Autor: Laís Gaspary (*)
Em recente decisão, os ministros da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, deram provimento ao Recurso Especial 1.634.046/RS, nos termos do voto do ministro Marco Aurélio Bellizze, restando vencida a ministra Nancy Andrighi, que negava provimento ao REsp.
O objeto da discussão no recurso não se restringia à sujeição à recuperação judicial do crédito trabalhista constituído antes do pedido de recuperação, mas, sim, quanto ao momento de constituição desse crédito. A discussão era eminentemente de direito: em que momento se constitui o crédito trabalhista decorrente de serviços prestados antes do pedido de recuperação judicial?
Ao apreciar pedido de habilitação de crédito trabalhista, a magistrada do juízo da recuperação judicial, com apoio no parecer do Ministério Público estadual, julgou extinta a habilitação de crédito. Nas suas razões de decidir, relatou que a ação de recuperação judicial fora proposta em 12/3/2014, enquanto que o habilitante teve sentenciado seu crédito em reclamatória trabalhista em 26/5/2014, posterior, portanto, ao pedido de recuperação judicial.
Para o juízo de primeira instância, não se mostra necessário nem determinante analisar a data do contrato de trabalho firmado com a recuperanda — se anterior ou posterior ao ajuizamento da ação de recuperação —, mas, sim, o fato de que, quando do pedido de recuperação, não existia o crédito postulado no incidente de habilitação, que é decorrente de sentença judicial proferida após o ajuizamento da recuperação judicial.
A questão foi submetida ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ao apreciar o recurso interposto pela empresa em recuperação, os desembargadores reafirmaram o entendimento no sentido de que o crédito trabalhista constitui-se com a sentença, e, por essa razão, o crédito que se pretendia habilitar não se sujeitava ao processo de recuperação. Em decisão de abril de 2016, à unanimidade, negaram provimento ao recurso.
Foi interposto recurso especial. Nas razões, argumentou-se que o artigo 49 da Lei 11.101/2005 dispõe que sujeitam-se a recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. Considerando-se que o crédito trabalhista que se pretendia habilitar decorria de serviços prestados antes do pedido de recuperação judicial, consequentemente esse crédito já existia à época do pedido de recuperação. Nesse sentido, a tese defendida era a de que o crédito trabalhista, para fins de sujeição ao processo de recuperação judicial, constitui-se no momento da prestação do serviço, e não no momento da sentença que apenas o declara.
A tese era reforçada pelo disposto no artigo 6º, parágrafo 3º da LRF, que autoriza expressamente a reserva da importância que se entende devida e, uma vez reconhecido líquido o direito, a inclusão do crédito na classe correspondente. Se o crédito não se sujeita à recuperação judicial, então ele é extraconcursal. Todavia, tratando sobre o crédito trabalhista que seria considerado extraconcursal, a Lei 11.101/2005 é clara ao dispor no seu artigo 84 que serão considerados extraconcursais os créditos derivados da legislação do trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência, ou, no caso, após o pedido de recuperação judicial.
Ao apreciar a questão pela primeira vez, o STJ firmou entendimento no sentido de que o crédito trabalhista que tem origem na prestação de serviços, em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, deve sujeitar-se a ela, pouco importando se a prolação da sentença pela Justiça do Trabalho se deu em momento posterior ao pedido de recuperação judicial. A decisão, ao analisar a questão específica, entendeu que o crédito trabalhista se constitui a partir da prestação do serviço, e não da sentença trabalhista, pois esta apenas o declara.
Após a prolação do voto pela ministra Nancy Andrighi negando provimento ao recurso, o ministro Marco Aurélio Bellizze pediu vista do processo sob o argumento de que, “na oportunidade, pediu-se vista para melhor análise do caso, notadamente em atenção à potencial repercussão da matéria no âmbito dos conflitos de competência que aportam a esta Corte de Justiça, e, porque, em minha compreensão, sobre a específica questão controvertida, consistente em saber o exato momento em que o crédito trabalhista é constituído, não há, até o presente momento, deliberação do Superior Tribunal de Justiça”.
Nas palavras do ministro, “a partir do momento em que o empregado presta seu labor, assume a condição de credor (em relação às correlatas verbas trabalhistas) de seu empregador, que, no final do respectivo mês, deve efetivar sua contraprestação. Uma sentença que reconheça o direito do trabalhador em relação à aludida verba trabalhista certamente não constitui este crédito, apenas o declara. E, se este crédito foi constituído em momento anterior ao pedido de recuperação judicial, aos seus efeitos se encontra submetido, inarredavelmente”.
O julgamento do recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça encerra a discussão sobre a sujeição do crédito trabalhista ao processo de recuperação judicial e põe fim à saga do credor trabalhista pela satisfação do seu crédito. Até o pronunciamento pelo STJ, uma vez transitada em julgado a sentença trabalhista, o credor promovia a habilitação do seu crédito no processo de recuperação judicial.
Ocorre que, em sendo a sentença trabalhista posterior à data do pedido de recuperação, tal habilitação era extinta pelo juízo da recuperação judicial por entender que o crédito não se sujeitava ao processo recuperacional. Entendimento corroborado pelo Tribunal de Justiça gaúcho. Com a negativa do juízo da recuperação, o credor retornava à Justiça do Trabalho no intuito de receber seu crédito e obtinha a mesma negativa da Justiça especializada, com fulcro no artigo 6º e parágrafos da LRF, que determina que “terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida” e “uma vez reconhecido líquido o direito, será o crédito incluído na classe própria”.
Consequência disso, o credor trabalhista a quem a lei tratou como preferencial não tinha seu crédito satisfeito, uma vez que não havia consenso quanto ao momento de constituição do crédito trabalhista para fins de sujeição ao processo de recuperação judicial, tampouco quanto ao juízo competente para a execução do crédito.
Prosseguindo o julgamento após o pedido de vista do ministro Marco Aurélio Bellizze, pediu vista o ministro Moura Ribeiro, que proferiu voto acompanhando a divergência apresentada. Em seu voto, ressaltou que “a constituição do crédito trabalhista se dá na ocasião da prestação do trabalho. É ali que nasce o direito à percepção do salário e de seus consectários. O fato de o trabalhador precisar se socorrer ao Poder Judiciário para ver essa situação reconhecida não altera esse panorama. A sentença declara o direito e o quantifica, não o cria. Logo, incide ao caso o disposto no art. 49 da Lei nº11.101/2005, no sentido de que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial serão abrangidos por esse regime especial”. A divergência inaugurada pelo ministro Marco Aurélio Bellizze ainda foi acompanhada pelos ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.
A decisão marca um importante avanço na Lei de Falências, uma vez que agrega segurança jurídica não só aos credores trabalhistas como também à empresa em recuperação judicial. Por muito tempo, a ausência de posicionamento do STJ quanto ao momento de constituição do crédito trabalhista foi capaz de impor a extraconcursalidade de créditos trabalhistas que deveriam se sujeitar ao processo de recuperação. Tornar um crédito extraconcursal significa que ele deve ser pago com precedência à ordem de pagamentos do artigo 83 da LRF. E isso pode ser determinante para a superação ou não da crise pela empresa.
Com o julgamento do recurso e enfrentamento da matéria pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, os reflexos puderam ser sentidos no TJ-RS, o qual mantinha até então um posicionamento bastante consolidado no sentido de que a constituição do crédito trabalhista, para fins de sujeição a recuperação judicial, dependia da sentença judicial.
Em implementação ao instituto do padrão decisório com previsão no artigo 927 do Código de Processo Civil, ao julgar o Agravo de Instrumento 70074026659, o relator do recurso chama a atenção para a sua mudança de posicionamento em relação à matéria e, para tanto, cita o recente julgamento do Recurso Especial 1.634.046/RS pelo Superior Tribunal de Justiça.
Ao estabelecer o padrão decisório no caso de habilitação de créditos trabalhistas em processos de recuperação judicial, o desembargador relator do recurso promove a segurança jurídica necessária capaz de beneficiar a todas as partes envolvidas no processo de gestão de crise.
Autor: Laís Gaspary é sócia-fundadora do escritório Gaspary & Cruz Administração de Insolvências, administradora judicial em processos de recuperação judicial e mestranda em Direito da Empresa e dos Negócios pela Unisinos.