina e dos Tribunais sustenta que a presença da vítima no processo penal se justifica única e tão-somente em razão do interesse por uma futura indenização, o que acaba por limitar suas ações na relação jurídica processual, não podendo, portanto, recorrer para agravar a pena imposta ao acusado.
Todavia, tal raciocínio apresenta-se incompleto e simplista. E por uma razão bem evidente. Na hipótese de a vítima promover a ação penal privada subsidiária, que na essência é uma ação penal pública, a sua atuação é tão ampla quanto se o MP estivesse no pólo ativo da demanda. Ou seja, goza de ampla liberdade para recorrer e para produzir provas. Logo, não se pode afirmar que o interesse da vítima é de natureza meramente econômica, na medida em que faz as vezes do Estado-Administração, que num dado momento mostrou-se omisso, dada a ausência de pronunciamento pelo MP no momento em que deveria fazê-lo. E no caso do assistente? Por que poderia ele recorrer para agravar a pena do réu? Poderia sim apelar, uma vez que o recurso supletivo do assistente, tal qual a ação privada subsidiária, busca coibir e evitar as conseqüências maléficas provocadas pela omissão ou desídia do MP. Com efeito, qual seria a razão a justificar o tratamento diferenciado entre a vítima enquanto parte principal, na ação privada subsidiária, e a vítima enquanto assistente de acusação? Não há justificativa legalmente aceitável. A única restrição que se põe é que a atuação como assistente tem por finalidade complementar a atividade do MP na relação processual, ao passo que, enquanto titular da ação, a atuação mostra-se mais ampla. Tanto é verdade que se o MP atuar eficazmente, o assistente se posicionará na condição de mero coadjuvante.
No que se refere à segunda questão, relativa ao conceito de ofendido para fins de assistência, indispensável a formulação de algumas reflexões. O ofendido pode ser visto, numa primeira análise, como aquele que sofre a lesão ou ameaça de lesão, em decorrência da prática de uma infração penal – por exemplo, um crime de lesões corporais, um furto, um roubo, apropriação indébita, dentre outros. Nesse mesmo conceito se inserem não somente as pessoas físicas, mas igualmente as pessoas jurídicas, sejam elas de direito público ou de direito privado. No crime de estelionato, na modalidade emissão de cheque sem fundos, por exemplo, tanto é possível que o sujeito passivo seja uma pessoa física quanto uma pessoa jurídica – uma empresa, uma sociedade de economia mista, a União, os Estados, os Municípios.
O problema que se põe, entretanto, refere-se às infrações penais em que não se visualiza um sujeito passivo determinado, como, por exemplo, num crime ambiental ou num crime contra as relações de consumo. Como resolver esse impasse? Parece-me que não admitir a figura do assistente nesses casos é uma interpretação equivocada e incorreta, até porque se lançaria mão de um argumento despropositado e legalmente incorreto, qual seja, o da não existência de um sujeito passivo determinado e individualizado.
O CPP, quando trata da legitimidade do ofendido ou de seu representante legal, não define quem é o ofendido, nem tampouco estabelece um critério para permitir a identificação desse ofendido. Tal situação recomenda, portanto, o socorro de outras normas, cuja autorização encontra-se estampada no art. 3.º do CPP, o qual prevê a possibilidade da aplicação da analogia enquanto critério integrador das eventuais omissões legais. E qual seria o diploma legal a suplantar a omissão retro destacada? Nos mencionados crimes ambientais e crimes contra as relações de consumo, os bens jurídicos tutelados – quais sejam, o meio ambiente e o consumidor – traduzem-se em interesses de natureza difusa, assim entendidos não somente os difusos propriamente ditos, mas igualmente os coletivos e os individuais homogêneos. Quando se fala na defesa judicial desses interesses, pensa-se logo nas ações coletivas propostas na esfera cível, cuja legitimidade é atribuída constitucionalmente ao MP e aos co-legitimados, na forma do estabelecido na CF (art. 129, § 1.º) e na Lei Federal n. 7.347/85. Nessa esteira, indaga-se: qual a diferença entre a tutela do meio ambiente na esfera cível e a tutela do meio ambiente na esfera penal? É claro que o interesse ou direito tutelado é o mesmo. A única diferença restringe-se às conseqüências e efeitos de uma e de outra.
Ora, se o direito ou interesse protegido é o mesmo, pode-se afirmar que os co-legitimados contemplados na CF e na Lei da Ação Civil Pública possuem igualmente legitimidade no âmbito penal, obviamente com algumas restrições, principalmente em razão da titularidade exclusiva da ação penal pelo MP, na forma do art. 129, I, do texto constitucional.
Mas, qual seria então a real extensão da atuação dos co-legitimados no processo penal? Nesse sentido, levando em conta a ressalva acima exposta, tem-se que os co-legitimados podem não somente propor a ação penal subsidiária, mas igualmente podem se habilitar como assistentes de acusação. E qual seria o requisito a ser analisado a fim de se aferir a efetiva legitimidade? Nesse caso deverá ser observado o disposto no art. 5.º, caput, e incs. I e II, da Lei Federal n. 7.347/85. Os co-legitimados abrangem tanto as pessoas jurídicas de direito público como as de direito privado, sendo certo que, nesse último caso, há necessidade de existência por prazo igual ou superior a um ano, bem como a inclusão da proteção ao interesse em discussão dentre as suas finalidades institucionais.
Reforça o raciocínio acima desenvolvido o fato de que, se assim não o fosse, certamente não se visualizaria a admissão da ação penal privada subsidiária nas infrações penais que não possuem sujeito passivo determinado, contrariando o texto constitucional, o qual consagra a ação penal privada subsidiária como direito fundamental. Aliás, tal previsão da ação penal privada subsidiária no rol do art. 5.º da CF constitui uma garantia destinada a coibir a eventual desídia e omissão por parte do titular da ação penal pública. Isso significa dizer que, se nesses crimes não se concebesse a possibilidade da propositura da ação subsidiária pelos co-legitimados, ficaria o MP destituído de qualquer fiscalização social na hipótese de omissão, restando, assim, afrontada, a garantia constitucional.
É por essas razões que a aplicação analógica da Lei n. 7.347/85 mostra-se indiscutivelmente justificada e autorizada.
Em suma pode-se concluir que:
a) Em primeiro lugar o interesse que move a vítima no processo penal não é exclusivamente patrimonial, tanto que, quando move a ação penal privada subsidiária, substitui o MP e representa o Estado-Administração, ostentando nessa condição amplos poderes para a prática dos atos pertinentes ao titular da ação. Seja enquanto parte principal na ação penal privada subsidiária, seja enquanto assistente de acusação na ação penal pública, o fundamento que justifica a sua presença é o mesmo, qual seja: coibir a desídia e a omissão por parte do MP. Assim sendo, o ofendido pode perfeitamente apelar para postular o agravamento da pena imposta ao réu na condenação.
b) Em segundo lugar o conceito de ofendido para fins de assistência ou mesmo para aferição da legitimidade na ação penal privada subsidiária não se restringe ao sujeito passivo direto da infração, mesmo porque em certas infrações o sujeito passivo não é individualizável. Isso significa dizer que, nesse último caso, é perfeitamente concebível o exercício do aludido direito pelos co-legitimados, assim conceituados no art. 5.º da Lei Federal 7.347/85. A aplicação desse texto legal justifica-se pela omissão e falta de clareza do CPP, cuja integração resta viabilizada a partir do art. 3.º do estatuto adjetivo.