Dano moral a consumidor não pode ser tratado como mero aborrecimento

Autor: Miguel Barreto (*)

 

Os jurisdicionados vêm presenciando, estupefatos, a mudança de entendimentos em relação à concessão de indenizações por danos morais nos processos relativos à defesa do consumidor. A mudança de posicionamento em tela chama a atenção, tendo em vista que o número de reclamações aumentou significativamente nos últimos anos. A tendência natural seria que as condenações se tornassem mais severas, a fim de desestimular as condutas lesivas, nunca mais brandas.

O dano moral é lesão subjetiva causada a pessoa. Em que pese já ter havido tentativa pelo STJ de tutelar sua quantificação, tal intento foi barrado na origem diante da repercussão negativa na comunidade jurídica. Não sem razão, afinal limitava o julgador em relação à margem de valoração, desprezando as peculiaridades da situação concreta trazida a juízo.

Ocorre que, diante da tormentosa questão, o TJ-RJ tem apresentado atualmente uma solução singular: deixar de reconhecer a existência de indenização por dano moral em inúmeros casos, por meio da tese do mero aborrecimento cotidiano, isto é, a ideia de que aquela situação lesiva vivenciada, por ser comum, não ensejaria qualquer reparação. Em outras palavras, seria tão normal aquele fato que a pessoa teria de suportá-lo como inerente à vida em sociedade.

Entretanto, ao prosperar tal tese, afasta-se completamente do objetivo maior do Direito: a paz social. Tratar a lesão moral como uma não lesão por ser comum apenas engessa qualquer possibilidade de mudança do quadro social onde aquela surgiu. Permite a perpetuação da conduta lesiva no seio da sociedade sem qualquer perspectiva de correção da atitude lesiva. Naturaliza-se o dano, esquece-se o lesado, por fim, abandona-se a sociedade.

Em verdade, a evolução da sociedade impõe a superação da tese do mero aborrecimento, pois o julgador, ao reparar adequadamente por meio de justas indenizações a parte em litígio, indica que aquela pessoa membro do corpo social teve reconhecida que sua lesão moral não foi desprezada, tornada aceitável, gerando ao lesionador uma necessária revisão em sua conduta, sob pena de ver seu patrimônio depauperar-se em razão de sua conduta, ou seja, efetivamente responsabiliza-se.

Não se pode olvidar que a indenização por dano moral possui caráter punitivo-pedagógico, portanto, além de reparar a lesão, objetiva punir quem reincide no ato ilícito, prejudicando, muita das vezes, milhares de consumidores com a mesma prática abusiva.

No entanto, essa característica não vem sendo observada pelos tribunais. Na realidade, a natureza punitiva é cada vez menos valorizada. Essa observação se faz necessária quando se reconhece que situações potencialmente causadoras de danos possam alcançar significativo número de pessoas, sendo coerente a aplicação de indenização com função de desacorçoar as empresas a praticar atos refratários.

Nota-se também que as empresas mais acionadas são sempre as mesmas, o que comprova a falta de eficácia das condenações impostas pelo Poder Judiciário. O número de reclamações extrajudiciais também aumenta a cada ano, em números ainda maiores do que as reclamações judiciais.

Deixar de condenar o fornecedor por ofender o consumidor em processo individual, criando jurisprudência desfavorável, é deixar de punir a empresa pela mesma conduta perpetrada perante milhares de outros que se encontram na mesma situação.

Isso leva a refletir que a celeridade e produtividade ilusória objetivada neste “ativismo judicial processual” prejudica ainda mais o jurisdicionado — já lesado, em tese, na relação de consumo —, menosprezando as condenações por danos morais em sede consumerista.

A alteração de entendimentos anteriormente pacificados demonstrou-se inócua para atingir os fins pretendidos, muito pelo contrário, apenas estimulou a prática de ilícitos de consumo. Por causa dessa política, o número de processos que envolviam questões relativas a dano moral caiu drasticamente nos últimos anos. Em 2014, foram distribuídos 2.628.644 processos em todo o país com essa temática; já em 2016 apenas 2.015.810, redução de 23%. No estado do Rio de Janeiro, a queda foi de 26%: de 843.095 em 2014 para 625.968 em 2016 (CNJ, 2017).

O Poder Judiciário deve ser razoável no estabelecimento das metas de produtividade. Deve haver um equilíbrio entre celeridade e justiça para que seja alcançado o objetivo máximo que é satisfazer o interesse social. Não serão as metas ou a jurisprudência defensiva que resolverão o conhecido problema da falta de agilidade processual brasileira.

As soluções adotadas pelos tribunais para diminuir o crescente estoque de processos, seja pela adoção da jurisprudência defensiva processual ou material, são ilegais e injustas. Além de não solucionar o problema, essas medidas ensejaram a propositura de ainda mais recursos, bem como não evitaram o crescimento dos litígios de consumo.

Assim, se faz necessária uma grande mudança estrutural do próprio Poder Judiciário, mas combinado com mudanças nas posturas de todos aqueles que se encontram no polo passivo das demandas.

A jurisprudência defensiva, criada pioneira e exclusivamente pelos tribunais nacionais, em todos os seus aspectos, é instrumento ineficaz e, principalmente, injusto para solucionar essa problemática.

Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV, 2016) no segundo semestre de 2015 indica que 20% dos consumidores receberam alguma cobrança indevida por parte de operadoras de telefonia no período.

Levando em consideração que existem 301,2 milhões de linhas telefônicas no país (43,4 milhões de linhas fixas e 257,8 milhões de linhas móveis), sem considerar os serviços de distribuição de canais de televisão e internet, é certo que pelo menos 60,2 milhões de cidadãos suportaram algum tipo de cobrança ilegal. Não é difícil imaginar o lucro exorbitante percebido mensalmente.

A mesma pesquisa expõe que 11% dos clientes de instituições financeiras receberam alguma cobrança indevida no período pesquisado. Os dez maiores conglomerados bancários têm, juntos, 280,6 milhões de contas ativas (Bacen, 2015). Ou seja, de acordo com a pesquisa, 30,9 milhões de correntistas foram vítimas de desconto indevido em suas contas.

As decisões acabam por estimular e não desestimular a conduta, servindo o processo como mecanismo legitimador do enriquecimento ilícito das empresas. Apesar do elevado número de processos na Justiça, os maiores litigantes são as empresas que obtêm os maiores lucros. A Oi teve lucro líquido de R$ 1,49 bilhão em 2013 (1ª mais acionada nos JECS nos últimos cinco anos); a Light S/A, de R$ 662,8 milhões em 2014 (3ª); a Ampla Energia e Serviços, de R$ 515 milhões em 2013 (7ª); o Banco Itaú, de R$ 23,35 bilhões em 2015 (5ª); o Banco Santander, de R$ 6,62 bilhões em 2015 (4ª); o Banco Bradesco, de R$ 17,2 bilhões em 2015 (6ª); a Caixa Econômica Federal, de R$ 7,2 bilhões em 2015; a Vivo, de R$ 3,4 bilhões em 2015 (12ª); e da Tim, de R$ 1,73 bilhão em 2015 (13ª).

O fornecedor não punido preferirá repetir a conduta ofensiva ao ordenamento jurídico e, assim, ensejará a propositura de mais processos. Ao deixar de observar o caráter sancionatório da indenização, a Justiça não promove a correção das distorções praticadas no mercado, além de colaborar para que os fornecedores, mesmo demandados em juízo, não venham a ser exemplarmente punidos.

Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Decisão proferida no Recurso Especial 1.152.541-RS, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, definiu o método bifásico como critério de fixação do dano moral. Na fundamentação do acórdão, esclareceu-se que:

“Na situação econômica do ofensor, manifestam-se as funções preventiva e punitiva da indenização por dano moral, pois, ao mesmo tempo em que se busca desestimular o autor do dano para a prática de novos fatos semelhantes, pune-se o responsável com maior ou menor rigor, conforme sua condição financeira. Assim, se o agente ofensor é uma grande empresa que pratica reiteradamente o mesmo tipo de evento danoso, eleva-se o valor da indenização para que sejam tomadas providências no sentido de evitar a reiteração do fato”.

O Poder Judiciário, como último front de defesa da cidadania, tem papel decisivo para que sejam sanadas as deformidades mercadológicas. A fixação de valor ínfimo das indenizações implicará no simples provisionamento desse custo nos balanços das grandes corporações, não colaborando para a melhoria dos serviços prestados à população brasileira.

A rejeição de pleitos indenizatórios por danos morais em sede de consumo não ajudará a melhorar a qualidade do serviço prestado pelos fornecedores brasileiros. O consumidor merece ser tratado de forma digna, sendo certo que, se não houver severa punição em face dos fornecedores, não se transformará a realidade. Espera-se que essa mentalidade seja modificada, a fim de possibilitar processo mais justo.

Enquanto os fornecedores não forem severamente punidos pelos seus atos contrários à dignidade do consumidor (causa do problema), obrigando-os a melhorar o serviço prestado, o número de reclamações e, por conseguinte, de processos judiciais (efeito do problema) não será reduzido.

Se, no entanto, os tribunais revisarem seu posicionamento, todos ganharão. O Judiciário em credibilidade, pela contribuição direta para o aperfeiçoamento da sociedade, que deixará de ser como é hoje, repleta de microlesões, quando considerada a dimensão do corpo social, mas gigantes lesões morais, quando visto da perspectiva do indivíduo lesionado; o lesado que efetivamente será ressarcido; e por que não dizer, o lesionador que terá a oportunidade de rever sua prática, se tiver a perspicácia de ver a obrigação de indenizar pelo dano moral afligido não apenas como diminuição de patrimônio, mas uma alerta para revisão da conduta.

 

 

 

Autor: Miguel Barreto  é advogado.


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