Dano moral em voo internacional e o descumprimento de precedentes pelo STF

Autor: Leonardo de Faria Beraldo (*)

 

No dia 20 de abril, foi veiculada na ConJur notícia de que o ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, decidiu que o Código de Defesa do Consumidor não deve ser aplicado aos atrasos de voo internacional.

Trata-se dos Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário 351.750/RJ, no qual se discute o valor de compensação por danos morais. De início, é importante consignar que esse recurso chegou ao STF em 22/8/2002. De lá pra cá, pouco se fez nesse processo, que, por sinal, já teve vários relatores.

Enfim, o importante é que, por meio de decisão monocrática, o ministro Roberto Barroso, atual relator do processo, decidiu o seguinte [leia aqui]:

“Diante do exposto, nos termos do artigo 335, § 1º, do RI/STF, dou parcial provimento aos embargos de divergência para conhecer e prover o recurso extraordinário e, com isso, determinar às instâncias de origem que apreciem novamente o feito, levando em consideração que a norma internacional que rege a matéria deve prevalecer sobre Código de Defesa do Consumidor para eventual condenação de empresa aérea internacional por danos morais e materiais” (decisão publicada no DJe de 19/4/2018).

Assim o fez ao fundamento de que os embargos de divergência estavam em confronto com a recente jurisprudência do STF, mais precisamente do RE 636.331/RJ e do ARE 766.618/SP.

A decisão monocrática em questão não respeitou os dois precedentes citados do próprio STF. Por quê? Porque, no RE 636.331/RJ, o objeto do recurso era apenas o limite da reparação por danos materiais em caso de extravio de bagagem no transporte aéreo internacional. Já no ARE 766.618/SP, o escopo do recurso era, tão somente, o prazo prescricional para o exercício da pretensão nos danos decorrentes do transporte aéreo internacional.

Nesses embargos de divergência, parece-me, pelo que pude ler da decisão monocrática, trata-se de demanda em que se discute apenas o valor dos danos morais, ou seja, se, para o seu arbitramento, estaria ou não o julgador obrigado a aplicar as convenções de Varsóvia e de Montreal. Digo isso por causa da seguinte passagem da decisão monocrática:

“Na hipótese, se discute pedido de indenização de danos morais por falha de prestação de serviço em transporte internacional aéreo de passageiros.

A Turma Recursal de origem condenou a empresa aérea ao pagamento de indenização com fundamento no Código de Defesa do Consumidor, afastando tratados e convenções internacionais que regem a matéria (acórdão de fls. 101/103, integrado pelo acórdão de fls. 111/112)”.

Ocorre que, como já salientado, no RE 636.331/RJ e no ARE 766.618/SP não se decidiu que as ditas convenções internacionais aplicam-se nas ações por danos morais. Aliás, o que se decidiu foi exatamente o contrário. Em ambos os acórdãos podem ser extraídos os seguintes excertos:

“A meu ver, como corretamente assentado, tanto pelo Ministro Barroso, como pelo Ministro Gilmar e o Ministro Marco Aurélio, não está em causa aqui a condenação dos danos morais, até porque o Tribunal tem posição no sentido de cindir essas duas questões” (aparte do Min. Ricardo Lewandowski, 25ª e 18ª lauda dos acórdãos do RE n. 636.331/RJ e do ARE n. 766.618/SP, respectivamente).

“Esclareço que o enfoque se dá apenas quanto aos danos materiais, pois, como ressaltado pelo Ministro Marco Aurélio, quando do início do julgamento deste feito, na sessão de 08.5.2014, a Convenção de Varsóvia não cuidou dos danos morais, não cabendo, nessa perspectiva, estender a estes a aplicação dos limites indenizatórios estabelecidos no mencionado pacto internacional” (trecho do voto da Min. Rosa Weber, 62ª e 55ª lauda dos acórdãos do RE n. 636.331/RJ e do ARE n. 766.618/SP, respectivamente).

Assim, como o dano moral não foi expressamente disciplinado pelas duas convenções internacionais, além de, claro, ele ter a sua matriz constitucional, não poderia ser objeto de tarifação ou limitação por regras de natureza infraconstitucional. Essa parece ter sido a conclusão a que chegaram os ministros no julgamento dos dois precedentes já elencados.

Com efeito, a decisão monocrática ora analisada não observou os dois recentes precedentes do STF em matéria de responsabilidade civil no contrato de transporte aéreo internacional.

Além do mais, em uma ação que foi iniciada, provavelmente, no século passado, não me parece correto que se determine à Turma Recursal dos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro que julgue o caso novamente, só que, desta vez, à luz da Convenção de Montreal, em vez de ser com base no Código de Defesa do Consumidor. Ora, se se desrespeitou os precedentes do STF, que, pelo menos, se adequasse o valor àquele que se entenda como sendo o correto na própria decisão monocrática. Em momentos como esse, não se pode esquecer que é direito fundamental de todos a tramitação do processo em tempo razoável, sem dilações indevidas (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição de 1988).

Portanto, o que eu espero é que o advogado da consumidora interponha agravo interno para que esse recurso possa ser julgado pelo Pleno do STF. Também tenho a esperança de que os ministros do STF cumpram os precedentes julgados pelo Pleno, observando-se, assim, o artigo 926 do Código de Processo Civil, que determina que “[o]s tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Por fim, quero lembrar ao leitor que, mesmo nas ações que tenham como pedido danos materiais por extravio de bagagem, tenho entendimento de que não se deve aplicar o teto previsto na Convenção de Montreal, haja vista a sua clara inconstitucionalidade. Já pude, aliás, escrever sobre esse tema. Em nenhum dos dois precedentes citados ocorreu o trânsito em julgado, haja vista a oposição de embargos de declaração. Em outras palavras, ainda é possível que os ministros mudem de opinião sobre o assunto, muito embora eu tenha quase certeza de que nenhum deles alterará o seu ponto de vista.

 

 

 

Autor: Leonardo de Faria Beraldo é advogado, professor de Processo Civil, Arbitragem e Direito Civil, mestre em Direito Privado pela PUC Minas e especialista em Processo Civil. Membro do Conselho Deliberativo da Camarb – Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil.


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