Tarcísio Maciel Chaves de Mendonça
Professor de Direito Penal da PUC Minas Barreiro, Faculdade Estácio de Sá e Curso Praetorium
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
O presente artigo tem como objetivo perquirir sobre a possibilidade jurídica da remição pelo estudo.
Remição é o direito do condenado. Três dias de trabalho permitem considerar um dia a mais de pena privativa de liberdade como cumprido. Remir, segundo Cezar Roberto Bitencourt, é “abater descontar, pelo trabalho realizado dentro do sistema prisional, parte do tempo de pena a cumprir”. [1] Afirma, ainda, o mesmo autor que a remição tem origem no direito penal militar da guerra civil espanhola. [2]
Em nosso ordenamento jurídico, a remição está prevista no artigo 126 da lei de execução penal. Assim dispõe mencionado dispositivo legal: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado e semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena”. A questão toda a ser discutida é o significado que se dá ao vocábulo trabalho. A atividade de aprendizagem seria compreendida por seu conteúdo semântico?
Jason Albergaria era enfático em afirmar ser impossível a remição pelo estudo. Assevera que esta possibilidade não é contemplada por nossa lei de execução penal [3]. No mesmo sentido, caminha Francisco de Assis Toledo: admite a conveniência de remir a pena pelo estudo, mas argumenta ser necessária uma lei específica que contemple essa hipótese [4]. Favoravelmente a remição pelo estudo cita-se Célio César Paduani [5].
A controvérsia chegou ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. É possível encontrar julgados que caminham nos dois sentidos. No recurso de agravo em execução n. 347.641-3, o E. TJMG afirma ser possível a remição pelo estudo, porque espécie do gênero trabalho. Ao contrário, no agravo em execução n. 351.161-5, o mesmo tribunal assevera ser impossível a remição pelo estudo por não ter sido essa hipótese contemplada na lei de execução penal. Trecho de votos, abaixo transcritos, corroboram o aqui asseverado:
“A meu sentir a melhor interpretação do termo trabalho é, pois, não a mera atividade profissional regular, remunerada ou assalariada, mas todo e qualquer esforço humano dirigido a uma finalidade e, neste sentido não há dúvidas de que o estudo é espécie do gênero trabalho pela própria definição do dicionário”[6]
“Contudo, não é demais lembrar que a Lei de Execuções Penais não previu a hipótese de remição de pena por dias de estudo, mas tão-somente o fez em relação a dias de trabalho, consoante o disposto no art. 126, parágrafo 1º, da Lei 7.210/84”[7]
Percebe-se que o argumento contrário à remição pelo estudo, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, centra-se na inexistência de previsão legal. Os adeptos dessa corrente negam que o estudo esteja compreendido no sentido semântico de trabalho. O dicionário Aurélio registra que o vocábulo trabalho significa: “aplicação das forças ou faculdades humanas para atingir determinado fim”[8]. A discussão parece centrar-se na hermenêutica.
É fundamental afirmar que a interpretação que se baseia, exclusivamente, na literalidade do texto da lei mostra-se temerária. Devemos, o quanto antes, nos afastar da escola da exegese, dos glosadores da Idade Média, e perceber que o texto da lei não carrega um sentido pronto e acabado [9]. O vocábulo somente ganha significação na medida que é interpretado. Não é mais possível confundir interpretação meramente literal com respeito ao princípio da legalidade.
Pensemos na figura do tradutor. Por mais fiel que tente ser ao texto original, nunca vai conseguir traduzi-lo sem que lance algo próprio de sua concepção acerca do traduzido. Gademer, sobre o assunto, assim leciona:
“O Tradutor tem, muitas vezes, dolorosa consciência da distância que o separa necessariamente do original. Também seu trato com o texto tem algo dos esforços para alcançar o acordo na conversação. Com a diferença de que aqui a situação do acordo é particularmente penosa, porque se reconhece que, em última análise, a distância entre a opinião do outro e a própria não pode ser superada. (…) O exemplo do tradutor que precisa superar o abismo entre as línguas mostra, com particular clareza, a relação recíproca que se desenrola entre o intérprete e o texto, que corresponde à reciprocidade do acordo na conversação”[10]
Corroborando as lições de Gademer, basta lembrar da expressão ato obsceno, prevista no artigo 233 do Código Penal. Seu sentido varia de acordo com a sociedade na qual o indivíduo que o interpreta está imerso. Nem mesmo os elementos descritivos do tipo penal são tão claros como se proclamava. O que é mulher? Recentemente a imprensa publicou o caso da americana Jan Johnson. Hoje se encontra na faixa dos quarenta anos. Apesar de ter todas as características físicas de mulher é geneticamente homem. Jan não teria ativado um único gene (SRY) responsável por dar início ao desenvolvimento da genitália e de todas as características essenciais masculinas [11]. Jan pode ser vítima de estupro? Esses são problemas que não podiam ser pensados pelo legislador de 1940. [12]
Se a lei não carrega consigo sentidos prontos e acabados, então não se poderia fundar na mera interpretação literal a negativa da remição pelo estudo. Seria confundir vontade da lei com vontade do legislador.
A argumentação, posta no parágrafo anterior, não quer levar a conclusão de que o intérprete pode garimpar, no vocábulo, o sentido que bem desejar. A construção do significado passa pela visão sistêmica do ordenamento jurídico, tendo, evidentemente, como norte, a Constituição da República.
Ora, a lei de execução penal é datada de 1984. Já a Constituição da República é de 1988. A nova ordem constitucional deve recepcionar, se for o caso, e instruir a interpretação do direito infraconstitucional.
Um dos fundamentos da República, consagrados pela Constituição de 1988, é a diminuição da desigualdade social, erradicando a marginalização [13]. Aqueles que são lançados no cárcere, qualquer consulta a um censo penitenciário não nos deixa mentir, são indivíduos menos afortunados. Antes de serem alijados do meio social, em sua maioria, já estavam à margem do mercado de trabalho. Evidente que sua inserção na sociedade ocorrerá de forma bem mais eficiente se o condenado possuir uma melhor qualificação que se dará, por certo, pelo estudo. Assim se presta homenagem à própria finalidade da execução penal, qual seja, a ressocialização [14].
Então, é a própria Constituição da República que nos orienta no sentido de compreender o estudo como uma espécie do gênero trabalho, descrito no artigo 126 da lei de execução penal.
O trabalho, como já se sabe, é uma atividade destinada a uma finalidade. Todavia, impossível argumentar que o estudo é um atuar que se encera em si mesmo e, portanto, não poderia ser considerado trabalho. Somente uma sociedade pouco evoluída não pode visualizar uma finalidade pública na formação do indivíduo. Antônio Candido, falando sobre a importância da obra de Florestan Fernandes, um importante sociólogo brasileiro, relata:
“Falando de Florestan Fernandes, é preciso assinalar que, além da obra de sociólogo e da ação de intelectual empenhado nos problemas do tempo, além da atividade de professor, de formador de equipe, de criador de rumos na teoria e na investigação, ele realizou outra obra não menos admirável: a construção de si mesmo.” [15]
Ademais, negar a remição pelo estudo parece remontar à Grécia antiga, onde o estudo era privilégio dos cidadãos e o trabalho manual reservado aos escravos.
Notas:
1. BITENCOURT. Cezar Roberto. P.435
2. “O instituto da remição de parte da pena pelo trabalho teve origem no Direito Penal Militar da guerra civil espanhola, na década de trinta, permanecendo no artigo 100 do Código Penal espanhol, apesar das contundentes críticas que o trabalho prisional vem recebendo atualmente no direito europeu”. BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. Vol I. São Paulo: Saraiva. 2000. p.436
3. “…não se consideram como dias trabalhados os de freqüência a escola, exceto se o interno lecionar em cursos como o mobral e o supletivo, e, nesse caso, desempenhar um trabalho como professor. O trabalho como professor difere da freqüência às aulas como aluno.” (ALBERGARIA, Jason. Das penas e da execução penal, Editora Del Rey, 2a edição, 1995 pp. 120/121).
4. in mesa Redonda – A reforma da Lei de Execução Penal – Brasília – Agosto de 1998 – Anais – FAP/DF, página 291/299
5. “Não vejo como se possa desprezar o tempo de estudo do apenado que, como tal, adentrando o conceito de trabalho escolar, redundará, efetivamente, como fator que deve ser computado para efeito de aludida benesse.” (Paduani. Célio César. Da Remição na Lei de Execução Penal. Belo Horizonte: Del Rey. 2002 p.54)
6. Trecho de Voto do Desembargador Relator Erony da Silva do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, proferido no agravo em execução n. 347.641/3.
7. Trecho de Voto do Desembargador Tibagy Salles do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais proferido no agravo em execução n. 351-161-5/000(1)
8. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª Edição revista e aumentada Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986. p. 1695.
9. “Crédulo nas inúmeras virtude daquele corpo sistemático de normas, os componentes da Escola da Exegese propugnam uma atuação restrita do poder judiciário, mediante o apego excessivo às palavras da lei. (…) Por intermédio da estrutura gramatical e pelo conteúdo dos termos técnicos, encontrar-se-ia a vontade do legislador reconhecida como a máxima expressão da vontade geral que encarna o poder.” (Camargo, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 3ª Edição Revisada e Atualizada. Rio de Janeiro: Renovar. 2003 p.66)
10. Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5ª Ed. Revista. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes. 1997. P.500/501
11. “O geneticista Peter Goodfellow conhece a fundo o cromossomo Y. Foi ele quem descobriu que um único gene é responsável pela formação da genitália masculina. Ou seja: para fazer um ser humano, são necessários cerca de 30 mil genes. Mas para fazer um homem, basta um único gene, chamado SRY. O gene SRY é como uma chave que liga e desliga. Até seis meses de gestação, o embrião não tem sexo definido. Depois de seis semanas, se o gene SRY for ativado, começa a produção dos órgãos sexuais masculinos. O que aconteceu com Jan Johnson é que o gene SRY dela jamais foi ligado. Com isso, ela não desenvolveu os testículos, órgãos responsáveis pela produção da testosterona, o hormônio que dá ao corpo as características masculinas essenciais” (Artigo intitulado “Homem e Mulher” de autor desconhecido publicado, no dia 18/07/2004 no site WWW. Fantástico.globo.com)
12. Thiago Penido Martins, acadêmico de direito, afirma, em seu artigo, intitulado Filhos da biotecnologia típica, ilícita e culpável?, que os avanços da biotecnologia e da procriação humana assistida levam a necessidade da doutrina refletir sobre o conceitos até então tidos como certos e inquestionáveis. Assim dispõe mencionado autor: “As situações descritas nos demonstram que os avanços da biotecnologia e, principalmente, as novas técnicas de procriação humana assistida trouxeram reflexos para a seara penal, exigindo de nossos doutrinadores e legisladores respostas urgentes a tais problemáticas. Descarte, torna-se indispensável a definição da maternidade nos casos de gestação por outrem pois, se na época da promulgação de nosso Código Penal a presunção mater semper certa est guarnecia protegida de questionamentos, atualmente vincular a maternidade somente ao parto é algo incompatível com nossa realidade” (Martins, Thiago Penido. Filhos da biotecnologia típica, ilícita e culpável?IN Boletim do Instituto de Ciências Penais. Ano III – n. 52. Novembro de 2004).
13. “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.”
14. No mesmo sentido, agravo em execução n. 347.641/3 de relatoria do Desembargador Erony da Silva do E. Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
15. Candido, Antônio. Florestan Fernandes. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo. 2001. P.65