Autor: Fernando Hideo I. Lacerda (*)
Esse não é mais um artigo que se propõe a criticar teoricamente a pior e talvez a mais perigosa decisão da história do Supremo Tribunal Federal, que desenterrou a “execução provisória” da pena de prisão ainda sujeita a reforma por recurso especial e/ou extraordinário. A proposta é uma incursão no caso concreto em busca de algumas obviedades e, possivelmente, um caminho no horizonte.
Precisamos dizer o óbvio. Assim alertava Nelson Rodrigues, já nos idos da década de 60, ao constatar que “o novo, o inédito, o nunca visto, o revolucionário, o jamais desconfiado — é o óbvio” ([1]). Estas linhas buscam inspiração rodriguiana justamente para proclamar o óbvio ululante. Sem atender ao afã de uma análise dogmática, filosófica, principiológica, histórica ou criminológica ― a par das tantas valiosas publicações já dedicadas ao tema ―, pretende-se apenas apontar obviedades que brotam do caso concreto. ([2])
Vamos direto ao processo: tudo começa na ação penal que tramitou inicialmente na Comarca de Itapecerica da Serra-SP, onde duas pessoas foram condenadas pelo crime de roubo (Processo 0009715-92.2010.8.26.0268). Uma delas já estava presa preventivamente e nessa condição foi mantida após a sentença. À outra, em liberdade provisória, foi obviamente autorizado “que, querendo, recorra em liberdade desta decisão”: até então, nenhuma novidade.
Ocorre que, no julgamento da apelação interposta exclusivamente pelos réus, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao recurso, apresentando fundamentação no mínimo generalista e muito peculiar no que diz respeito ao conceito de “gente de bem” e “respeito ao próximo”, que de tão emblemática merece ser destacada:
“Quem expõe a vítima a tão tremenda humilhação, deixando aquele ser humana, gente de bem – vítima também desta sanha criminosa de violência que assola nossa terra e assusta a todos nós –, levado à condição de um nada, levado a outro nada em sua dignidade humana, ameaçado, sob a mira de arma de fogo, decerto em pânico e terror intenso e gigantesco, não tem, como se disse o mínimo respeito pelo próximo”.
Ao final, o Tribunal negou provimento ao recurso e, sem qualquer fundamentação, determinou a expedição imediata de mandado de prisão contra o acusado que se encontrava em liberdade, mesmo diante da possibilidade de interposição de recurso especial e extraordinário: eis a novidade.
Seguiu-se a impetração de Habeas Corpus perante o STJ ( 313.021/SP), onde a liminar fora indeferida porque ― pasme! ― não se estaria diante de flagrante ilegalidade apta a superar orientação segundo a qual “não são mais cabíveis Habeas Corpus utilizados como substitutivos de recursos ordinários e de outros recursos no processo penal”.
Diante dessa negativa, foi impetrado novo Habeas Corpus, agora ao STF (126.292/SP). Nessas condições, a liminar foi concedida pelo próprio Ministro Teori Zavascki e o paciente finalmente foi colocado em liberdade, superando-se a súmula 691 do STF diante da ilegalidade flagrante, uma vez que o “fundamento adotado, em verdade, diz respeito a elementos da execução da pena, e não com aspecto cautelar inerente à prisão preventiva”.
Tudo parecia voltar às raias da normalidade. Entretanto, o julgamento foi afetado “ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, por indicação do Ministro Relator”, na última sessão de 2015. Ato contínuo, a liminar outrora concedida foi revogada e, por sete votos a quatro, fixou-se a nova e temida orientação proposta pelo relator no sentido de que “tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência”.
É preciso destacar os pareceres do Ministério Público Federal, cujos representantes são muitas vezes criticados pela forma arbitrária pela qual enxergam a persecução penal, mas que ― tanto no STJ, quanto no STF ― opinaram, neste caso concreto, pela concessão da ordem em nome da presunção de inocência.
No feito que tramita perante o STJ, o Ministério Público Federal precisou dizer o óbvio (linkar o arquivo anexo ao e-mail) ao afirmar que “a determinação da expedição de mandado de prisão em desfavor do paciente não se relaciona obviamente com prisão cautelar, pois não houve qualquer indicação nesse sentido pela Corte de origem. Trata-se, pois, de expedição de mandados de prisão para execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado, o que caracteriza constrangimento ilegal”, em parecer assinado pelo subprocurador-geral da República Durval Tadeu Guimarães.
Por sua vez, a mesma instituição precisou repetir o óbvio no STF, em parecer da lavra do subprocurador-geral da República Edson Oliveira de Almeida, opinando pela concessão da ordem, já que, “embora a sentença tenha permitido ao réu recorrer em liberdade, o Tribunal de Justiça, ao negar a apelação, decretou a prisão preventiva, afrontando assim a proibição da reformatio in pejus. Embora, em tese, seja possível a decretação da prisão preventiva por fatos supervenientes à sentença, esse não é o caso dos autos, donde a ilegalidade da prisão antes do trânsito em julgado da condenação”.
Nas duas instâncias, portanto, o Ministério Público Federal disse o óbvio ululante que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a enxergar. Ao revés, o esboço do voto apresentado pelo Ministro Teori Zavascki propõe a inversão da presunção de inocência, com base em premissas totalmente equivocadas, a saber: (i) a jurisprudência da Corte antes do julgamento do HC 84.078/MG (Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe de 26/2/2010); (ii) a sistemática recursal no direito comparado; (iii) a existência de recursos protelatórios por parte dos réus; e (iv) a harmonização do princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado.
É óbvio que pouco nos importa a sistemática recursal de Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina ― todos citados em detalhes pelo relator ―, se a nossa Constituição Federal diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, o Código de Processo Penal brasileiro afirma que a pena de prisão pressupõe “sentença condenatória transitada em julgado” e a Lei de Execuções Penais condiciona a expedição da “guia de recolhimento para execução” ao trânsito em julgado da “sentença que aplicar pena privativa de liberdade”.
Não menos óbvio é que o Estado precisa assumir a própria responsabilidade sobre a duração razoável do processo, ao invés de terceirizá-la à combatividade da defesa. A toda evidência, o pleno exercício do direito de defesa pressupõe o esgotamento das vias recursais. Nessas condições, caso se entenda pela necessidade de reforma no sistema recursal, compete ao poder constituinte derivado promover as devidas alterações, mas é inadmissível que o Poder Judiciário impute a sua morosidade às garantias constitucionais e ofereça como remédio a violação do direito fundamental à presunção de inocência.
Tão óbvio quanto, é que os diversos precedentes citados, todos anteriores ao julgamento do HC 84.078/MG, estão descontextualizados e desatualizados. Isso, porque no dia 04 de março de 2011 o Código de Processo Penal foi reformado pela Lei 12.403/11, que alterou o seu artigo 283 para afirmar que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Ignorando solenemente a legislação processual penal, a Corte decidiu pela relativização da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF) mediante uma tentativa de se forjar novo significado para a palavra “culpado”, supostamente em maior harmonia com o que chamou de efetividade da função jurisdicional do Estado.
Em síntese, afirmou-se no voto divulgado pelo relator que “a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal”.
A decisão está errada, pois este suposto “núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade” tem o seu alcance precisamente dimensionado pelo artigo 283 do CPP, ao estabelecer que, ressalvadas as modalidades de flagrante, preventiva e temporária, a prisão enquanto pena só pode ocorrer “em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado” e pelo artigo 105 da Lei de Execuções Penais, que condiciona a expedição de guia de recolhimento ao trânsito em julgado da “sentença que aplicar pena privativa de liberdade”.
Não há margem para qualquer tipo de interpretação contrária ao texto legal ― seja com base no direito comparado ou mesmo buscando suporte em uma tal “efetividade da função jurisdicional penal” ―, a menos que os artigos 283 do CPP e 105 da LEP fossem declarados inconstitucionais. Dessa forma, a decisão do STF ignorou a legislação vigente a pretexto de “interpretar” um preceito constitucional que já fora disciplinado pela legislação infraconstitucional. Como não houve qualquer menção sobre a inconstitucionalidade destes dispositivos, o julgamento foi flagrante e irremediavelmente contrário à lei.
A partir dessas obviedades, ficam claras as razões por que esta parece ser a pior decisão já tomada pela Corte. Fica nítido, também, que talvez seja o precedente mais perigoso de sua história. Talvez, pois, conforme se percebe diante da escalada recursal do caso concreto, a bola passará pelos Tribunais de segunda instância e, ao final, estará com o Superior Tribunal de Justiça.
Explica-se. Vimos que, diante de acórdão penal condenatório proferido em recurso de apelação pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir a execução prematura da pena de prisão. Trata-se, porém, de mero (ilegal e equivocado) precedente jurisprudencial, cujos efeitos ficarão restritos ao caso concreto.
O STF simplesmente chancelou uma decisão arbitrária do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. A Corte não dispõe de meios ― tal qual poderia se verificar no exercício de controle abstrato de constitucionalidade ou na edição de súmula vinculante ― para fazer com que esse entendimento seja adotado obrigatoriamente em segunda instância e no Superior Tribunal de Justiça. Tampouco à acusação são disponibilizados mecanismos processuais ― tais como a reclamação ou o próprio Habeas Corpus ― para fazer com que sua demanda pegue um atalho até a jurisdição da Corte, devendo aguardar o julgamento de recurso extraordinário.
Todo estudante no primeiro ano da graduação aprende que, em nosso ordenamento jurídico, a fonte principal do direito é a lei: e os artigos 283 do CPP e 105 da LEP permanecem válidos, vigentes e eficazes. É de rigor, portanto, que sejam aplicados por todos os juízes e Tribunais até que sejam devidamente revogados ou tenham sua inconstitucionalidade declarada!
Prosperando esse estado de normalidade, a execução provisória da pena não encontrará terreno fértil em nosso ordenamento jurídico. Isso, porque o STF atuará como mero ratificador ― via de regra no julgamento de Habeas Corpus impetrado pelos condenados ― das decisões antecipatórias da prisão, que deverão ser proferidas nas instâncias inferiores. Logo, a Corte tende a ficar ilhada em seu entendimento caso os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais façam o óbvio: apliquem a lei (fonte primária), em detrimento a entendimento jurisprudencial divergente e equivocado (fonte secundária).
Ainda assim, caso os Tribunais de segunda instância associem seu entendimento à arbitrariedade suprema, caberá imediatamente à Defesa interposição de recurso especial ao STJ, concomitantemente à apresentação de medida cautelar autônoma para concessão de efeito suspensivo, sem prejuízo da impetração de Habeas Corpus. ([3])
Desse modo, competirá primeiramente aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais a decisão sobre a execução prematura da pena e consequente expedição (ilegal) de mandado de prisão, o que ― na sequência e a prevalecer o óbvio ― deverá ser corrigido imediatamente pelo Superior Tribunal de Justiça em habeas corpus ou em medida cautelar de outorga de efeito suspensivo ao recurso especial.
Engana-se, portanto, quem pensa que o novo entendimento poderia implicar redução dos recursos criminais e maior democratização na aplicação das penas criminais. Fato é que, caso a nova orientação se reproduza em nosso cotidiano processual, haverá aumento expressivo no número de Habeas Corpus impetrados e elevação quiçá ao dobro do número de recursos criminais (em função das tais medidas cautelares de outorga de efeito suspensivo). Por consequência, estaremos também diante de seletividade ainda maior no sistema prisional: ou alguém duvida de que o tal efeito suspensivo será concedido de acordo com a cara do freguês?
Em suma, o que temos é um mero precedente. Equivocado e perigoso, mas cujo alcance ainda não pode ser previsto com absoluta clareza. Em tempos cujos direitos e garantias fundamentais estão sendo lavados a jato, todo cuidado é pouco e toda mobilização pelo direito de defesa é bem vinda. Divulguemos, pois, aos quatro cantos ― e em todas as instâncias ― os artigos 283 do CPP e 105 da LEP!
A prosperar o óbvio, o texto de lei, a letra viva do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal ― que não dão margem para qualquer interpretação senão a literal ― o julgamento do HC 126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal poderá ser legado ao merecido esquecimento. Com a palavra os Tribunais de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e, especialmente, o Superior Tribunal de Justiça.
Autor: Fernando Hideo I. Lacerda é advogado criminal associado ao escritório Zulaiê Cobra Ribeiro Advogados, professor de Direito Penal e Processual Penal. Doutorando em Direito Processual Penal pela PUC-SP e mestre em Direito Processual Penal pela mesma instituição.