por Osiris de Azevedo Lopes Filho
Os jornais noticiaram a decisão do Supremo Tribunal Federal, adotada pelo ministro Marco Aurélio de Mello, por liminar, de autorizar a interrupção da gravidez quando houver laudo médico comprovando a anencefalia do feto, independentemente de a gestante dispor de ordem judicial destinada a permitir se faça essa interrupção.
Por anencefalia entenda-se a ausência de um hemisfério cerebral ou de ambos, o que impossibilitará a sobrevivência do feto após o nascimento.
Tal decisão provoca obviamente polêmica no País. Já foram divulgadas opiniões de entidades que, apoiadas no direito à vida, essencial à existência do ser humano, criticam a decisão por considerá-la favorável ao aborto, sob o argumento de que “ninguém tem o direito de antecipar a morte de outra pessoa”.
Está, portanto, voltando a ser introduzida na ordem do dia das questões importantes da nossa sociedade a problemática do aborto, considerada pelo art. 124 Código Penal de 1940, como crime no capítulo relativo aos crimes contra a vida.
Em realidade, o aborto — interrupção da gravidez com a resultante morte do feto — além de ser considerado crime em relação à gestante que o provoca ou consente que seja provocado, está cercado de vários outros crimes que alcançam os agentes que o provocam, em especial, médicos, enfermeiras, vale dizer, profissionais da saúde que atuam na área ginecológica e se envolvem na matéria praticando atos que resultam no aborto.
O art. 128 do Código Penal prevê o aborto legal, vale dizer, não se pune o aborto realizado por médico, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resulta de estupro e ocorre o consentimento da gestante ou de seu representante legal, sendo ela incapaz. São dois casos de aborto lícito, posto que excluídos da antijuricidade penal.
Mas há a outra hipótese, que torna a gravidez da mãe um tormento. O progresso da ciência médica e da sua tecnologia possibilita a constatação da anomalia – a ausência de hemisférios cerebrais. Falta a esse ser, ainda evolução no ventre da mãe, o essencial ao ser humano – o cérebro. Mesmo que fosse viável, o que não é, a sua sobrevivência careceria de atributo essencial à fruição da experiência plena de vida. Esta não é apenas essência, mas vivência – possibilidade de existência completa, com o desenvolvimento das faculdades da condição humana e da personalidade.
Havia um vazio na nossa legislação penal, que submetia a gestante, no caso da anencefalia, a requerer a autorização judicial para a interrupção da gravidez, nem sempre tendo, a tempo e a hora, uma decisão final favorável ao pedido, antes da ocorrência do parto. A gravidez, geralmente um período cheio de expectativas felizes, torna-se uma fase de provação para a mãe e familiares sabedores da anomalia inviabilizadora da existência extra-uterina digna e possível do ser.
O caso propicia se verifique a tensão entre princípios consagrados no nosso sistema jurídico – o direito à vida, à integridade física, à vedação à tortura, a que é submetida a mãe sabedora da existência do feto anômalo e a proteção à personalidade da condição humana.
Agiu sábia e humanitariamente o ministro Marco Aurélio, realizando a construção judicial que supera insuficiência do Código Penal, libertando gestantes do adicional fardo torturante de processo penal agravador de sua situação infeliz.
Órgãos da imprensa, deprimentosamente, qualificam o ministro Marco Aurélio como autor de decisões polêmicas. Essa seria uma delas. A história está cheia de exemplos de estigmatização dos inovadores e aos que ousam criar. O ministro mostrou que é um magistrado contemporâneo dos desafios da modernidade. E cumpre sua missão com competência, coragem e independência, para responder às exigências do nosso tempo.
Osiris de Azevedo Lopes Filho é advogado, professor de Direito na Universidade de Brasília, da Fundação Getúlio Vargas e ex-secretário da Receita Federal.