De quem é a responsabilidade pela superlotação dos presídios brasileiros?

Autor: Guilherme de Souza Nucci (*)

 

* Guilherme Nucci é autor da obra Individualização da Pena. Leitores da ConJur têm desconto de 15% ao comprar este e outros livros publicados pelo Grupo GEN. Para participar, basta preencher o campo “Cupom de Desconto” com a palavra “CONJUR”, ao efetuar a compra. Clique aqui para acessar o site da editora.

Insiste-se, no Brasil, na ideia de que há superlotação dos estabelecimentos penais, tanto para presos provisórios quanto para condenados em regime fechado. Diante disso, os mesmos que assim sustentam tendem a responsabilizar o Poder Judiciário pela situação, afirmando que os magistrados em geral prendem demais e soltam de menos. Porém, não nos parece que seja culpa da Justiça o estado calamitoso dos presídios no país.

Em primeiro lugar, há que se ponderar os números superestimados de presos em sistema fechado; muitos cálculos de pessoas detidas envolvem, irregularmente, os regimes semiaberto e aberto, o que, por óbvio, é ilógico. Quem se encontra em colônia penal agrícola ou industrial (semiaberto) não está sujeito a nenhuma espécie de superlotação insalubre ou degradante. Aliás, por inépcia do Poder Executivo, administrador dos estabelecimentos penais, em muitas colônias não há trabalho nem estudo para o preso, motivo pelo qual várias dessas referidas colônias viraram autênticas casas de albergado, que seria típico regime aberto. Noutros termos, o preso em regime semiaberto, por falta de condições internas, sai para trabalhar ou estudar, pela manhã, retornando à noite para a colônia. Não é preciso ser especialista em Direito Penal para concluir algo evidente: o semiaberto transmudou-se para aberto, na prática, em incontáveis comarcas brasileiras, muitas das quais eu visitei e assim constatei.

Outro erro é computar como preso quem cumpre pena em regime aberto, o sistema mais hipócrita e ilegal que já existiu no Brasil. Na maioria (senão totalidade) das comarcas inexiste casa do albergado, local onde o condenado, em regime aberto, deveria se recolher para dormir e passar os finais de semana, saindo apenas para trabalhar ou estudar. Logo, a solução encontrada pelo Judiciário, sempre tapando os buracos enormes provocados pelo Executivo, valeu-se de analogia e usou o artigo 117 da Lei de Execução Penal, que assegura prisão domiciliar para maiores de 70 anos, gravemente enfermos, mulher com filho menor ou deficiente físico ou mental e mulher gestante, para todos os “presos” em regime aberto. Enfim, quem está em regime aberto encontra-se em prisão albergue domiciliar, em sua própria residência, sem nenhuma fiscalização efetiva. Então, juntar sentenciados dos três regimes (fechado, semiaberto e aberto) como condenados “presos” é totalmente inverídico.

Em segundo lugar, quando se mencionam os presos provisórios, afirmando haver excesso, muitas estatísticas incluem como provisórios os presos que já estão condenados em outro processo, logo, cumprem pena. Uma pessoa pode cumprir pena no regime fechado e também ter, contra si, uma prisão preventiva decretada em outro processo. Ele não é um simples preso provisório, mas um condenado definitivo, que se encontra em regime fechado antes de mais nada.

Pode-se até argumentar que muitos juízes e tribunais prendem demais, o que pode representar uma verdade. No entanto, ainda assim, não são detidos em cárcere fechado os inofensivos furtadores de bagatelas; ali estão assaltantes, estupradores, latrocidas, homicidas, traficantes, ladrões reincidentes, autores de agressões domésticas contra a mulher etc. Que culpa tem o Judiciário se houve um incremento de delitos violentos, hediondos ou equiparados? Nenhuma, pois a política social e educacional deficiente é, igualmente, responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo.

Diante desse quadro, verifica-se tramitar, agora na Câmara dos Deputados, projeto de lei advindo do Senado (já aprovado), modificando, dentre outros, a Lei de Execução Penal, contendo o seguinte artigo: “Art. 114-A. É vedada a acomodação de presos nos estabelecimentos penais em número superior à sua capacidade. § 1º Sempre que atingido o limite, será realizado mutirão carcerário pela corregedoria respectiva. § 2º Havendo presos além da capacidade do estabelecimento, o juízo da execução deverá antecipar a concessão de benefícios aos presos cujo requisito temporal esteja mais próximo de ser preenchido. § 3º Os mutirões carcerários com a finalidade de redução da população carcerária deverão priorizar a liberdade dos presos sem sentença há mais de 90 (noventa) dias da data da prisão e os presos por crimes sem violência contra a pessoa, aos quais se poderão aplicar, se o caso justificar, medidas cautelares alternativas à prisão”.

A sua simples leitura indica, com nitidez, o seguinte: se um presídio possui 500 vagas e já atingiu esse limite, chegando um novo preso, que pode ter uma pena elevada pela prática de um crime violento, para ingressar no regime fechado, determina-se que um outro preso, ali recolhido, deve ter antecipado algum benefício, mesmo sem preencher o requisito temporal. Em suma, para entrar um, alguém deve sair, ainda que ninguém faça jus, pela lei, a passar a outro regime ou ao recebimento de livramento condicional. A progressão se dá pelo cumprimento de apenas um sexto da pena no fechado e, mesmo assim, o juiz da execução penal pode antecipar a saída do detento. E se ele não tiver merecimento? E se nenhum outro possuir tempo para sair ou mesmo mérito? Pela letra da lei, o magistrado deve escolher os menos piores. A sociedade que os acolha e com eles conviva, arcando com os custos do crime.

O ponto fulcral da questão é que o referido artigo 114-A, se virar lei, quer eximir da sua plena responsabilidade o Poder Executivo (federal e estadual), que não quer construir de maneira suficiente novos presídios para abrigar o aumento da população carcerária. A despeito de um Fundo Penitenciário milionário, não há verbas para isso. Pela singela razão de que esse montante é contingenciado para outros assuntos e ministérios. Infelizmente, a sociedade não percebe que segurança pública também diz respeito ao cumprimento efetivo da pena. Se condenados a penas elevadas, por delitos graves, voltam ao convívio social rapidamente, tornarão a cometer mais crimes e assim sucessivamente. Nem se pode questionar que a pena, tal como cumprida hoje no Brasil, por responsabilidade maior do Executivo, que não cumpre a Lei de Execução Penal, não proporciona a necessária ressocialização ou reeducação. Mas, no mínimo, o regime fechado proporciona a segregação, uma forma de prevenção individual, considerada negativa, mas indispensável por vezes.

Em lugar de facilitar a gestão dos irresponsáveis chefes do Executivo, melhor faria uma lei nova ao criar uma figura de crime de responsabilidade para quem permitir a superlotação e não cumprir as normas relativas à execução penal. Mas, como sempre, pode sobrar a conta para a sociedade pagar. A criminalidade violenta e hedionda é uma realidade triste, porém inquestionável, e contra isso exige-se a prometida força estatal para evitar a antiga vingança privada. Basta perguntar a qualquer familiar que teve parente assaltado, assassinado ou estuprado o que ele espera do Estado… Ele responderá, na maioria das vezes, que aguarda Justiça. O que isso significa? Que ele espera o delinquente de volta à sociedade alguns meses depois a pretexto de estar lotado o espaço público destinado a servir de presídio?

O objetivo destas linhas não é debater as finalidades da pena, o que aliás está exposto em meu livro Individualização da Pena, mas apontar a subserviência do Legislativo aos reclamos do Executivo. Este não quer gastar com presídios, porque não traz votos; então, muda-se a lei, e quem deveria estar preso volta ao convívio social. Com isso, a sociedade paga elevada conta e, pior, ainda culpa o Judiciário por, cumprindo a lei, soltar quem não merece.

 

 

 

 

 

Autor: Guilherme de Souza Nucci é desembargador da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, professor da PUC-SP, livre-docente em Direito Penal e doutor e mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP.


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