Defensoria Pública e a luta contra privatização do acesso à Justiça

André Luís Machado de Castro*

Uma das principais conquistas sociais nos Estados Democráticos é a constitucionalização do direito de acesso à justiça, com o correlato dever do Poder Público de prestar assistência jurídica integral e gratuita àqueles que não puderem pagar honorários de advogado e custas judiciais. Afinal, como bem ressaltou Nabuco de Araújo, de nada adianta ter direitos se não for possível exercitá-los.

A Constituição brasileira consagra normas das mais avançadas do mundo ao estabelecer que o Estado prestará assistência jurídica aos necessitados através de uma Instituição especificamente criada para esse fim: a Defensoria Pública, composta por profissionais concursados e investidos de garantias (como estabilidade e inamovibilidade), prerrogativas (poder de requisição, vista pessoal, acesso irrestrito a presos, inquéritos e processos judiciais ou administrativos, etc.), deveres, proibições, impedimentos e, sobretudo, responsabilidades funcionais.

Enfim, atributos que conferem ao defensor público sua independência funcional, característica mais importante do cargo e indispensável à missão pública de prestar assistência jurídica às pessoas carentes.

O defensor público não deve favores a ninguém pelo seu emprego. Sua investidura decorre de aprovação em rigoroso concurso público de provas e títulos. No último certame para o cargo de defensor público fluminense, mais de 6 mil candidatos concorreram às 74 vagas oferecidas. Uma vez nomeado, o defensor público é submetido a período de três anos de estágio confirmatório, sendo orientado por profissionais mais experientes.

Confirmado no cargo, ele só poderá ser demitido nos casos previstos em lei, asseguradas a ampla defesa e o contraditório. No exercício de sua função, o defensor público goza de efetiva independência também em suas manifestações. Suas teses jurídicas, estratégias defensivas, etc. não estão sujeitas a ingerências de qualquer outra autoridade pública, nem mesmo do Chefe Institucional (Defensor Público-Geral). Com a garantia da inamovibilidade, o defensor tem a segurança de não vir a ser removido, caso sua atuação venha a desagradar setores influentes e poderosos da sociedade (como nos casos de ações contra o próprio Poder Público e, inclusive, contra os ocupantes de cargos públicos que agem em desacordo com a lei).

Graças a essas verdadeiras conquistas sociais, o Brasil é o único país das Américas onde a Defensoria Pública atua inclusive contra o próprio Estado, a exemplo das ações civis públicas, ações populares ou as muitas demandas individuais que cobram do Poder Público desde o fornecimento remédios para doentes crônicos até o acesso ao ensino público.

Lamentavelmente, passados quase 15 anos desde a promulgação da Carta Constitucional, as autoridades públicas de diversos Estados e da União ainda não estruturaram adequadamente as Defensorias Públicas. O caso do Estado de São Paulo é o mais grave, pois até hoje a Defensoria Pública sequer foi criada! Para disfarçar essa omissão inconstitucional, o Estado paulista desloca um grupo de procuradores (advogados do Estado) para defenderem os necessitados! Ainda, há anos existe um convênio com a OAB-SP através do qual o Estado remunera advogados indicados aleatoriamente (ou melhor, sem critérios) para promover a assistência jurídica.

Estudos de notáveis juristas apontam as inconveniências e, sobretudo, a flagrante inconstitucionalidade desse modelo de convênios – em detrimento das Defensorias Públicas. A Constituição brasileira, optando pela Defensoria Publica, não autorizou o Poder Público a delegar essa função – garantidora de direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana – a particulares.

Ademais, o modelo de convênio, adotado pelo Estado de São Paulo, é muito mais oneroso que a manutenção de uma Defensoria Pública organizada e bem estruturada. A dotação orçamentária para o Fundo de Assistência Judiciária (convênio com OAB-SP) está prevista em R$ 144.820.783,53 (cento e quarenta e quatro milhões de reais).

Por sua vez, o orçamento do Estado do Rio de Janeiro para 2003 prevê gastos totais da ordem de R$ 159.029.312,00 (quase 160 milhões de reais) para a Defensoria Pública fluminense (despesas de pessoal, custeio, investimentos etc.). Ocorre que a Defensoria Pública/RJ atendeu, só no ano passado, um número muito maior de pessoas (1,6 milhões de atendimentos), sendo certo que a qualidade de seus serviços já pôde ser aferida por diversos órgãos públicos e entidades nacionais e internacionais (como a Inter-American Bar Association).

A despeito de tudo isso (ou em razão de tudo isso), um segmento da advocacia brasileira insiste na tecla dos convênios, especialmente como forma de ampliar o saturado mercado profissional dos advogados. É exemplo disso o recente convênio celebrado entre a OAB/RJ e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região para que este venha a remunerar os advogados que atuariam nos juizados especiais federais, fazendo as vezes de defensores públicos da União.

De acordo com a matéria publicada no Jornal do Commércio, de 25 de fevereiro deste ano, os critérios que serão adotados pela OAB/RJ para selecionar os advogados dativos serão: não ter débitos com a OAB (vale dizer, estar apto a votar nas próximas eleições), ter grafia correta (alfabetização) e noções básicas de direito.

É verdade que o número de defensores públicos da União no Rio de Janeiro (14 profissionais!) é muito pequeno, mas com esses recursos previstos pela Justiça Federal para atender ao convênio, poderiam ser contratados mais de 100 defensores públicos da União, por concurso público.

Note-se que, além da carência de defensores públicos, o Brasil também sofre com a carência de juízes, promotores públicos, médicos etc. Nem por isso seria razoável que se firmasse convênios com a OAB ou os Conselhos de Medicina para, em detrimento dos concursos públicos, se disseminar a contratação a título precário de profissionais, sem os necessários predicados para o exercício da função, bem como suas prerrogativas.

Os convênios constituem, portanto, um grande retrocesso em relação às conquistas da Constituição de 1988 e à garantia do direito fundamental de acesso à justiça. Em última análise, trata-se da privatização (sem licitação) dos serviços públicos de assistência jurídica. As políticas públicas voltadas para a promoção do acesso à justiça devem, por força constitucional, passar pela Defensoria Pública, respeitando os princípios da eficiência e moralidade administrativa, de modo que os recursos públicos sejam geridos de forma transparente e atendendo cada vez melhor a população necessitada.

André Luís Machado de Castro é presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro e vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos

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