Autores: Halley Henares Neto e Dirceu José Vieira Chrysostomo (*)
O Conselho Administrativo de Recurso Fiscais (Carf) alterou recentemente o seu posicionamento acerca da incidência da contribuição previdenciária sobre valores pagos pelas empresas a seus funcionários e executivos a título de assistência médica ou seguro saúde. A abrupta mudança da jurisprudência administrativa gera insegurança jurídica ao estabelecer nova orientação interpretativa, agora no sentido de que os valores pagos e cobertos por planos de saúde pelas empresas devem integrar o chamado salário-contribuição, para fins de determinação de valores que integrarão a base de cálculo da contribuição previdenciária.
A legislação brasileira é clara ao dispor sobre a regra de não incidência da contribuição previdenciária sobre valores pagos a título de assistência médica pelas empresas. Conforme a letra “q” do artigo 28, parágrafo 9º, da Lei 8.212/91, a contribuição ao INSS não deve incidir sobre “o valor relativo à assistência prestada por serviço médico ou odontológico, próprio da empresa ou por ela conveniado, inclusive o reembolso de despesas com medicamentos, óculos, aparelhos ortopédicos, despesas médico-hospitalares e outras similares, desde que a cobertura abranja a totalidade dos empregados e dirigentes da empresa”.
A despeito da meridiana clareza do texto normativo acima, o Carf, em decisão da Câmara Superior, mudou posicionamento que vinha sufragando até então, no sentido de que bastava haver o pagamento de assistência médica e cobertura a todos os funcionários (totalidade dos empregados e dirigentes) da empresa para que a mesma não integrasse tais valores ao salário-contribuição para fins de incidência de contribuição previdenciária ao INSS, e adotou outro, em sentido inverso, passando a interpretar que a norma jurídica que trata da não incidência de INSS não deve ser aplicada aos casos em que a empresa, a despeito de cumprir o requisito do pagamento da totalidade dos seus empregados, faz distinção entre os planos e coberturas de saúde entre os seus funcionários segurados.
Em outras palavras, segundo esta nova diretriz o Carf entende que sempre que houver patamares de valores e tipos de planos e coberturas diferentes entre os funcionários de uma empresa, quaisquer que sejam a sua remuneração, cargo ou assunção de benefícios correspondentes ao grau das responsabilidades que desempenham ou do salário que auferem, essa distinção, por si só, tem o condão de desnaturar o benefício da não incidência prevista na Lei e que portanto o valor relativo a mesma, nessas hipóteses, deve incorporar o salário-contribuição para fins da incidência respectiva contribuição previdenciária.
Data máxima vênia, entendemos que a Lei 8.212/91, com as alterações introduzidas pela Lei 9528/97, ao criar a regra da não incidência impõe que o requisito ou ‘critério material’ necessário para a caracterização do pagamento como parcela não salarial (portanto não sujeita ao INSS) é o de que a fonte pagadora (empregador) tenha sob as suas expensas o pagamento de plano de saúde que possibilite a cobertura de todos os seus empregados, assegurando-lhes plena assistência e amparo médico. Se dado contribuinte empregador efetua este pagamento e cumpre este requisito, é óbvio, a partir da própria literalidade da Lei, que ele preenche as condições necessárias para não incluir tais valores no salário-contribuição base para a incidência da contribuição ao INSS. Basta isso!
Ao contrário, porém, o Carf, nessa recente decisão, que se espera seja revisitada e revista, em função de seu caráter pedagógico no ordenamento jurídico e em vista da proeminência ocupada por este tribunal no topo dos tribunais administrativos encarregados de concretizar, em caráter contencioso, a Função Administrativa do Estado, no âmbito do Estado Democrático de Direito, fixa entendimento no sentido de que além da condição de que essa cobertura seja para todos os funcionários, ela também seja uniforme e homogênea, ou seja, que haja o mesmo valor de contribuição e que ele seja hábil a oferecer o mesmo tipo de cobertura para a universalidade dos funcionários da empresa contribuinte.
Algumas observações cumprem destacar aqui:
1. O tribunal ou qualquer autoridade administrativa não pode distinguir onde a lei não o faz, sob pena de ofender, a uma só vez, o primado da legalidade, agindo sob arbítrio em um campo no qual o legislador não deixou espaço sequer para a discricionariedade, e atuando como legislador positivo, criando condições que não estão expressas na norma jurídica. Com efeito, o referido artigo 28 é claro quando diz que não integra o salário de contribuição os valores pagos a titulo de assistência médica desde que pagos a todos os empregados. Não consta na literalidade da letra da lei, com o perdão da tautologia, nenhuma outra condição, requisito ou fator de discrímen;
2. A despeito de a disposição literal de lei assim prever, o voto vencedor da relatora está baseado no artigo 111, II do CTN que dispõe justamente sobre a necessidade de interpretação literal em casos de isenção. Contudo, ao que parece, ela o faz para supeditar o seu entendimento, o que nos parece um contra sensu, já que, ainda que se faça a “interpretação dos leigos” (literal), nos dizeres de Ataliba, não há no texto desta regra o que qualquer outra restrição além da obrigatoriedade de a assistência ser oferecida e paga a todos os funcionários da empresa empregadora, por exemplo, não há nada que obrigue que o plano de saúde não possa ser graduado desde que o mesmo seja dado a todos os funcionários.
3. Aliás, nem a interpretação literal, se fosse o caso de se aplicar o artigo 111 do CTN (pois entendemos que não o é, já que não se trata de isenção, mas sim de mera ‘não incidência’, na medida em que o que se discute é se o conceito do pagamento de assistência médica pode ou não integrar o conceito de salário contribuição e assim compor a base de cálculo e o fato gerador da contribuição ao INSS) prescinde de exegese sistemática, a levar em conta aplicação de outras regras e princípios constitucionais que forneçam subsídios para uma adequada compreensão da incidência ou não de contribuições previdenciárias em hipóteses como a que analisamos, sobretudo em tema ligado à saúde. É o caso, pois, de se analisar o alcance do artigo 195, I, “a” da CF/88 e os princípios da isonomia e da proporcionalidade, ainda que se coadune com um método mais rigoroso de análise literal.
Nesse sentido, o STJ já destacou mais de uma vez que “(….) o artigo 111 do CTN, que prescreve a interpretação literal da norma, não pode levar o aplicador do direito à absurda conclusão de que esteja ele impedido, no seu mister de apreciar e aplicar as normas de direito, de valer-se de uma equilibrada ponderação dos elementos lógico-sistemático, histórico e finalístico ou teleológico, os quais integram a moderna metodologia de interpretação das normas jurídicas…..” (STJ. REsp 192531/RS. Rel.: Min. João Octavio de Noronha. 2ª Turma. Decisão: 17/02/05. DJ de 16/05/05, p. 275.). Adotar posição de apego inarredável ao artigo 111 do CTN significa esvaziar o instituto da isenção.
4. Assim, o pagamento de assistência médica diretamente pela empresa de modo amplo a “todos” os funcionários, nos termos do art. 28, já descaracteriza essa remuneração do conceito de salário. À luz do artigo 195, I, “a” da CF/88 e do artigo 28, I, da Lei 8.212/91, as contribuições previdenciárias podem incidir sobre a remuneração advinda do trabalho, portanto, não podem incidir sobre parcelas que o empregador paga como um “plus” ao empregado, em decorrência de ônus imposto pelo Estado, justamente aquele quem deveria, nos termos do artigo 196 da Constituição, assumir a função de prover a proteção à saúde pública. A tributação, in casu, só pode incidir no limite e na quantidade do que efetivamente seja pago como salário. A criação de um novo requisito para a caracterização da não incidência, a partir da criação deste requisito ou critério para determinação do que vem a ser salário ou elemento apto a configurar salario-contribuição para fins de INSS. constitui, então, também uma inovação para o conceito de salário, ao arrepio da Constituição e fora dos parâmetros do artigo 110 do CTN.
5. Mais injusto ainda do que não desempenhar o seu papel atribuído constitucionalmente, transferindo-o ao empregador, é o Estado tributá-lo sobre o próprio ônus atribuído. Esse expediente contraria o artigo 196 da CF/88, que não é mera norma programática, mas sim concretizadora de direitos individuais, dentre eles um dos mais importantes que é o da proteção constitucional à saúde pública.
7. Princípio da Isonomia — os salários e benefícios não são homogêneos e uniformes em uma empresa. Do ponto de vista prático e legal conjuntamente com a contratação ocorre o ajuste do salário e não raras vezes de um pacote de benefícios ou assunção de outros custos. Esta situação pode ser diferenciada a depender do cargo ou função a que se refere, na medida em que as responsabilidades e poderes assumidos em contrapartida também podem ser distintos e heterogêneos, sob a perspectiva funcional, de gestão, de desempenho ou qualquer outro critério que o valha. Da mesma forma que a remuneração o valor da assistência médica (que também é um ônus — custo — assumido pela empresa) não pode ser impingido a todos de modo igual e uniforme. A isonomia transcende da mera igualdade formal (perante a lei) para a igualdade material (na lei), tratando-se os desiguais de modo desigual, lembrando, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, que em qualquer discriminação o fator de discrímen deve guardar nexo de pertinência lógica com a situação discriminada.
Conclusão
A decisão implica em insegurança jurídica, modificando a aplicação sedimentada da lei em um determinado sentido e permitindo que muitas empresas possam ser autuadas pelo Fisco Federal, o que não se coaduna com a função do Estado que é, fundamentalmente, viabilizar a convivência harmônica da sociedade.
A empresa se estrutura em conformidade com a ordem normativa, em consonância com a interpretação e aplicação da lei feita pelo próprio Fisco, assume o custo de uma assistência médica aos seus empregados, efetivando uma função que deveria ser do Estado e inesperadamente é surpreendida com uma modificação que lhe acarreta a insegura situação de eventual autuação fiscal com a imposição de ônus decorrentes.
A nova interpretação feita pelo Carf afronta princípios constitucionais, não se coaduna com o sistema normativo, transgredi direitos do contribuinte e se afasta do dever jurídico daquele órgão julgador de realizar justiça.
Não há mais espaço para aumentar a carga tributária, quer por novas leis, quer por interpretações desarrazoadas da lei. Basta de desrespeito ao contribuinte brasileiro.
Talvez seja também oportuno buscar a Justiça Tributária pelas ruas do Brasil, local onde o povo começou se reunir para tomar o seu próprio destino, escrevendo e protagonizando a história do tempo de hoje e amanhã.
Autores: Halley Henares Neto sócio titular da Henares Advogados e presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT).
Dirceu José Vieira Chrysostomo é ex-procurador geral do Estado de São Paulo, sócio da Henares Advogados e diretor da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT).