Autora: Elisa Cruz (*)
Talvez venha a chocar, mas é necessária uma afirmação inicial: a Defensoria Pública não é mais apenas o “advogado dos pobres”.
Criada para suprir a impossibilidade de pessoas participarem de processos judiciais por falta de recursos para pagar advogados e as despesas do processo, a Defensoria Pública, nos últimos anos, mas em especial em 2014, ganhou nova forma pelo constituinte ao lhe atribuir a promoção dos direitos humanos por meio da Emenda Constitucional 80/2014. Isso sem contar com as alterações do ano de 2009 na lei orgânica nacional da Defensoria, que já determinava esse mesmo papel.
Essa mudança da Defensoria Pública no caminho de uma instituição humanizada parte da ideia de que, no mundo atual, não apenas os hipossuficientes econômicos (“pobres”) merecem a proteção do Estado. Mais do que isso, entendeu o Estado brasileiro que caberia a ele proporcionar a defesa e a proteção dos direitos a todos os grupos que entendesse como vulneráveis, isto é, pessoas e grupos cujos direitos fossem tão peculiares e sensíveis que justificassem normas diferenciadas de proteção.
A Constituição de 1988 elegeu cinco desses grupos: mulheres, idosos, pessoas com deficiência, índios e crianças e adolescentes, e em favor de todos pode a Defensoria Pública atuar, tanto para a defesa de um direito individual, comum ao dia a dia, como na defesa de direitos pertencentes ao grupo e como se manifestam na sociedade.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro estrutura-se na forma prevista pela Constituição, possuindo órgãos que cuidam especialmente dos direitos de idosos e pessoas com deficiência (Núcleo de Direitos Humanos), da mulher (Núcleo de Violência Doméstica) e de crianças e adolescentes (Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente).
Muito embora não se duvide da possibilidade de a Defensoria agir em favor de mulheres, idosos ou pessoas com deficiência, no campo da infância e juventude não há consenso judicial.
Se por um lado, é inconteste a atuação de Defensores em favor de pais ou outras pessoas em relação a crianças e adolescentes, como ocorre em ações de guarda, adoção etc., quando discutimos a defesa da criança e do adolescente e o resguardo de seus direitos previstos nas leis e na Constituição, a solução é bem diferente.
Como já falado, a Constituição de 1988 atribui à Defensoria o papel de defesa dos direitos humanos, no qual, por certo, inclui-se o direito de crianças e adolescentes, além de conferir a todas as pessoas em território nacional o direito de participar ativamente de processo cujas consequência recaiam sobre si. Também a Convenção de Direitos da Criança, assinada pelo Brasil em 1990, determina a defesa da criança e do adolescente por advogado ou defensor próprio, e o ECA prevê tanto o direito de participação ativa da criança e do adolescente quanto aos seus interesses como coloca a Defensoria ao lado do Poder Judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar, município, estados, União Federal etc. como obrigados a cuidar pelo respeito dos direitos infantojuvenis e a adotar todas as medidas possíveis, judiciais ou não (artigos 86 e 88, V e VI, do ECA).
A partir da lei, somos forçados a concluir que pode o defensor público tornar-se defensor apenas da criança e do adolescente em todo e qualquer processo que ele tenha interesse. Ao fazer isso, caberá ao defensor escutar atentamente à criança ou ao adolescente, fazê-lo entender o que é possível realizar para atender aos seus desejos e expectativas e combater eventuais ilegalidades que venham a ser praticadas.
As possibilidades de trabalho são inúmeras e podem ser encontradas nos mais variados casos com os quais lidamos todos os dias: uma criança que é retirada dos pais porque são pessoas de poucos recursos e levada para outro município ou estado, mas que permanece manifestando seu desejo de ficar com os pais que, apesar dos problemas, a tratavam com carinho e atenção, mas, que, contudo, não tem a chance de ser ouvida pelo juiz. Esse seria um grande exemplo de atuação do defensor pela criança, que iria buscar o direito de essa criança ser ouvida pelo juiz e, quem sabe, retornar à família que ama.
Da mesma forma, deve o defensor tomar todas as medidas jurídicas cabíveis para prevenir a ocorrência de tortura e agressões contra crianças em acolhimento (“abrigadas”), simplesmente porque não se admite no Brasil a violação a integridade psicofísica.
Esses dois exemplos servem apenas para ilustrar as possibilidades de atuação da Defensoria Pública em favor de crianças e adolescentes e que, mais do que estarem de acordo com a lei, é coerente com a visão de que somos todos seres humanos e pessoas dignas de sermos tratadas com respeito. A dignidade e a humanidade é uma característica inerente a todos nós, independentemente da idade, cor, religião, crença ou origem.
Nada justifica que crianças e adolescentes não sejam ouvidas ou não participem de processos judiciais que envolvam elas mesmas. Negar esse direito é, de certa forma, negar que são pessoas iguais a nós.
Isso não significa tratarmos a elas como adultas. O certo é deixarmos para trás o entendimento de que crianças são “pequenos adultos” ou que nada sabem pela sua idade, para considerá-las pessoas que sabem o tanto que a sua idade permite, e que tem a capacidade de entender o mundo ao seu redor e fazer escolhas. Ao reconhecermos essa nova visão, entendemos a situação especial em elas se encontram, o seu progressivo desenvolvimento e as razões porque a Constituição de 1988 determinou a sua integral proteção, nela compreendida o direito de ser ouvida e de ter a independência e autonomia que a idade e capacidade psíquica permitirem.
A proposta atual da Defensoria Pública é exatamente a de cumprir o que está na Constituição e impor o respeito dos direitos de crianças e adolescentes, permitindo-lhes a participação em processos judiciais e o direito de ter seus interesses devidamente protegidos.
Autora: Elisa Cruz é subcoordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cdedica) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.