Leonardo Henrique Munim Moraes Oliveira
DA AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO NÃO-CONDUTOR DE VEÍCULO ACIDENTADO
LEONARDO HENRIQUE MUNDIM MORAES OLIVEIRA
Advogado e Professor de Curso Preparatório para Concursos em Brasília/DF
Dentre as questões que costumeiramente se controvertem nas conturbadas águas da ciência jurídica, está a da responsabilidade civil do proprietário de veículo envolvido em acidente de trânsito, em não sendo ele, no momento do sinistro, o condutor. Com freqüência se verificam decisões diametralmente opostas mas bem fundamentadas, não se vislumbrando, até o momento, corrente predominante.
A nosso ver, sem embargo das abalizadas opiniões em contrário – que impõem prontamente ao proprietário a culpa pelo sinistro -, a melhor tese, com maior solidez no sistema jurídico nacional, é aquela que não admite seja demandado o proprietário em razão da simples relação dominial, se não era ele quem estava na condução física do automóvel.
_Imprevisão Legal
Ao adquirir um automóvel, o indivíduo não adquire nem assume a obrigação de reparar danos em eventual abalroamento. Tal obrigação surge em face da concreta perpetração do ato (art. 159 do CC), e ainda assim somente para aquele que o perpetrou. De fato, a responsabilidade geral delineada no sistema pátrio é pessoal, subjetiva e, mesmo quando decorre de fato de terceiro, exsurge premente a necessidade da previsão legal de culpabilidade. Bem adverte Caio Mário da Silva Pereira:
“Filosoficamente, a abolição total do conceito de culpa vai dar num resultado anti-social e amoral, dispensando a distinção entre o lícito e o ilícito, ou desatendendo à qualificação boa ou má da conduta, uma vez que o dever de reparar tanto corre para aquele que procede na conformidade da lei quanto para aquele outro que age ao seu arrepio.” (“Instituições de Direito Civil”, vol. III, Ed. Forense, 3ª edição, 1994, p. 396).
E a previsão legal para o conceito de culpa por fato de terceiro consta expressa e taxativamente do art. 1.521 do Código Civil, in verbis:
“Art. 1.521. São também responsáveis pela reparação civil:
I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia;
II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele (art. 1522);
IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos, onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.”
Vê-se, pois, que a responsabilidade do proprietário do veículo por fato do condutor não se inclui na enumeração legal, ressalvada, por certo, a existência de relação de preponência entre ambos, quando então caberá aplicação do inciso III supracitado.
Descabida também a aplicação do art. 1.527 do CC. Em primeiro, porque específica a situação regulada: responsabilidade do dono ou detentor de animal. Em segundo, porque a hipótese é de culpa na modalidade in vigilando, livrando-se o dono tanto que prove que guardava o animal com cautelas de homem comum. Em terceiro, e principalmente, porque diverso o modo de produção do dano: no caso do animal, é a própria coisa que provoca o prejuízo – e a coisa não tem vontade própria nem adquire obrigações; no caso do veículo, por outro lado, quem provoca o prejuízo é um terceiro, servindo-se de sua própria e exclusiva vontade, mediante mera utilização da coisa. Daí decorre mais um argumento favorável à tese ora esposada, qual seja, o de que o veículo é mero meio para realização do evento danoso. Imagine-se um caso similar: alguém que fere outrem com uso de punhal pertencente a terceiro. O dono da arma deverá responder civilmente pelo fato?
_Subjetividade da conduta
Ora, não havendo conduta voluntária e finalisticamente eficaz do proprietário, impossível apurar seu liame com o dano provocado. O Professor Caio Mário assevera:
“O fundamento primário da reparação está, como visto, no erro de conduta do agente, no seu procedimento contrário à predeterminação da norma, que condiz com a própria noção de culpa ou dolo. Se o agente procede em termos contrários ao direito, desfere o primeiro impulso, no rumo do estabelecimento do dever de reparar, que poderá ser excepcionalmente ilidido, mas que em princípio constitui o primeiro momento da satisfação de perdas e interesses.” (ob. cit., vol. I, 3ª edição, 1993, p. 236).
E, em caso específico de reparação por acidente de veículos, assenta Wladimir Valler:
“A obrigação de reparar o dano é, de regra, daquele que causar o prejuízo a outrem. A responsabilidade é individual. O motorista, proprietário do veículo, que por exemplo, dirigindo imprudentemente, dá causa a uma colisão, produzindo danos materiais, é obrigado a reparar, de forma integral, os prejuízos, de modo a repor a vítima na situação em que se encontrava antes do acidente.” (in “Responsabilidade Civil e Criminal nos Acidentes Automobilísticos”, Ed. Julex Livros, 5ª edição, 1994, p. 59)
Observe-se que o doutrinador parte da premissa de que o motorista e o proprietário são a mesma pessoa. Não o sendo, é o motorista quem deve indenizar, haja vista os princípios da individualidade e da estipulação legal da existência de culpa.
Afirma ainda Valler que “Para dar lugar à reparação, o dano deve decorrer diretamente do ato ilícito, ou seja, é indispensável uma relação de causalidade entre o dano e a conduta do agente.” (ob. cit., p. 14). Efetivamente, não há sequer atitude reprovável que se possa imputar ao proprietário quando outrem provoca sinistro no uso de seu veículo, e nem se vislumbra plausível afirmar que o dono concorreu para o fim atingido pelo condutor.
E acresça-se que, mesmo para configuração de eventual responsabilidade objetiva, seria imprescindível a prévia regulamentação legal. Como diz Caio Mário da Silva Pereira, “Não será sempre que a reparação do dano se abstrairá do conceito de culpa, porém quando o autorizar a ordem jurídica positiva.” (“Instituições”, vol. III, Ed. Forense, 3ª edição, p. 396).
_Natureza Jurídica
Vislumbra-se, outrossim, que a utilização do veículo por quem não lhe seja o dono pressupõe precisamente um anterior empréstimo da coisa – ou comodato verbal na expressão jurídica, regulado pelos arts. 1.248 a 1.255 do Código Civil. Tendo o comodatário/condutor a obrigação de zelar pela coisa mais do que se fosse sua, deve ele responder pelos danos nela e por ela advindos, mormente quando ocasionados em decorrência unicamente de ato comissivo seu. Ora, não fosse assim e ninguém mais poderia emprestar, sob o temor da imputação da responsabilidade obscura e imprevista que, escondida nas teias-de-aranha da arbitrariedade, ressurgiria cega e impetuosamente no caso concreto para pisar os Códigos e atordoar os havidos como previdentes. O Direito não se presta a tamanho absurdo.
_Doutrina e Jurisprudência
Por fim, traz-se à colação escólio de Wilson Melo da Silva, in “Da Responsabilidade Civil Automobilística”, que de forma clara reforça sobremaneira os argumentos até aqui expendidos, in verbis:
“Duas figuras jurídicas poderiam aí surgir: a do comodato e a da preposição propriamente dita. (…)
Na hipótese do comodato, vale dizer, da utilização gratuita do veículo pelo amigo ou parente, pura e simplesmente, sem a obrigatoriedade de um determinado destino ou para a realização de um determinado encargo, o dono não se tornaria o responsável pela reparação dos danos conseqüentes de um desastre pelo só fato de ser dono (…).
O ser, alguém, dono de um automóvel, só por si, não implicaria dever, necessariamente, erigir-se, ele, no responsável obrigatório pela reparação dos danos ocorridos com seu veículo.” (Ed. Saraiva, 2ª edição, 1975, p. 254)
E na Jurisprudência também se pode encontrar a isenção do proprietário inocente de veículo acidentado, repelindo tentativas de imprimir ao Direito Pátrio o vírus da imputação de responsabilidade sem previsão legal. Disse o Desembargador Waldir Meuren, em voto condutor de julgamento na 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que “Sem prova efetiva de culpa, não se pode responsabilizar o proprietário de veículo emprestado a outrem que, em o dirigindo, dá causa a acidente.” (Emb. Infring. na Ap. Cív. nº 8.153/81 – Reg. Int. 24.417 – j. em 05/11/82). Na mesma Corte disse o Des. Nívio Gonçalves que “O que autoriza a procedência da ação de reparação civil do dano contra o proprietário do veículo dirigido por terceiro, não é a propriedade, mas sim a preposição, nos termos do art. 1.521, III do Código Civil.” (Ap. Cív. nº 34.720/95 – DJ 17/05/95 – p. 6.422). E na Ap. Cív. nº 34.389/95, o Egrégio TJDF confirmou sentença que excluiu a culpa do proprietário do veículo pelo sinistro, suportando-a unicamente o condutor, ressaltando a necessidade de independência na atribuição de culpa, e a inexistência de responsabilidade objetiva ou presunção a operar contra quem simplesmente detém o domínio (Rel. Des. Jerônymo de Souza – DJ 11/04/95 – p. 4.609).
Por sua vez assentou o Juiz Pinheiro Lago, na 3ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, que “Para caracterização da responsabilidade civil por acidente de veículo, dirigido por terceiro, não importa o direito de propriedade, mas a relação de preposição entre o proprietário e o agente.” (Ap. Cív. 38.623 – j. em 31/05/88). E o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 33.766, teve oportunidade de repelir responsabilidade do proprietário, mesmo sendo este patrão do condutor, se não estava o empregado em atividade de serviço (Rel. Min. Antônio Villas Boas – Ementário do STF vol. 349/480; RTJ vol. 06/231).
_Conclusão
Concluindo, efetivamente não pode o proprietário de veículo ser demandado por acidente quando não era ele seu condutor, em razão da total inexistência de previsão legal de culpa, não bastando para fixá-la a simples situação de domínio material. E a desconsideração desta assertiva implica prontamente em manifesta ilegitimidade passiva ad causam. O pensamento contrário, data venia, opõe-se ao Direito e fere o consagrado princípio da responsabilidade subjetiva. Resta que em sistemas positivistas, como o nacional, só a expressa determinação legal poderia autorizar, sob pena de arbitrariedade, a imposição do dever de reparar a pessoa que, de forma evidente, encontra-se completamente alheia ao dano concretizado.