Cláudia Martins Quaresma
SUMÁRIO
1 – Introdução
2 – Natureza da sociedade por cotas de responsabilidade limitada
3 – A questão da penhorabilidade das cotas na doutrina
4 – A questão da penhorabilidade das cotas na Jurisprudência
5 – Conclusão
6 – Referências Bibliográficas
1 – INTRODUÇÃO
A penhorabilidade de cotas de sociedade limitada é controvérsia antiga e ainda hoje instigante, sendo alvo de muitas pesquisas doutrinárias e resultados jurisprudenciais, não havendo se chegado ainda a uma posição pacífica e cristalizada acerca do tema.
No presente trabalho serão enfocadas as correntes existentes a favor e contra a penhorabilidade das cotas, tendo-se em mira a legislação vigente acerca das sociedades limitadas.
Para tanto, indispensável a abordagem, embora sucinta, da conceituação e das características das sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Estas surgiram na Alemanha e constituem a mais recente e difundida forma societária brasileira, introduzida no direito pátrio pelo Decreto 3.708, de 10 de janeiro de 1919, decorrente da busca de uma alternativa para se explorar atividades econômicas em parceria, sem os entraves onerosos e burocráticos das sociedades anônimas, mas assegurando-se a preservação do patrimônio dos cotistas.
A principal característica do tipo societário em exame é a limitação da responsabilidade dos sócios à integralização do capital social. Os sócios respondem não só pelo que falta para integralização da sua própria cota, mas também pelo que falta para a integralização da cota dos outros sócios. Integralizado inteiramente o capital social, o patrimônio particular de nenhum sócio responderá pelas dívidas da sociedade, por força do disposto nos arts. 2º e 9º do Decreto 3.708/19.
A grande incidência de utilização da sociedade por cotas se deve à ausência de dificuldades para sua constituição e funcionamento, eis que não se subordina à publicação de balanços e a assembléias-gerais obrigatórias, como as sociedades anônimas, sendo sua legislação marcada pela simplicidade. Com efeito, o Decreto que a regulamenta é pequeno e permite uma ampla liberdade de estipulação de cláusulas e condições para a sua atividade.
Em relação à constituição ou dissolução da sociedade por cotas, há que se observar as disposições previstas nos artigos 300 a 302 do Código Comercial, conforme estabelecido pelo art. 2º do Decreto 3.708/19. Quanto às demais matérias, em caso de omissão do Decreto 3.708/19, deve ser examinado o contrato social. Sendo este igualmente omisso, incide a lei das sociedade anônimas, consoante art. 18 do Decreto 3.708/19.
No primeiro capítulo do presente trabalho será abordada a questão da natureza jurídica das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, premissa para o enfoque do tema da penhorabilidade de cotas. No segundo e no terceiros capítulos será dada ênfase específica ao assunto da penhorabilidade de cotas nesse modelo societário, enfocando a questão à luz da doutrina (capítulo 2) e da jurisprudência (capítulo 3). Por fim, tem-se a conclusão.
2 – NATUREZA DA SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA.
Sabe-se que as sociedades de pessoas são aquelas nas quais a pessoa do sócio se reveste de extrema relevância, eis que são formadas com base na affectio societatis. O relacionamento e o vínculo entre os sócios são a motivação da própria sociedade, prevalecendo o intuitu personae. Já nas sociedade de capital, como não se ignora, o que se torna relevante é a quantidade de capital para o empreendimento e não a figura do sócio, que é indiferente ao outro.
Assim, extrai-se que nas sociedades de pessoas, a cessão das cotas não é permitida livremente, possuindo cada um dos sócios o direito de vetar o ingresso de pessoa estranha à sociedade, ao passo que nas sociedades de capital vigora, segundo Fábio Ulhoa Coelho[1], o princípio da livre circulabilidade da participação societária. A mutabilidade dos sócios nas sociedades de capital é a regra.
Quanto à sociedade limitada, o seu decreto regulamentador não define a sua natureza jurídica, havendo na doutrina dissensão a respeito. Existem correntes em três sentidos, quais sejam: a de que é sociedade de capital; a de que é sociedade de pessoas e a de que é de espécie híbrida.
João Eunápio Borges[2] defende a posição de que a sociedade por cotas é uma sociedade de capital por só oferecer como garantia aos credores o patrimônio social.
Entre os doutrinadores que sustentam a natureza intuitu personae da sociedade limitada, encontram-se Waldemar Ferreira[3], Cunha Peixoto[4] e Fran Martins[5], dentre outros.
O já citado professor Fábio Ulhoa Coelho[6] entende que a sociedade limitada, ao contrário dos demais tipos, pode ser de pessoas ou de capital, de acordo com a vontade dos sócios. O contrato social define a natureza de cada limitada. Nesse mesmo sentido está José Waldecy Lucena[7], que enfoca a sociedade por cotas como um novo tipo de sociedade, de natureza própria, tendo em vista que, ao ser constituída, pode se estruturar sob a índole pessoalista ou capitalística. Esta a posição que parece mais razoável. Vale dizer, o melhor critério de classificação da natureza da sociedade por cotas é o que a considera uma sociedade intermediária, híbrida.
3 – A QUESTÃO DA PENHORABILIDADE DAS COTAS NA DOUTRINA
Observada a natureza das sociedades limitadas e sabendo-se que o capital social dessa espécie societária é dividido em cotas, será enfrentada especificamente a questão da penhorabilidade de tais cotas.
O atual Código de Processo Civil, em seu art. 591, dispõe que o devedor responde com a totalidade de seus bens ao cumprimento de suas obrigações, salvo as exceções previstas em lei. Há, assim, bens inexpropriáveis. A questão que se tem em foco é se saber se as cotas das sociedades limitadas estão incluídas nesses bens inexpropriáveis, impenhoráveis.
A matéria, longe de ser nova, apresenta bastante divergência na doutrina.
O Estatuto Processual Civil de 1939 estabelecia a impenhorabilidade dos fundos sociais pelas dívidas particulares dos sócios, restringindo a possibilidade de penhora apenas aos fundos líquidos do executado em sociedade comercial (arts. 931; 942, XII e 943, II). A doutrina, aliando tais dispositivos ao art. 292 do Código Comercial, entendia que a cota integrava os fundos sociais e daí não podia ser penhorada.
O Código de Processo Civil de 1973 mudou o posicionamento da doutrina. Não reproduziu as ressalvas constantes do texto legal anterior, trazendo à tona a conclusão de que efetivamente quis permitir a penhora das cotas, até porque admitiu o usufruto do quinhão do sócio na empresa, o qual tem como pressuposto necessário a penhora do quinhão. Por outro lado, a cota da sociedade limitada não foi incluída no rol dos bens impenhoráveis expressos no art. 649 do CPC.
Nessa ordem de idéias, segue-se que na doutrina brasileira atual existem três posições sobre o tema.
A primeira é a de que as cotas são penhoráveis porque são bens móveis como outro qualquer, representam direitos patrimoniais dos sócios. Argumentam os defensores de tal posição, entre os quais inclui-se João Eunápio Borges[8], que sendo as cotas alienáveis podem ser objeto de constrição judicial. Segundo ele, a cota tem individualidade própria e integra o patrimônio do sócio e não da sociedade, sendo suscetível de transferência, por ato entre vivos ou causa mortis, inexistindo impedimento para que sejam objeto de penhora.
A segunda corrente sustenta a impenhorabilidade das cotas, em síntese, por quatro motivos: A uma porque as cotas possuem existência apenas ideal, não se materializando como as ações em títulos; a duas porque a penhora acarreta a quebra da affectio societatis ao permitir a entrada de terceiro em sociedade de pessoas; a três porque pela penhora das cotas o patrimônio social arcaria por dívida particular do sócio, afrontando a teoria da personalidade jurídica da sociedade comercial; e a quatro porque, admitida a penhora da cota, a sua liqüidação ameaçaria a continuidade da empresa.
Por fim, a terceira entende que para se saber se a cota é ou não penhorável, deve-se fazer uma análise do contrato social. Se dele constar cláusula permitindo a cessão de cota a terceiro, sem a anuência dos demais sócios, é possível a penhora, pois com esta cláusula a sociedade demonstraria que o adquirente poderia ingressar na sociedade livremente. Entretanto, se não houver cláusula permissiva da cessão das cotas, não é cabível a penhora, assumindo a sociedade a feição intuitu personae. Tal posição é defendida por Rubens Requião[9].
Para as segunda e terceira correntes adota-se o entendimento de que a sociedade limitada possui caráter personalista e que o ingresso de pessoa estranha causaria abalo à sociedade. A primeira corrente, por seu turno, dispensa o caráter capitalista à sociedade por cotas, admitindo a entrada de qualquer pessoa para a sociedade.
4 – A QUESTÃO DA PENHORABILIDADE DAS COTAS NA JURISPRUDÊNCIA
Igualmente na jurisprudência o tema apresenta diversas oscilações.
Admitindo a penhora, pode-se citar decisão isolada, preconizada em voto pelo Ministro Nelson Hungria, no RE 24.118, julgado em 8.10.53, que entendeu penhoráveis as cotas de sociedade limitada, substituindo-se a final o credor-exqüente nas vantagens e ônus do cotista-executado, independente do assentimento dos demais.
Como registrado por Rubens Requião[10], “o Supremo Tribunal Federal, sensível ao problema, tem admitido a penhora da cota do sócio por dívidas particulares de cotista, em sociedade por cotas, desde que do contrato social se permita a cessão e transferência das cotas sem a prévia anuência dos demais sócios”.
Importante salientar, ainda, a divergência verificada entre os eminentes Ministros Xavier de Albuquerque e Cunha Peixoto no julgamento do Recurso Especial 90.910-PR, em 29.02.84, cujo inteiro teor é anexado à presente. Nele o Ministro Xavier de Albuquerque sustenta a penhorabilidade das cotas e o Ministro Cunha Peixoto discorda veementemente, argumentando pela impenhorabilidade, fundada na formação intuitu personae da sociedade.
Hoje, o Superior Tribunal de Justiça admite a penhora das cotas, verificando-se ainda uma divergência não superada. É que no STJ há entendimento de que as cotas são penhoráveis ainda que no contrato conste cláusula estabelecendo a impenhorabilidade, tendo em vista que a impenhorabilidade absoluta só pode decorrer da lei. É o que se extrai dos acórdãos também anexados ao presente. Por outro lado, há posição, também no STJ, de que a penhora é admissível, salvo se constar do contrato social cláusula vedando a penhora, pois os sócios quiseram revestir a sociedade da natureza de sociedade de pessoas.
5 – CONCLUSÃO
O assunto da penhorabilidade das cotas de sociedade limitada, como já registrado, não apresenta solução fácil e pacífica na doutrina e na jurisprudência.
As cotas sociais representam patrimônio do sócio e, prima facie, devem responder por suas dívidas, com base no princípio geral estabelecido no art. 591 do CPC.
Para a análise da possibilidade de penhora das cotas, há que se examinar inicialmente se a sociedade limitada é de pessoas ou de capital, a fim de se concluir se é viável ou não o ingresso nela de terceira pessoa. Assim, sendo a sociedade de pessoas, as cotas são impenhoráveis a fim de se preservar a affectio societatis. Diante de sociedade de capital, verifica-se a penhorabilidade das cotas, sendo certo que o CPC de 1973 não se referiu às cotas da sociedade por cotas quando elencou os bens absolutamente impenhoráveis e também não repetiu a vedação da penhorabilidade dos fundos sociais antes existente no CPC de 1939.
Legítima, porém, de qualquer forma, a penhora dos rendimentos das cotas.
6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1992.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1999.
FERREIRA, Waldemar. Sociedades por Quotas. São Paulo: 1925.
LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Por Quotas de Responsabilidade Limitada. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
MARTINS, Fran. Direito Societário. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. A Sociedade por Cota de Responsabilidade Limitada. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1981.
Monografia apresentada como exigência final da disciplina Direito Societário, do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos, sob a orientação da Prof. Carla Marshall.
Cláudia Martins Quaresma é Promotora de Justiça Titular da 2ª Curadoria de Família e Juventude da Comarca de Campos dos Goytacazes e professora da Faculdade de Direito de Campos.
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[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 113.
[2] BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 326.
[3] FERREIRA, Waldemar. Sociedades por Quotas. São Paulo: 1925, p. 275.
[4] PEIXOTO, Carlos Fulgêncio da Cunha. A Sociedade Por Cota de Responsabilidade Limitada. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 58 e seguintes
[5] MARTINS, Fran. Direito Societário. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 247.
[6] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. V. 2, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 363.
[7] LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Por Quotas de Responsabilidade Limitada. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 45.
[8] Ob. cit, p. 345.
[9] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 333.
[10] Ob. cit., p. 334.