Da impossibilidade de interrupção do fornecimento de energia elétrica em razão do não pagamento

Roberto Dias Cardoso

Comumente as empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos que exploram a atividade de distribuição de energia elétrica interrompem o fornecimento de eletricidade quando o consumidor deixa de pagar o serviço.

O ato de interromper o fornecimento de energia elétrica, ofende frontalmente o ordenamento jurídico pátrio, não só mandamentos constitucionais, como a legislação atinente à matéria como restará demonstrado. Senão vejamos:

Dispõe a Constituição Federal:

“DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
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LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

Assim dos termos do texto Constitucional acima citado, qualquer medida tendente a resguardar direito individual violado deve ser submetida ao Poder Judiciário e ao devido processo legal.

Não se admite o exercício arbitrário das próprias razões ( art. 345 do CP), como colocado em nosso ordenamento jurídico penal, por exemplo a privação de bens daquele que está sob o manto da legislação brasileira.

Somente é justificável a privação de qualquer bem, logo após o desenrolar de um processo que passe pelo crivo do Poder Judiciário, de acordo com a sistemática legal, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Ocorre que tais assertivas aplicam-se na medida em que, a parte prejudicada, está sendo privada de um direito, ou seja, à prestação de um serviço ESSENCIAL sem que tenha sido condenada pelo poder constituído competente, qual seja, o Poder Judiciário.

O ato praticado pela cessionária de serviço público de interromper o fornecimento de energia elétrica mostra-se inconstitucional e arbitrário nesse ponto Inconstitucional na medida em que não advém de ordem legal, do Estado – Juiz, decorrente de processo, para sua concretização e assim atinge bem (direito) do consumidor sem que esta possa defender-se (a não ser através do Mandado de Segurança). E, por fim, arbitrário, pois contrário aos termos da legislação infra-constitucional, como a seguir se demonstrará e ainda quando a concessionária dispõe dos meios legais para recebimento de sua dívida.

O Código de Defesa do Consumidor, aplicável à espécie dispõe que:

“Art. 2º.: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Art. 3º.: Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestações de serviços.
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§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”
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“Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento , são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, CONTÍNUOS.”
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“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.”
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“Art. 61. CONSTITUEM CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO PREVISTAS NESTE CÓDIGO, SEM PREJUÍZO DO DISPOSTO NO CÓDIGO PENAL E LEIS ESPECIAIS, AS CONDUTAS TIPIFICADAS NOS ARTIGOS SEGUINTES.
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“Art. 71. UTILIZAR, NA COBRANÇA DE DÍVIDAS, DE AMEAÇA, COAÇÃO, CONSTRANGIMENTO FÍSICO OU MORAL, afirmações falsas, incorretas ou enganosas OU DE QUALQUER OUTRO PROCEDIMENTO QUE EXPONHA O CONSUMIDOR, INJUSTIFICADAMENTE, A RÍDICULO OU INTERFIRA COM SEU TRABALHO, DESCANSO OU LAZER:
Pena: Detenção de três meses a um ano e multa”

Por conseguinte, não fosse apenas a letra da Carta Maior, a legislação infra-constitucional, prestigiando os pilares jurídicos de nosso ordenamento, coloca como, primordial e obrigatória a CONTÍNUA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS (como o fornecimento de energia elétrica).

Em segundo lugar veda A UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS COERCITIVOS (como a arbitrária suspensão de fornecimento de serviço por falta de pagamento) PARA FINS DE RECEBIMENTO DE DÍVIDAS.

Por fim , em terceiro lugar, PUNE, TIPIFICANDO COMO CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO, A CITADA UTILIZAÇÃO DE COERÇÃO OU CONSTRANGIMENTO NA COBRANÇA DE DÍVIDAS.

Ainda que assim não fosse a jurisprudência é profícua de casos em que não se admite a suspensão do fornecimento de energia elétrica, mesmo quando haja inadimplemento ou até suposta prática de ato ilícito por parte do consumidor, observemos:

“CONTRATO ADMINISTRATIVO – Fornecimento de energia elétrica
a Município – corte por inadimplemento- Inadmissibilidade – serviço essencial – Interesse coletivo acima do interesse meramente econômico – contrato administrativo é um contrato de direito público, e devem ser respeitadas as suas cláusulas. Não é possível a uma das partes decidir que vai cessar o fornecimento por falta de pagamento, pois não se pode colocar acima do interesse da população, o interesse meramente econ6omico de uma empresa. ( TJ/SP – Ap. Cível n. 236.975-1 – Taubaté – 3ª Câmara Civil – Relator: Eduardo Braga – 06.06.95, V.U.)

ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. FALTA DE PAGAMENTO DE TARIFA DE CONSUMO. MEDIDA VISANDO A COMPELIR O USUÁRIO A SALDAR O DÉBITO. INADMISSIBILIDADE.MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. VOTO VENCIDO.
Mandado de segurança. Atraso no pagamento de débito resultante de consumo de energia elétrica. Interrupção no fornecimento. Inadmissibilidade. Não se admite o corte de fornecimento de energia elétrica como forma de compelir o usuário a pagar dívidas em atraso.
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Nega-se provimento ao recurso com base em precedentes deste Tribunal, via dos quais não se admite o corte de fornecimento de energia elétrica como forma de compelir o usuário a pagar dívida em atraso. Nesse sentido decidiu à unanimidade, esta 1ª Câmara, de cujo acórdão, da lavra do ilustre Des. Protásio Leal, deve ser destacado o seguinte tópico: ‘O que não pode é o usuário ser coagido a pagar o que julga razoavelmente não dever, sob o terror de ver interrompido o fornecimento de energia elétrica, bem indispensável da vida moderna.’…”
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(TJSC, ApMS 2.640 2ª Cam., rel. Des. Hélio Mosiman, RT 626/150)

ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. DÍVIDAS EM ATRASO.INADMISSIBILIDADE.MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO.
Não se admite corte de fornecimento de energia elétrica como forma de compelir o usuário a pagar dívidas em atraso.
Empresa concessionária de serviço de distribuição de energia elétrica. Interrupção do serviço sob alegação de débito. Inadmissibilidade na hipótese .writ deferido. sentença confirmada.
(TJSC, ApMs 2.427, 1ª Cam, rel. Des. Napoleão Amarante, RT 609/168)

ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. FRAUDE NO CONSUMO IMPUTADA AO USUÁRIO. NÃO COMPROVAÇÃO. ILEGALIDADE ADEMAIS, DA PORTARIA QUE DETERMINA A SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO EM TAL CASO.SEGURANÇA CONCEDIDA. RECURSO PROVIDO.
Os serviços públicos são prestados não só em benefício do particular, mas sim em proveito de toda a comunidade, constituindo lesão ao bem comum sua negação a um só dos seus membros. Assim, se o usuário de um serviço público praticar fato delituoso, que seja ele punido. Se praticar ato ilícito civil, que indenize. Mas nunca poderá ser privado de um serviço que é público e que reflete todo um estágio de civilização e qualidade de vida.
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(TJRS, Ap. 585033368, 2ª cam., Des. Manoel Celeste dos Santos, RT 613/179).

Portanto como pode ser observado, se nem o devedor ou o suposto fraudador podem ser privados dos serviços de energia elétrica, com muito mais razão o consumidor não pode se ver privado de tal benefício, como é o caso em questão.

Desse modo, a guisa de conclusão, não resta a menor dúvida quanto à ofensa ao direito do consumidor quando este é compelido a pagar as contas em atraso sob pena de ser interrompido o fornecimento de energia elétrica.

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