Da realização de atos e audiências processuais por via eletrônica

Vladimir Aras*

É intensa a polêmica que ronda os projetos de lei que visam à introdução do interrogatório on-line ou tele-interrogatório no sistema processual penal do País. Parece-nos que, entre nós, a primeira tomada de depoimento de um acusado nesta modalidade ocorreu em 1996, numa vara criminal de São Paulo, com uso de um sistema rudimentar, por assim dizer.

A “audiência” do réu realizou-se por e-mail, mediante digitação das perguntas e das respostas, sem som e imagem em tempo real. Atualmente, contudo, o teledepoimento é colhido de forma mais avançada, por meio de videoconferência, permitindo total interação entre o magistrado e o interrogado e os demais sujeitos processuais, com tecnologia audiovisual.

A respeito do tema, há especialmente duas iniciativas legislativas tramitando em conjunto no Congresso Nacional: o projeto de lei n. 2.504, de 23 de fevereiro de 2000, do deputado Nelson Proença, que é bastante sucinto, e o projeto de lei n. 1.233, de 17 de junho de 1999, de autoria do deputado Luiz Antônio Fleury, de São Paulo. Esta última proposta modifica a redação dos artigos 6º, 10, 16, 23, 28, 185, 195, 366 e 414 do Código de Processo Penal, alterando os critérios para realização do inquérito policial e possibilitando a realização de interrogatórios e audiências a distância, por meio telemático, “através de um canal reservado de comunicação entre o réu e seu defensor ou curador”.

A principal modificação proposta pelo projeto de lei nº 1.233/99 seria feita no art. 185 do CPP, cujo parágrafo único passaria a dispor que “Se o acusado estiver preso, o interrogatório e audiência poderão ser feitos à distancia, por meio telemático que forneça som e imagem ao vivo, bem como um canal reservado de comunicação entre o réu e seu defensor ou curador”.

Em 12 de julho de 2001, o relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara, deputado Aldir Cabral (RJ) emitiu parecer pela aprovação, com substitutivo, do projeto Fleury, e pela rejeição do projeto de lei n. 2.504, de 2000, que tramita em apenso. A proposta do ano 2000 tem artigo único e é menos complexa que a iniciativa n. 1.233, de 1999. De fato, o art. 1º do projeto Proença determina que “No Processo Penal poderá o juiz, utilizando-se de meios eletrônicos, proceder à distância ao interrogatório do réu”, ao passo que o parágrafo único dispõe que “O interrogatório, neste caso, exigirá que o réu seja assistido por seu advogado ou, à falta, por Defensor Público”.

Embora sua redação permita o tele-interrogatório de réus presos e soltos, cremos que o projeto de lei n. 2.504, de 2000, tem poucas chances de aprovação bicameral. A proposição principal é sem dúvida a do deputado Luiz Antônio Fleury, que, se acolhida, inaugurará mais uma fase da justiça eletrônica no País, que não é senão uma das facetas do e-gov e uma das etapas de implantação da sociedade da informação no Brasil.

A controvérsia em torno do tele-interrogatório

Todavia, a questão é bastante controvertida. Diversas são as manifestações contrárias ao tele-interrogatório, sendo menos numerosa a oposição ao teledepoimento (para vítimas e testemunhas) e à tele-sustentação, esta para advogados e membros do Ministério Público. A utilização de videoconferência para a tomada de declarações de suspeitos de crimes levanta maior repulsa entre os críticos das aplicações de informática jurídica, tendo em vista a necessidade de assegurar os preceitos constitucionais que garantem aos acusados a ampla defesa e o due process of law.

O movimento de oposição ao interrogatório on-line tem sido capitaneado em nosso País principalmente pela Associação Juízes para a Democracia, pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, pela Associação dos Advogados de São Paulo e por outras entidades de âmbito estadual e nacional, inclusive órgãos públicos.

Com efeito, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça manifestou-se contrariamente ao tele-interrogatório no Brasil. A Resolução nº 5, de 30 de setembro de 2002, fundada nos pareceres dos conselheiros Ana Sofia Schmidt de Oliveira e Carlos Weis, rejeitou a proposta, consubstanciada na Portaria n. 15/2002, de adoção do sistema, mesmo para a ouvida de presos considerados perigosos.

Na conclusão do parecer da conselheira Ana Sofia Schmidt de Oliveira, divulgado pela Revista Consultor Jurídico, entendeu-se ilegal o tele-interrogatório e recomendou-se a “não utilização de recursos do Funpen para aquisição dos equipamentos de videoconferência a serem utilizados em atos judiciais, sem prejuízos de outras formas de utilização, em especial nas instâncias administrativas, como para o acionamento dos órgãos de corregedoria e ouvidoria do sistema penitenciário”.

Uma questão semântica

Fundamentalmente, a repulsa ao método de interrogatório a distância deita raízes nos princípios do devido processo legal e da ampla defesa (art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal), bem como na letra do art. 185 do CPP, que dispõe que “O acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado”. Porém, assim não entendemos, porquanto nações democráticas da Europa ocidental já adotam o tele-interrogatório, sem qualquer lesão a direitos individuais. Além do mais, a interpretação gramatical ou literal não é a melhor técnica para solucionar uma questão tão complexa.

Na sistemática do CPP, “comparecer” não significa necessariamente ir à presença física do juiz, ou estar no mesmo ambiente. Comparece aos autos ou atos do processo quem se dá por ciente da intercorrência processual, ainda que por escrito, ou quem se faz presente por meio de procurador, até mesmo com a oferta de alegações escritas, a exemplo da defesa prévia e das alegações finais. Vide, a propósito, o art. 570 do CPP, que afasta a nulidade do ato, considerando-a sanada, quando o réu “comparecer” para alegar a falta de citação, intimação ou notificação.

Evidentemente, não se trata de comparecimento físico diante do juiz, mas sim de comunicação processual, por petição endereçada ao magistrado. No mesmo sentido, o comparecimento de pessoa com direito de queixa, previsto no art. 36 do CPP. Idem para o “comparecer”, no sentido empregado nos casos de perempção da ação penal de iniciativa privada (art. 60, II e III, CPP). Assim também no art. 367 do código. Em tais passagens do CPP, o multicitado verbo tem o sentido que ora assinalamos, e não o de “estar no mesmo ambiente” ou “apresentar-se em local determinado”.

Se é assim em todas estas situações, pode-se muito bem ler o “comparecer” do art. 185 do CPP, referente ao interrogatório, como um comparecimento virtual, mas direto, atual e real, perante o magistrado. A mesma exegese aplica-se ao art. 310 do CPP, caso em que o comparecimento virtual ou eletrônico do acusado aos atos do processo não ensejará a revogação da liberdade provisória. Assim também se dará quando da concessão de suspensão condicional da pena e do livramento condicional.

O comparecimento mensal a que alude o art. 78, parágrafo2º, alínea ‘c’, do Código Penal, poderá ser por videoconferência. Nestes casos, o sistema eletrônico privilegia o jus libertatis, pois o réu solto poderá participar de audiências à distância, sem deslocar-se da localidade de sua residência e obviamente sem despender recursos por vezes indispensáveis à sua mantença e de sua família. E sem correr o risco de ver revogados os seus benefícios legais de liberdade provisória, sursis penal e processual e livramento condicional. Vê-se então usos extremamente positivos das aplicações de informática jurídica, que como os demais inventos humanos são ambivalentes.

Também haverá benefício para o réu afiançado, pois a fiança não se considerará quebrada, caso o comparecimento ocorra por via eletrônica. Com efeito, diz o art. 327 do CPP que “A fiança tomada por termo obrigará o afiançado a comparecer perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento. Quando o réu não comparecer, a fiança será havida como quebrada”. No mesmo sentido o art. 341 do CPP: “Julgar-se-á quebrada a fiança quando o réu, legalmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem provar, incontinenti, motivo justo (…)”. O uso das tecnologias da informação é portanto um aliado do direito de liberdade e do princípio da celeridade processual.

Neste mesmo passo, se implementados meios de “presença eletrônica”, não haverá necessidade de o réu comparecer pessoalmente, todos os meses, perante a sede do juízo, para informar e justificar suas atividades, como condição da suspensão condicional do processo (sursis processual), prevista no art. 89 da Lei n. 9.099/95, especialmente o parágrafo1º, inciso IV.

Com a entrada em vigor da Lei n. 10.259/2001, que cuida dos Juizados Especiais Federais (cíveis e criminais), tornou-se possível no País a organização pelos tribunais de “serviço de intimação das partes e de recepção de petições por meio eletrônico”. É um grande salto no caminho da implantação da presença eletrônica e da virtualização do comparecimento das partes ao juízo.

A mesma lei vai adiante ao permitir que as turmas de uniformização de jurisprudência dos Juizados federais brasileiros reúnam-se por meios eletrônicos. De fato, o art. 14, parágrafo3º, da lei, diz que “A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via eletrônica”. Que é isto senão uma audiência virtual? Estamos diante de uma sessão de julgamento plenamente válida, embora os juízes participantes não estejam presentes no mesmo recinto, mas sim presentes em recintos diversos.

Visão normativa do problema

Alega-se que o artigo 9º, parágrafo3º, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de Nova Iorque) e o artigo 7º, parágrafo5º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), prevêem o direito do réu de ser conduzido à presença física do juiz natural. Ora, as referidas normas falam apenas em levar o detido à “presença do juiz”, e a presença virtual, ao vivo, por meio de videoconferência, confere ao acusado as mesmas garantias que o comparecimento in persona, diante do magistrado. Desde que sejam assegurados ao réu os direitos de ciência prévia, participação efetiva e ampla defesa (inclusive com o acompanhamento do ato in loco por seu defensor), que caracterizam o contraditório, não há razão para temer o tele-interrogatório, sob o pretexto de violação a direitos fundamentais do acusado no processo penal.

O comparecimento físico perante a autoridade judicial não é exigido pelo direito internacional nem pela Constituição brasileira. Com efeito, o art. 5º, inciso LXII, declara que “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”.

Frise-se: a prisão será “comunicada” ao juiz competente. Não impõe a Constituição a apresentação do réu ao juiz, na sede do juízo, mesmo num momento em que a legalidade ou legitimidade da prisão ainda não foi verificada pelo Judiciário. Por que então haveria de impô-la (a apresentação do acusado no mesmo recinto do juiz) no instante do interrogatório, depois que o magistrado (e às vezes até mesmo os tribunais) em regra já se posicionou a respeito da cautela restritiva de liberdade? O tele-interrogatório não é um dos males do tempo. Não esqueçamos que a videoconferência se presta à ouvida de réus presos e de réus soltos, detidos ou residentes em comarca diversa do distrito da culpa, com o que atende a interesses fundamentais de uns e outros.

Neste aspecto, vale notar que o art. 352, inciso VI, do CPP, determina que o mandado de citação deve indicar “o juízo e o lugar, o dia e a hora em que o réu deverá comparecer”. Ora, embora seja da década de 1940, o dispositivo se presta a regular o tele-interrogatório, pois não exige que o comparecimento se faça no mesmo local onde funciona o juízo processante. Ao mencionar “o juízo e o lugar” em que o réu deverá comparecer, o preceito permite que tal presença se dê em outro juízo ou local dotado dos meios necessários à ouvida do réu. Este local pode estar em outra comarca ou em outro país, como nos casos das precatórias e rogatórias (art. 354, IV, CPP).

Em nosso ordenamento jurídico, o artigo 2º, parágrafo3º, da Lei n. 7960/89, em sede de prisão temporária, faculta (mera faculdade, portanto) ao juiz, “de ofício, ou a requerimento do Ministério Público e do Advogado, determinar que o preso lhe seja apresentado, solicitar informações e esclarecimentos da autoridade policial e submetê-lo a exame de corpo de delito”. Embora se entenda comumente que tal apresentação deve ser pessoal (afinal a Lei é de 1989, quando a WWW acabava de ser criada no CERN, na Europa), não está proibida a apresentação do preso por videoconferência, tendo em conta que o objetivo da medida é permitir ao juiz verificar pessoalmente, no tempo presente, as condições físicas do detido e observar se ele foi submetido a maus tratos, a abuso de autoridade ou a tortura.

O sistema de teleconferência, dotado de câmeras de vídeo com zoom e gravação, atende inteiramente ao objetivo da norma e ainda permite a preservação incontinenti da prova das eventuais lesões corporais. As câmeras podem ser manejadas remotamente pelo magistrado ou in loco por um auxiliar do juízo. Como veremos adiante, nem mesmo os arts. 68 a 72 da Lei n. 9.099/95 impõem o comparecimento do acusado ao mesmo espaço físico do Juizado Criminal. Basta de logo que se observem os princípios gerais dos arts. 62 e 65 e o disposto no parágrafo1º, do art. 78 e no art. 81 da mesma lei.

No CPP, quanto ao réu preso há a previsão do art. 370, segundo o qual, “Se o réu estiver preso, será requisitada a sua apresentação em juízo, no dia e hora designados”. O preceito é mais restritivo do que o do art. 185 do mesmo código, e, segundo nos parece, trata-se potencialmente da mais forte objeção normativa, de natureza infra-constitucional, que se pode altercar em relação ao tele-interrogatório, no Brasil. É que o dispositivo manda apresentar o réu “em” juízo, o que difere de apresentá-lo “ao” juízo.

É consenso, entretanto, que a exegese literal não costuma fornecer boas soluções hermenêuticas. Se ao método literal associarmos a interpretação histórica, veremos que o CPP, de 1941, simplesmente não tinha como determinar a apresentação do réu de outro modo. Não existiam alternativas. O meio era um só. Mas hoje não. As novas mídias são novos meios. Mas o ato judicial é o mesmo. Comparece o réu em juízo quando aparece diante do magistrado, no mesmo instante, ainda que os dois não estejam no mesmo local. Pois comparecer e aparecer são sinônimos. Basta consultar os dicionários.

A preposição “em” é encontrada como elemento de transição indireta do verbo “comparecer” em outros pontos do Código de Processo Penal. No processo dos crimes contra a honra, de competência do juiz singular, o art. 520 do CPP estatui que “Antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo”.

Na perspectiva aqui invocada, acreditamos que essa audiência pode ser realizada por videoconferência, com o que atingirá plenamente sua finalidade. Se o querelante e o querelado quiserem conciliar-se, o farão, seja por que meio for. Não custa lembrar que a prescrição é um dos maiores motores da impunidade, principalmente nos delitos de reduzida apenação. A utilização de meios alternativos de aceleração do processo, como o teledepoimento e a tele-sustentação, contribui para dar efetividade ao processo e para combater alguns dos males da criminalidade, entre os quais está a demora da prestação jurisdicional.

Nem em sede de habeas corpus está vedada a utilização de meios tecnológicos. Já é possível impetrar habeas corpus por e-mail, e é também possível utilizar a tecnologia noutros momentos do procedimento, inclusive para a verificação do estado do paciente. Segundo o art. 656 do CPP, o juiz, “se julgar necessário, e estiver preso o paciente, mandará que este lhe seja imediatamente apresentado em dia e hora que designar”. Hoje, a apresentação é uma faculdade do juiz (art. 657, III, CPP), e não um direito do paciente preso.

Na prática forense, raramente acontece tal apresentação, mesmo nos casos mais graves. Contudo, com as facilidades da videoconferência, o magistrado, mesmo o relator de demandas em curso nos tribunais superiores, sempre poderá determinar a apresentação imediata do paciente, onde quer que seja a sede da prisão. O sistema introduz assim mais garantias para o jus libertatis e mais rapidez no procedimento de sua proteção, tornando desnecessária a ida, por deslocamento espacial, do juiz ao local da detenção (art. 657, único, CPP). Em todo os casos, o juiz poderá ter o paciente diante de si, trazendo-o virtualmente à sua presença, em real-time e ao vivo.

As novas tecnologias e a presença eletrônica

Em todos esses pontos e contrapontos, estamos no campo das formas, e estas devem ser instrumentos da efetividade do processo penal, campo em que estão em jogo direitos individuais, principalmente o de liberdade, e os interesses sociais de repressão à criminalidade e de realização da Justiça. Tais direitos, aparentemente contrapostos, devem ser harmonizados pelo critério de ponderação constitucional, dentro da diretriz da razoabilidade. Assim, pensamos que a mera mudança do procedimento de apresentação do réu ao juiz, especialmente nos casos em que estejam em julgamento presos perigosos, não elimina nenhuma garantia processual, nem ofende os ideais do Estado de Direito. Basta que se adote um formato de videoconferência que permita aos sujeitos processuais o desempenho, à distância, de todos os atos e funções possíveis no comparecimento físico.

Nem se diga que o tele-interrogatório viola o art. 5º, inciso LVI, da Constituição, que veda a utilização no processo de provas obtidas por meios ilícitos. Ora, a tecnologia informática ou telemática não é um “meio ilícito”. A sua não regulamentação para os fins de ouvida de réus é contingencial. Assim que for adotada legislação a respeito, não haverá porque reprovar a prática. Ademais, o interrogatório, como momento culminante da autodefesa do réu, não pode ser lido em prejuízo do acusado, tendo em vista que se assegura a este o direito de permanecer em silêncio (art. 5º, LXIII, da CF) e se tolera o direito de mentir.

Além disso, é preciso ver que tanto o artigo 185 do CPP, quanto os dispositivos dos tratados internacionais em questão, que são apontados como obstáculos ao interrogatório on-line, não se prestam à invocação pelos críticos do procedimento que se propõe. É que tanto a lei processual penal quanto as duas convenções (hoje incorporadas ao Direito brasileiro) são anteriores ao fenômeno da virtualização. O CPP é da década de 1940, o Tratado Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é de 1966, ao passo que o Pacto de São José da Costa Rica é de 1969.

Ora, a Internet nasceu justamente no ano de 1969. Naquela época, tratava-se de uma rede informática de aplicação militar, exclusiva do governo norte-americano. As novas tecnologias da informação eram então incipientes. É este logicamente o motivo da omissão (repita-se: omissão, e não proibição) de tais diplomas normativos no tocante ao interrogatório por videoconferência. Se os meios técnicos não existiam, não era de se esperar que a legislação previsse o depoimento on-line.

Afinal, indaga-se: para que serve o comparecimento do réu diante do juiz? Para que ouça a leitura formal da acusação, para que fale se for de seu desejo, para que apresente a sua versão para os fatos que lhe são imputados, para que confesse o crime se quiser, para que delate eventuais cúmplices, para que se manifeste sobre proposta de suspensão condicional do processo, para que noticie ameaças ou danos a seus direitos processuais ou substantivos, para que permanece em silêncio se entender conveniente, para que tenha conhecimento das provas já produzidas contra sua pessoa, para que acompanhe depoimentos de vítimas e testemunhas, para que conheça o seu juiz e o representante da acusação pública, enfim para que exerça as prerrogativas de autodefesa, dentro do princípio nemo tenetur se detegere, conhecido no sistema de case law como privilege against self-incrimination.

Ora, por acaso o tele-interrogatório elimina algum desses direitos ou cerceia alguma dessas liberdades? Perde-se o direito ao silêncio? O juiz abandona sua imparcialidade? Institui-se um tribunal de exceção? O réu é proibido de falar, de calar ou de mentir? A comunicação entre as partes e o magistrado é interrompida, vedada ou limitada? Elimina-se a interação do acusado com o juiz, a acusação e os demais intervenientes do processo? Desaparece o feedback comunicacional? Não, evidentemente não. Todas as formalidades dos artigos 185 a 196 do CPP são cumpridas. Todas as indagações do artigo 188 podem ser feitas. Todos os direitos são respeitados, na substância e na essência. Onde, então, o problema?

A presença virtual do acusado, em videoconferência, é uma presença real. O juiz o ouve e o vê, e vice-versa. A inquirição é direta e a interação, recíproca. No vetor temporal, o acusado e o seu julgador estão juntos, presentes na mesma unidade de tempo. A diferença entre ambos é meramente espacial. Mas a tecnologia supera tal deslocamento, fazendo com que os efeitos e a finalidade das duas espécies de comparecimento judicial sejam plenamente equiparados. Nada se perde.

“Estar presente” a um ato é assisti-lo no tempo presente, que é o tempo atual, do momento em que se fala. Então, o réu que comparece eletronicamente a uma audiência judicial, realmente a presencia. Em suma, está presente a ela. A idéia subjacente ao verbo “presenciar” tem conotação temporal, e não espacial. Logo, é inteiramente possível estar presente a uma solenidade, sem ir ao local onde ela se realiza. Basta que se assista ao ato no momento atual, com possibilidade de interação. São as tecnologias interferindo em velhos conceitos, para, enfim, afirmar-se que quem aparece a juiz (mesmo em imagem), está comparecendo diante dele.

Nulidades: há?

Sabe-se que não há nulidade sem prejuízo. É a regra do art. 563 do CPP: “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Por sua vez, o art. 564, inciso III, alínea ‘e’, determina a nulidade do processo em caso de falta de interrogatório. Vale dizer: o que anula a ação penal é a falta do interrogatório, e não a sua realização por meios tecnológicos. Pergunta-se objetivamente aos contrários: há algum real prejuízo para o réu com o tele-interrogatório? Não. Logo, não há qualquer justificativa jurídica, nos planos da razoabilidade e do garantismo, para tolher ou proibir tal forma de interrogatório, em que o comparecimento continua a ocorrer, sendo o réu conduzido à presença virtual do juiz da causa, sem prejuízo do contraditório efetivo.

Ainda no plano das nulidades, vale mencionar que o art. 564, inciso IV, do CPP, dispõe que haverá nulidade “por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”. O comparecimento físico do réu diante do juiz para ser interrogado não é uma formalidade ad substantiam. Ademais, a realização do tele-interrogatório não acarreta omissão de formalidade alguma, mas substituição de um procedimento por outro. Mesmo que a forma aqui fosse elemento essencial do ato, a nulidade seria relativa, pois segundo o art. 572, inciso II, do mesmo código, as nulidades ali referidas consideram-se sanadas “se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim”. Aqui se lança uma pá de cal sobre o assunto. Se a finalidade do ato é atingida, não há nulidade alguma a declarar. A regra aplica-se ainda às nulidades relativas previstas no art. 564, III, ‘e’, segunda parte, e ‘g’, do CPP.

Esta previsão é compatível com o sistema dos Juizados Especiais Criminais, porquanto o art. 65 da Lei n. 9.099/95 declara que “Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais foram realizados, atendidos os critérios indicados no art. 62 desta Lei”. Ao seu tempo, este dispositivo preconiza um procedimento orientado pelos princípios da informalidade, da celeridade e da economia processual, todos compatíveis com o sistema de videoconferência.

Veja-se ainda que, pelo art. 65, parágrafo2º, da Lei n. 9.099/95, “A prática de atos processuais em outras comarcas poderá ser solicitada por qualquer meio hábil de comunicação”, inclusive mídias eletrônicas, sendo que, na forma do parágrafo3º, do mesmo artigo, os atos realizados em audiência de instrução e julgamento – quando ocorre, nos Juizados Criminais, o interrogatório do réu (art. 81) -, “poderão ser gravados em fita magnética ou equivalente”. Por “equivalente”, pode-se muito bem entender um sistema de videoconferência, com gravação do ato em CD-Rom ou outro suporte.

Uma mais ampla defesa

É preciso notar também que o tele-interrogatório assegura ao réu, com muito maior amplitude, o acesso ao seu juiz natural. Pelo art. 5º, LIII, da CF “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. De fato, adotando-se o sistema às inteiras, não serão mais necessárias cartas precatórias ou rogatórias para interrogatório de denunciados ou ouvida de testemunhas. O próprio juiz da causa ouvirá diretamente o acusado, onde quer que ele esteja, encarcerado ou solto. Vale dizer: todos os atos processuais serão praticados pelo juiz natural do réu, o único competente para a causa.

A propósito, o art. 220 do CPP declara que “As pessoas impossibilitadas, por enfermidade ou por velhice, de comparecer para depor, serão inquiridas onde estiverem”. Fortalecendo o princípio do juiz natural, com a videoconferência, o próprio juiz da causa poderá ouvir tais pessoas “onde estiverem”.

As cartas de ordem podem se tornar desnecessárias ou menos comuns. O juiz natural nas ações penais originárias – as que tramitam perante os tribunais na forma da Lei n. 8.038/90 – poderá interrogar ele mesmo o réu e ouvir as testemunhas, sem necessidade de delegação a magistrados de instâncias inferiores. Todo o processo poderá ser conduzido pelo juiz da causa, diretamente, sem deslocamentos espaciais, por meio da teleconferência.

O novo método evita, outrossim, os julgamentos à revelia e dos fenômenos processuais a ela correlatos, nos casos de impossibilidade física de comparecimento do réu, seja por doença ou por incapacidade financeira. O interrogatório on-line reduzirá as hipóteses de aplicação do art. 366 do CPP: “Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”. Ora, se o réu comparecer virtualmente ao processo não haverá porque suspender o andamento da ação penal e o curso do prazo prescricional. Nem haverá motivo para a decretação de prisão preventiva do acusado, que “não comparecer”, o que é sem dúvida uma grande vantagem processual e material para o réu.

Quanto à impossibilidade econômica do réu, é certo que num país de dimensões continentais como o Brasil, muitas vezes ocorrem casos de acusados a quem faltam condições financeiras para deslocar-se até a sede do juízo processante, para defender-se de imputações, verossímeis ou não. Aí também a tecnologia de videoconferência pode-se prestar a reduzir os riscos de uma condenação injusta, ou limitar as situações de julgamento a revelia e certas formas de marginalização processual. Observe-se que nem sempre o réu deixa de comparecer porque quer. Há momentos em que o comparecimento pessoal é inviável, difícil ou muito oneroso. Sem dúvida, o tele-interrogatório amplia o direito constitucional de acesso à Justiça, edificado com base no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição (“A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”). Alarga-se também o direito de defesa, inserido no art. 5º, LV, da Carta de 1988, pois surge o direito de defesa à distância, especialmente para o réu que se livre solto.

Não é apenas isto. Um réu preso num Estado do norte do País dificilmente poderá ser conduzido, por requisição, a um Estado do Sul ou do Sudeste do Brasil, para ser ouvido em outros processos que por lá corram contra si. Nesta situação, o tele-interrogatório cresce em importância, acelerando o andamento das ações penais, inclusive em benefício do próprio acusaso, em favor de quem milita a presunção de não-culpabilidade até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (art. 5º, LVII, CF). Estando o réu preso ou solto em outro país, o tele-interrogatório pode ser a única possibilidade efetiva conferida pela lei ao acusado para avistar-se com o juiz processante e com os demais sujeitos processuais.

Mesmo nos casos de réu preso na mesma comarca do processo, o tele-interrogatório contribui para o cumprimento das diretrizes do direito internacional humanitário que exigem o acesso imediato ao juiz da causa e o seu julgamento sem demora. Hoje, sem o interrogatório on-line tal apresentação, raramente acontece antes do recebimento da denúncia. As novas tecnologias da informação, por facilitarem a comunicação e por tornarem menos dispendiosos vários procedimentos processuais, viabilizam o acesso direto do acusado ao seu juiz em uma infinidade de situações, com rapidez e eficácia.

Efeitos sobre o princípio da publicidade geral

Assinalamos ainda uma outra vantagem do sistema de tele-interrogatório: a maior amplitude e efetividade do princípio da publicidade, previsto no art. 5º, LX, e no art. 93, IX, da CF. Quando os atos processuais (interrogatório e audiências) são realizados por videoconferência aberta, um número virtualmente infinito de pessoas pode tomar conhecimento do processo penal, inclusive pela Internet, assegurando-se deste modo o princípio da publicidade geral e o controle social sobre os atos do Poder Judiciário.

A potencialização do princípio da publicidade é considerável, porquanto pessoas as mais diversas, mesmo não estando no distrito da culpa, podem assistir aos atos processuais. Esta preocupação é cada vez maior na sociedade. Não é à-toa que o Supremo Tribunal Federal pôs no ar em setembro de 2002 a TV Justiça, destinada a se juntar às TV Câmara e TV Senado na tarefa de levar aos cidadãos informações precisas e atualizadas sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, inclusive mediante a transmissão de sessões de julgamento ao vivo, via satélite.

Outras vantagens processuais para o réu

Assim, de modo algum as novas tecnologias, aqui enfocando o sistema de interrogatório on-line, podem ser tidas, em sua essência, como prejudiciais aos interesses do acusado. Ao contrário, ao propiciar maior celeridade ao processo penal e acesso efetivo e universal ao juiz da causa, o procedimento reduz as agruras a que o acusado é submetido durante a quase sempre interminável tramitação das ações penais.

Outra vantagem para o réu é assegurar de certo modo, também no processo penal, o princípio da identidade física do juiz. Ora, as audiências e os interrogatórios on-line podem ser gravados em meio digital, óptico ou equivalente. Esta facilidade permite ao julgador da causa, o mesmo que realizar o ato ou o que o suceder, aproximar-se fundamentalmente da prova então produzida, ao ver ou rever as gravações audiovisuais, permitindo inclusive a observação repetidas vezes dos mecanismos não-verbais de linguagem que comumente ocorrem numa audiência judicial. Os gestos, os movimentos corporais, a postura, as fácies do réu, vítimas e testemunhas, tudo enfim, pode ser captado pelas câmeras de vídeo e pelos aparatos microfônicos, e submetido à análise sistemática e apurada do julgador.

Menos dispêndios, mais segurança

Há ainda outros benefícios na implementação de meios de videoconferência processual. Ao lado da economia de recursos com o transporte de presos (o que implica gastos com veículos, combustível, armamentos, coletes, escoltas, diárias, alimentação) e a mobilização de policiais militares e agentes penitenciários, o tele-interrogatório permite maior segurança na custódia de réus, eliminando a necessidade de transferências mediante custosas escoltas policiais e o risco de fugas ou ações espetaculares de quadrilhas especializadas no resgate de presos. É cada vez mais comum, nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras, a atuação de grupos armados, que atacam guarnições policiais para libertar presos sob custódia ou para eliminá-los.

As transferências dos presídios e penitenciárias para os fóruns e vice-versa também importam riscos para os presos e para a coletividade, tendo em vista que em algumas situações o aparato policial envolvido concentra em suas mãos grande poder de fogo e reação a investidas das referidas organizações. De igual modo, o tele-interrogatório permite que os servidores dos órgãos de repressão criminal, especialmente da Polícia Militar, da Polícia Federal e dos departamentos penitenciários, sejam empregados em suas atividades mais importantes, de investigação, de policiamento ostensivo e de execução penal.

Além disso, no deslocamento de presos, não é raro que algumas audiências sejam adiadas por ausência de advogados, testemunhas ou do representante do Ministério Público, ou por alguma contingência do juízo. Então, terá havido verdadeiro desperdício de recursos públicos e real perda de tempo. A tele-audiência reduz substancialmente tais ônus e incômodos.

Some-se a isto a já referida eliminação da burocracia da expedição de cartas precatórias para a tomada de interrogatórios em outras comarcas (e de rogatórias a outros países), instrumentos de tramitação demorada e que não se coadunam com o moderno processo penal e com as necessidades de rápida resposta à criminalidade. É importante frisar que este argumento não segue a tendência law and order. Um processo penal mais célere é um direito reconhecido aos réus no direito internacional humanitário, em quadro inteiramente compatível com os ideais democráticos.

O tele-interrogatório caso a caso

Não vemos razão nem mesmo para excepcionar, como pretende o projeto Fleury, o interrogatório do réu na sessão de julgamento perante o tribunal do júri, para impedir a realização do ato por videoconferência nestas hipóteses.

Nos crimes dolosos contra a vida inafiançáveis, é indispensável a presença do réu em plenário, sob pena de nulidade, à luz do art. 461, parágrafo1º, c/c o art. 564, III, ‘d’, do CPP. Nos crimes afiançáveis de competência do tribunal popular, o julgamento pode ocorrer à revelia, se o não-comparecimento for injustificado. Mas o anteprojeto que modifica o procedimento do júri no CPP prevê a dispensa do comparecimento do réu ao seu próprio julgamento pelo tribunal popular, tendo em vista que este dispositivo processual tem contribuído para a impunidade e para a morosidade processual. Sendo assim, com maior razão é recomendável adotar o tele-interrogatório também no tribunal do júri, o que facilitará o exercício da ampla defesa pelo acusado e possibilitará aos jurados, os juízes naturais da causa, conhecer a personalidade e o comportamento do acusado, onde ele estiver.

Se mesmo em situações de real risco de vida (como a realização de cirurgias nas aplicações de telemedicina), já tem sido dispensada a presença física do operador, por que seriam necessárias maiores cautelas em relação à mera tomada de depoimentos de acusados, desde que preservados os seus direitos ao silêncio e à não auto-incriminação e o sistema de valoração probatória em que a confissão do réu tem valor relativo? O sistema de videoconferência permite uma conversação normal, em tempo real, como se as pessoas estivessem no mesmo espaço físico. Por isso, inevitavelmente será adotado.
O Tribunal de Justiça da Paraíba já pôs em funcionamento nas Varas das Execuções Penais de João Pessoa um sistema de teledepoimentos. O link entre as varas e a Penitenciária do Roger permite aos juízes das execuções realizar o interrogatório de condenados, por meio de videoconferência.

Na falta de legislação brasileira, o procedimento foi regulamentado pela Portaria n. 2.210/2002 da presidência do Tribunal, prevendo-se o respeito a todos os direitos assegurados aos acusados e sentenciados pela Constituição Federal. Para este fim, o interrogatório à distância somente se torna válido com a presença física de um oficial de Justiça e de um defensor público ao lado do réu ou condenado, na sala de videoconferência do presídio. O sistema implementado na Paraíba é de alta tecnologia, permitindo visões panorâmica e detalhada dos ambientes, e conta com um sensor de áudio, o que leva às câmeras de vídeo a localizar e focalizar automaticamente a fonte emissora do ruído.

Na Justiça Federal, o Tribunal Regional da 1ª Região com sede em Brasília, já faz uso eficiente das novas tecnologias aplicadas ao Direito. Uma das soluções de informática jurídica encontradas permite o acompanhamento on-line de todos os processos em tramitação na corte. É o sistema TRF-push, também empregado no STF e no STJ, onde desde setembro de 2002 já é publicada a Revista Eletrônica de Jurisprudência. No website do Tribunal Regional pode-se também ter acesso ao peticionamento eletrônico (e-proc) ou “Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal da 1ª Região”, regulamentado pela Portaria n. 258, de 16 de maio de 2002, bem como ao serviço de expedição de Documento de Arrecadação de Receitas Federais eletrônico ou e-DARF.

Outra inovação em estudo é a tele-sustentação, que permitirá aos advogados dos vários Estados da área de abrangência do TRF da 1ª Região (Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí e Rondônia, Roraima e Tocantins) realizar sustentações orais por videoconferência, sem deslocamento espacial, mas com presença real perante o tribunal. A novidade é extremamente relevante, pois um advogado em Macapá não precisará sair às pressas para Brasília (trajeto só realizado de avião ou por navio, com passagem por Belém), a fim de fazer uma sustentação recursal na capital federal.

Segundo a Revista Consultor Jurídico, de 3 de julho de 2002, em Cingapura, país do sudeste asiático, os tribunais já realizam desde meados de 2002 audiências de ouvida de testemunhas por videoconferência, em processos civis. Os advogados locais também podem utilizar videoconferência para apresentar alegações orais perante as cortes. O sistema, apelidado de Justice Online, funciona com base em conexões telemáticas de banda larga na espécie Symmetric Digital Subscriber Line (SDSL), de 512Kbps (quilobits por segundo). Em breve o mecanismo tecnológico será utilizado em processos criminais. Estações do Justice Online serão instaladas em penitenciárias, para permitir tele-interrogatórios pela Promotoria-Geral e pelo Judiciário.

O que mais dizem os contrários

Alguns procedimentos da justiça eletrônica tem opositores de relevo. Desde a primeira hora, o eminente advogado Luiz Flávio Borges D’Urso lançou críticas veementes ao tele-interrogatório, que foi realizado pela primeira vez no Brasil pelo então juiz Luiz Flávio Gomes, em São Paulo, em 1996. Sua oposição funda-se na essência do ato de interrogatório, que deve ser pessoal e oral, segundo a doutrina, por ser meio de prova e momento culminante da autodefesa do réu.

Para D’Urso, o tele-interrogatório seria uma forma “perversa e desumana, afastando o acusado da única oportunidade que ele tem de falar ao seu julgador, trazendo frieza e impessoalidade a um interrogatório que poderia, caso aceito, ser realizado por telégrafo, nada diferenciando-se deste experimento. A ausência da voz, do corpo e do ‘olho no olho’ redunda em prejuízo irreparável para a defesa e para a própria Justiça, que terá de confiar no diretor do presídio ou n’outro funcionário, que fará a ponte tecnológica com o julgador”. Tais reprimendas não mais procedem, tendo em vista que se dirigiram ao interrogatório a distância por texto digitado. Como visto, atualmente já se empregam métodos audiovisuais modernos.

Referindo-se ao entendimento de René Ariel Dotti e às lições do saudoso Hélio Tornaghi, o professor D’Urso assinala ainda que “Tudo isso pode ser um enorme sucesso tecnológico, mas é um flagrante desastre humanitário! (…) uma cerimônia degradante’, vislumbrando-se a verdadeira justiça virtual, distante, ficta, fria, gélida, até”. Para os críticos desta modalidade de inquirição, o magistrado perderia a possibilidade de contato psicológico com o acusado, que permite o conhecimento da personalidade do réu. Não poderia também considerar as reações corporais e faciais do acusado para verificar a verossimilhança das declarações colhidas e aperceber-se da sinceridade das respostas, do valor de eventual confissão e do estado de espírito do acusado. Como vimos, estas observações são superadas pelo próprio avanço das tecnologias da informação.

Ainda para D’Urso, o local de realização do ato, um presídio, penitenciária ou cadeia pública, viciaria a manifestação de vontade do réu e não atenderia ao requisito da publicidade, pois impediria o acesso de terceiros. A falta do contato pessoal dificultaria a formação do convencimento do julgador e prejudicaria o réu. Estas críticas também não procedem. Na verdade, o tele-interrogatório amplia sobremaneira a publicidade do ato. O depoimento é tomado em sala especial do local de detenção, com a presença de um defensor (público, dativo ou constituído) e de um oficial de Justiça. O acesso a este recinto deve ser livre para qualquer pessoa, inclusive da comunidade externa ao presídio.

Tornaghi, citado por D’Urso no seu libelo contra o tele-interrogatório, assevera: “E isso se explica muito facilmente: o interrogatório é a grande oportunidade que tem o juiz para, no contato direto com o acusado, formar juízo a respeito de sua personalidade, da sinceridade, de suas desculpas ou de sua confissão, do estado d’alma em que se encontra, da malícia ou negligência com que agiu, da sua frieza e perversidade ou de sua elevação e nobreza; é o ensejo para estudar-lhe as reações, para ver, numa primeira observação, se ele entende o caráter criminoso do fato e para verificar tudo o mais que lhe está ligado ao psiquismo e à formação moral (…). A palavra do acusado, circundado de sua atitude, de seus gestos, de seu tom de voz, de sua espontaneidade, pode dar ao juiz um elemento de convicção insubstituível por uma declaração escrita, morta, gélida, despida dos elementos de valor psicológico que acompanham a declaração falada. Já os práticos da Idade Média exigiam o interrogatório oral”. A insuperável lição do mestre Tornaghi não merece reparos. Todavia, é de ser ver que nada, coisa alguma desses detalhes e momentos se perde com a videoconferência. O interrogatório continua a ser oral. O contato visual permanece e é ampliado pelas tecnologias de captação, amplificação e aproximação de som e imagem.

Concluindo seu pensamento sobre a suposta natureza kafkiana do interrogatório eletrônico, o professor D’Urso diz que tal procedimento viola os princípios da ampla defesa e do devido processo legal, por impedir a apresentação do acusado pessoalmente ao juiz, como se depreende das garantias previstas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Estas derradadeiras objeções também já foram enfrentadas noutra passagem deste ensaio.

Conclusão

Consideramos razoáveis algumas das censuras apresentadas contra o tele-interrogatório por D’Urso e por outros ilustres juristas. No entanto, não podemos deixar de considerar que existem inúmeras formas de minorar ou mesmo eliminar completamente os problemas do interrogatório à distância.

Em primeiro lugar, o acompanhamento por advogado ou defensor público e por um oficial de justiça, tanto na companhia física do acusado quanto ao lado do juiz, é um fator que minora sobremaneira muitas das objeções listadas. Depois, é preciso contar com o papel de custos legis do Ministério Público, que não é instituição de acusação, mas sim de promoção da justiça, cabendo-lhe velar pelos direitos individuais indisponíveis do réu, relativos ao processo penal. Veja-se ainda que os interrogatórios podem realizar-se em salas especiais das penitenciárias, com acesso aberto aos interessados, como em qualquer audiência judicial. Por fim, as razões de segurança, economia de recursos e rapidez dos procedimentos são importantes e devem ser consideradas.

É preciso perceber também que os mecanismos tecnológicos permitem grande grau de detalhe das transmissões. Pequenas reações corporais e faciais e tênues variações da voz podem ser captadas e transmitidas pelas mídias mais modernas. Não há assim razão para temer a impossibilidade de feedback entre o juiz e o interrogado.

Demais disso, as experiências do direito comparado precisam ser examinadas. Na Inglaterra, há possibilidade de ouvida de testemunhas à distância, mesmo quando estas encontram-se noutros países. Esta providência elimina a utilização das burocráticas cartas rogatórias, contribuindo para uma justiça mais rápida, preocupação sempre presente nas lições doutrinárias e até nos acórdãos dos tribunais.

A propósito, reconhecendo a necessidade de informatização do processo, já em 1995, no RHC n. 4788/SP, de que foi relator o Ministro Jesus Costa Lima (DJ de 25/09/95), a 5ª Turma do STJ decidiu que: “Processo Penal. Excesso de prazo na instrução.

Peculiaridades. I. Impetração alegando excesso de prazo para concluir a instrução. O tema implica em se considerar a época em que foi elaborado o Código de Processo Penal, as mudanças ocorridas no País e, especialmente, em se cuidando de processo incluindo vários réus, as dificuldades por eles opostas para serem citados ou a demora na apresentação ao juízo, a fim de serem interrogados, o que não depende do Poder Judiciário. Reconheço que, se poderia caminhar com o emprego da informática para agilizar o andamento processual, utilizando-se a teleconferência para se interrogar réus e testemunhas residentes em outras comarcas, com o que se evitaria, no caso dos réus, as comuns fugas.

No caso, por evidente, se não está demonstrado que a coação decorre de ato provocado pelo Ministério Público e nem pelo juízo da causa, a demora encontra-se justificada. Em oportunidade anterior salientei que se trata de réu de acentuada periculosidade, tendo agido com mais doze ‘colegas’, interceptando um carro forte com rajadas de metralhadoras e disparos de revólveres e fuzis subtraindo apreciável quantidade em dinheiro. II. Recurso conhecido, mas improvido pelos próprios fundamentos do julgado”.

Tudo o que se disse em relação ao interrogatório judicial, aplica-se, por simetria e segundo a tradição do direito brasileiro (art. 6º, inciso V, do CPP), ao interrogatório policial. Este também poderá ser realizado à distância.

Concordamos, todavia, em que não há como realizar com tranqüilidade interrogatórios à distância sem que exista lei regulamentadora da matéria. O princípio geral da legalidade, do art. 5º, inciso II, da CF, diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Logo, o acusado, preso ou solto, não pode ser compelido, contra sua vontade, a prestar interrogatório na polícia ou em juízo, por meio de videoconferência. Se aceita fazê-lo, não pode se beneficiar posteriormente, argüindo nulidade (art. 565, c/c o art. 572, III, do CPP). Mas se o ato processual lhe é imposto pelo juiz, sem consulta prévia, não há como deixar de reconhecer, na atual conjuntura de pré-legalidade, a nulidade relativa da ação penal desde a prática deste ato eletrônico.

Esta nulidade só pode ser declarada pelo magistrado a requerimento da defesa ou do Ministério Público, este no papel de curador da ordem jurídica. Mas a nulidade deverá ser reconhecida por tribunal, em sede de habeas corpus, pela prática de ilegalidade processual pelo magistrado processante, em consonância com o art. 5º, LXVIII, da Constituição. O interrogatório então deverá ser repetido, com comparecimento pessoal do acusado em juízo, ou mediante carta precatória, rogatória ou de ordem.

Se houver consenso prévio, o ato judicial eletrônico pode se realizado pelo juiz. Não havendo prejuízo ao réu ou qualquer outra nulidade circunstancial, o tele-interrogatório será válido. Ainda que não haja concordância prévia do réu em ser assim interrogado, o ato será legítimo, se não houver irresignação posterior pela defesa, que logre demonstrar a existência de grief ou gravame, ou o não atendimento da finalidade do ato.

Assim, embora reconheçamos a necessidade de certa cautela na introdução do tele-interrogatório no Brasil, estamos seguros de que se pode de logo passar à realização de atos e audiências processuais por via eletrônica. Com efeito, reunidos os dogmas constitucionais antes referidos, os princípios gerais do processo penal e os do procedimento dos Juizados Especiais (especialmente os arts. 8º, parágrafo2º e 14, parágrafo3º da Lei n. 10.259/2001), podemos interpretá-los à luz do art. 3º do CPP, para admitir a realização desde já de audiências eletrônicas em nosso País, seja para interrogatório de réus (presos e soltos), ou para a ouvida de vítimas e testemunhas.

É que a lei processual penal não enfrenta as mesmas limitações da lei penal, em relação à qual as idéias de legalidade e anterioridade são rígidas e inflexíveis. Nas leis processuais penais, ao revés, admite-se a interpretação extensiva e aplicação analógica das normas e o suplemento dos princípios gerais de direito. Com isto se conclui cum granum salis que as audiências por videoconferência podem ser realizadas no Brasil, tanto para os interrogatórios, quanto para a ouvida de testemunhas e assentadas de julgamento, sem prejuízo da possibilidade de sustentação oral, à distância, por advogados e membros do Ministério Público.

Como se vê, a partir de uma simples palavra, “presença”, e do singelo verbo “comparecer”, os juristas conseguem construir todo um edifício de polêmicas e querelas. A interconexão das pessoas, facilitada pela convergência telemática, não encontra igual na história da humanidade. O ciberespaço é um conceito inteiramente novo que traduz uma realidade inimaginável há pouco mais de cinqüenta anos. É preciso rever conceitos e assimilar as novas situações propiciadas pelas tecnologias da informação. Interagir, mesmo à distância, é a regra na sociedade cibernética.

Já se assistem aulas, mesmo de cursos superiores, por meio da Internet. Já são feitas cirurgias à distância, com auxílio de robôs e de “braços mecânicos”, sujeitos a controle remoto. Os olhos humanos passaram a ver mais. “Estar presente” hoje não significa apenas estar no mesmo local físico. Há algo mais num panorama em que as linhas do horizonte a cada dia mais se ampliam. A presença virtual é também um “estar aqui” real.

O ciberespaço permeia todos os ambientes do planeta onde exista um computador, um telefone celular, um pager ou um equipamento eletrônico de comunicação. Afinal, como ensinou o inigualável Albert Einstein, os conceitos de tempo e espaço são relativos. No mundo cibernético, “estar aqui” é também “estar aí” e “estar lá”. Em pensamento e ação.

Revista Consultor Jurídico

Vladimir Aras é promotor de Justiça na Bahia, professor de processo penal na UEFS, professor de IDPP na Faculdade de Tecnologia e Ciências, pós-graduado em Direito pela UFPE e mestrando em Direito Público.

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