Fernando Célio de Brito Nogueira
DO ALCANCE DO ART. 291 DO CT E DA INEXIGIBILIDADE DE REPRESENTAÇÃO NOS CRIMES DE TRÂNSITO DE EMBRIAGUEZ E RACHA
Dispõe o novo Código de Trânsito:
Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.
Parágrafo único. Aplicam-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa, de embriaguez ao volante, e de participação em competição não autorizada o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Dentre as perplexidades trazidas pelo novo Código de Trânsito, o alcance que deve ser dado ao art. 291 e seu parágrafo único tem sido objeto de controvérsias.
Numa interpretação ampla, há quem sustente que em relação aos três crimes (lesão culposa de trânsito – art. 303; embriaguez ao voltante – art. 306; competição não autorizada ou racha – art. 308), por força do disposto no parágrafo único do art. 291, cabem a composição civil extintiva da punibilidade (art. 74 da Lei nº 9.099/95) a transação penal consistente em multa ou restrição de direitos (art. 76 da Lei nº 9.099/95) e somente se procede mediante representação (art. 88 da Lei nº 9.099/95). O axioma segundo o qual favorabilia amplianda, odiosa restringenda, autoriza essa interpretação ampla em seu grau máximo, apesar de inviável ao sistema penal e tendente a não vingar.
Mas há quem sustente que não se pode dispensar àquelas infrações penais o tratamento dado às infrações de menor potencial ofensivo, pois todas têm penas máximas superiores a um ano e não são, portanto, infrações penais de menor potencial ofensivo, assim entendidas aquelas cuja pena máxima não seja superior a um ano (art. 61 da Lei nº 9.099/95). Além disso, o caput do art. 291 ressalvou a aplicação da Lei nº 9.099/95 aos crimes de trânsito no que couber. Para essa posição, a composição civil extintiva da punibilidade, a transação penal e a exigência de representação ficariam limitadas exclusivamente ao delito de lesão corporal culposa de trânsito (art. 303 do Código de Trânsito), cujo tratamento se equipararia, então, ao dispensado ao crime de lesão corporal culposa do Código Penal. Nesse sentido, Damásio Evangelista de
Jesus em Crimes de Trânsito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40-41.
Num entendimento que consideramos mais adequado e consentâneo com a idéia de sistema jurídico e com as novas e revolucionárias diretrizes trazidas ao nosso ordenamento jurídico-penal pela Lei nº 9.099/95, há quem sustente que o art. 291 e seu parágrafo único devem ser bem entendidos a fim de que não se adote interpretação que leve ao absurdo. Assim, a composição civil e a exigência de representação ficariam limitadas ao crime de lesão corporal culposa de trânsito (art. 303 do Código de Trânsito), enquanto a transação penal consistente em multa e restrição de direitos abrangem tanto o crime de lesão corporal culposa de trânsito, como também os delitos de embriaguez ao volante e competição não autorizada (arts. 306 e 308 do Código de Trânsito). Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes em CT: primeiras notas interpretativas, Boletim IBCCrim, n. 61, p. 4, dezembro de 1997.
Respeitadas as posições contrárias, exigir a representação como condição para o exercício válido e regular da ação penal em crimes de perigo concreto indeterminado, como são a embriaguez ao volante e o racha, significaria deixar a sociedade à mercê desses crimes e relegá-los à impunidade, pois a própria natureza desses delitos é incompatível com o instituto da representação, uma vez que não têm eles, necessariamente, vítima ou vítimas certas e determinadas (embora até possam ter), pois normalmente tais crimes expõem a situação de risco a coletividade, grupo ou grupos de pessoas, colocam em perigo a segurança no trânsito, bem de indisponibilidade absoluta.
A representação, em nosso ordenamento jurídico, tradicionalmente coloca-se como condição ao exercício da ação penal naqueles delitos que ofendem mais de perto ao indivíduo e, secundariamente, a coletividade, de modo que o legislador, em casos tais, preferiu deixar ao arbítrio do ofendido outorgar ou não legitimidade ao Estado-acusação para o exercício válido e regular da ação penal, por medida de política criminal ou até mesmo em razão da própria repercussão do fato, por vezes tão danosa ao indivíduo quanto o crime contra ele perpetrado. É o que se verifica, a título exemplificativo, nos crimes de ameaça, nos delitos sexuais, nos crimes contra a honra de funcionário público ofendido em razão da função, nos crimes contra o patrimônio nas hipóteses do art. 182 do Código Penal (ressalvado o disposto no art. 183), e recentemente passou a se verificar nos casos de lesão corporal dolosa simples e culposa, por força do art. 88 da Lei nº 9.099/95.
Porém, quando se tem em vista crimes de perigo concreto indeterminado, em que nem sempre é possível identificar com precisão vítima ou vítimas, inexigível a representação. Na prática, sabemos o quanto as pessoas em geral, em sua maioria, repudiam a idéia de servirem de simples testemunhas. Imaginemos então o caos estabelecido se passássemos a exigir representação de alguma vítima quando A, embriagado, praticasse estrepolias ao volante na porta de uma escola ou nas imediações de um ponto de ônibus, ou então quando A, B, C, D e E resolvessem disputar um racha em área central urbana, em horário de intenso movimento no trânsito. Seguramente, os crimes de embriaguez ao volante e racha, formulada a exigência, ficariam impunes em sua grande maioria, e seriam excepcionais os casos em que este ou aquele cidadão representaria.
Além disso, não é lógico e nem tampouco razoável concebermos que o Estado exija a manifestação autorizante de algum cidadão para a deflagração da atividade persecutória tendo por objeto crimes que põem em risco não apenas este ou aquele indivíduo, mas a coletividade e a segurança no trânsito. É como se uns ou alguns cidadãos devessem se tornar porta-vozes de outros, autorizando o Estado a fazer aquilo que é de sua obrigação, independentemente de qualquer condição, como se trata de promover a ação penal pública incondicionada.
Dificuldade poderia haver até mesmo para situar a legitimidade desse ou daquele cidadão para formular a representação. Se em lugar de uma das vítimas da situação de risco, imagine-se que uma testemunha, indignada com o comportamento de algum bêbado ao volante ou com o acinte de corredores inconseqüentes, resolvesse representar, constatação feita uma vez finda a instrução probatória. Como emprestar validade a uma representação que não foi sequer externada pela vítima ou por uma das vítimas do crime, mas por mera testemunha?
Tão desastroso quanto exigir representação em casos tais, seria admitir a composição civil extintiva da punibilidade nos casos de embriaguez ao volante e racha. Significaria dizer que os ébrios e os disputantes de rachas que se compusessem civilmente com suas vítimas seriam beneficiados com a extinção da punibilidade, por força das conseqüências que o acordo relativo aos danos acarreta, nos termos do art. 74 da Lei nº 9.099/95. Como quantificar o perigo sofrido pelas pessoas? E as demais pessoas expostas à situação de risco não abrangidas no acordo? E a coletividade exposta ao risco decorrente daqueles crimes? Aplaudiriam silentes a solução penal havida? Por certo que não.
De outra parte, estender a transação penal prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/95 aos três crimes elencados no parágrafo único do art. 291 do Código de Trânsito, embora implique ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, exceção ao conceito e extensão daquele tratamento previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais (art. 76) a delitos com pena máxima superior a um ano, não nos parece solução inadmissível ou absurda. Principamente porque consentânea com a verdade consensuada e com a Justiça consensual trazida ao nosso ordenamento jurídico e ainda com as tendências do Direito Penal moderno, no que tange à eleição de medidas despenalizadoras, restringindo-se a aplicação da pena privativa de liberdade aos casos mais extremos. A solução não é, talvez, a mais adequada, principalmente pela quebra da sistemática ditada pela Lei do Juizado Especial Criminal, excepcionado ou dilargado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para abranger crimes com pena máxima superior a um ano. Inevitável, contudo, a interpretação, para que o disposto no art. 291 e seu parágrafo único do Código de Trânsito não se torne letra morta, mormente quando se sabe que o Direito Penal tende a adotar a interpretação mais benéfica ou menos gravosa ao agente, sem que seus operadores se obriguem, no entanto, a seguir teses absurdas.
Por esse motivos, nos parece que deverá prevalecer o entendimento de que a composição civil extintiva da punibilidade e a exigência de representação (arts. 74 e 88 da Lei nº 9.099/95) limitam-se à lesão corporal culposa de trânsito, enquanto a transação penal nos moldes do art. 76 da Lei nº 9.0999/5 se estenderá aos três delitos previstos no parágrafo único do art. 291 do Código de Trânsito: lesão corporal culposa, embriaguez ao volante e racha.
É esse o posicionamento que sustentamos em nosso primeiro e recém-lançado livro Crimes do Código de Trânsito, pela Editora Atlas, páginas 74 a 80.
Fernando Célio de Brito Nogueira é Promotor de Justiça em Barretos – SP.