Defensoria Pública é cláusula pétrea da Constituição

Por Haman Tabosa de Moraes e Córdova

A Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, possui status de cláusula pétrea no sistema jurídico nacional. Esta é a premissa a ser defendida nesta oportunidade, notadamente por consistir em um instrumento garantidor da obrigação estatal de prestar assistência jurídica integral e gratuita em favor das pessoas necessitadas, conforme dispõe o artigo 5º, LXXIV, em combinação harmônica com o inciso IV, § 4º, do art. 60, e ainda, com o art. 134, todos da Carta da República.

Embora a doutrina e a jurisprudência cuidem de outras espécies de limitações ao poder de reforma do texto da Lei Maior, a saber, temporais, circunstanciais e materiais, dar-se-á especial atenção a estas últimas para efeito do que ora se pretende discorrer.

Sustenta-se e defende-se, portanto, que a Defensoria Pública, inserida de forma estratégica pelo constituinte no citado art. 134 da Carta de 1988, integra o seu núcleo essencial ou imodificável justamente por inserir-se dentre as garantias individuais — fora do catálogo do art. 5º — protegidas de qualquer proposta de emenda à Constituição que tenha por objeto sua supressão ou mesmo redução do seu alcance por obra do Poder Constituinte de Reforma.

Ensina José Afonso da Silva, acerca das limitações matérias explícitas[1], que:

“A Constituição, como dissemos antes, ampliou o núcleo explicitamente imodificável na via da emenda, definindo no art. 60, § 4º, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado, o voto direito, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais.

(…)

A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da federação, ou do voto direito, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para a sua abolição.”

A importância de se preservar a estabilidade do Estado também ganha sua real dimensão nas palavras de Adriano Sant’ Ana Pedra[2], que enriquece seu texto com o contexto histórico em que se deu a promulgação da Carta de Outubro:

“Dessa forma, quando a Constituição dificulta e até mesmo proíbe a produção de suas emendas, é porque está a pugnar por sua própria estabilidade. É o que ocorre com a atual Constituição brasileira. A Carta Magna de 1988 é o coroamento jurídico-formal da superação do movimento armado de 1964, com caráter ideológico de centrado elitismo social e instrumentação por via das Forças Armadas, o que persistiu por 20 anos. Assim, o constituinte de 1987-1988 tinha o desafio de implantar um Estado que fosse a antítese da ditadura. Além disso, o constituinte teve receio de deixar certas matérias a cargo do legislador ordinário, que procurou ainda dificultar a função reformadora da própria Constituição.”

Nessa esteira, os artigos 5º, LXXIV, e 134 da Lei Maior se complementam de tal maneira que formam uma só garantia fundamental em favor dos necessitados à assistência jurídica integral e gratuita, somente sendo passível de alteração de seu conteúdo se esta objetivar, única e exclusivamente, a potencialização de seu alcance e de seus efeitos, notadamente em razão da busca permanente que se deve ter para que haja uma sensível redução das discrepâncias econômicas entre as camadas sociais, em nível nacional.

Daí porque, a título exemplificativo, é perfeitamente compreensível que o Poder Constituinte de Reforma, ao fazer promulgar a Emenda Constitucional 45/2004[3], não tenha sido impedido de fazê-lo por força das limitações materiais explícitas de que ora se cuida, haja vista que as modificações trazidas ao texto constitucional em nada reduziram o alcance da garantia individual que representa a Defensoria Pública, mas muito antes ao contrário, aperfeiçoaram seu funcionamento e potencializaram sua força ao conceder às Defensorias Públicas estaduais autonomia funcional e administrativa, além de permitir-lhes o encaminhamento de suas propostas orçamentárias diretamente ao respectivo Poder Legislativo.[4]

Referida autonomia, introduzida no § 2º do art. 134, muito longe de abolir ou restringir a garantia da assistência jurídica gratuita assegurada pelo art. 5º, LXXIV da Carta, vem permitindo aos estados-membros fortalecer e estruturar suas Defensorias Públicas, possibilitando-lhes, gradativamente, alcançar os mais distantes municípios e levar justiça social a dezenas de milhões de brasileiros por força da otimização da gestão administrativa e dos recursos orçamentários, destinados exclusivamente ao bom funcionamento da Instituição e geridos pelos próprios defensores públicos gerais que, eleitos pela carreira, melhor conhecem a realidade, as deficiências e os desafios institucionais. A propósito, a Defensoria Pública da União caminha na mesma direção e clama pelo mesmo tratamento constitucional.

Diversamente, se eventualmente for proposta, no Congresso Nacional, alguma PEC que pretenda abolir ou mesmo reduzir o alcance do conteúdo normativo atualmente disposto em seu texto acerca dos temas “Defensoria Pública e assistência jurídica integral e gratuita estatal”, estar-se-ia diante de flagrante ameaça ao núcleo intangível da Carta da República de 1988, devendo, pois, ser imediatamente obstaculizada no âmbito do próprio Congresso Nacional ou, em casos extremos, pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de decisão irrecorrível que impeça de imediato sua tramitação, forte na limitação material expressa prevista no referido art. 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior.

Ensina o professor Paulo Bonavides, fazendo sua comparação entre o Poder Constituinte originário e as limitações impostas ao Poder Constituinte derivado — a qual se pode tomar por empréstimo e aplicar, por conseguinte, a toda e qualquer tentativa de se desrespeitar o núcleo essencial imutável do Estado onde se encontra a Defensoria Pública e a garantia individual à assistência jurídica integral e gratuita — o que segue:

“O primeiro, entendido como um poder político fora da Constituição e acima desta, de exercício excepcional, reservado a horas cruciais no destino de cada povo ou na vida das instituições; o segundo como poder jurídico, um poder menor, de exercício normal, achando-se contido juridicamente na Constituição e sendo de natureza limitado. Não poderá ele sobrepor-se assim ao texto constitucional. É óbvio, pois, que a reforma da Constituição nessa última hipótese só se fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio figurino constitucional; o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma, verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional[5].”

Assim, a opção do constituinte originário no sentido de fazer da Defensoria Pública o instrumental necessário à real e efetiva materialização da garantia prevista no multicitado inciso LXXIV do art. 5º, deve ser rememorada todos os dias, cabendo às autoridades políticas, seja nos estados, seja no DF ou na União Federal, o estabelecimento de metas para estruturá-la adequadamente, a fim de que a Instituição consiga atender de forma suficiente a população de baixa renda deste país.

Querer alterar essa opção, deturpá-la ou mesmo olvidá-la, representa um golpe contra a ordem constitucional, não havendo outro caminho senão o de se dar cumprimento à ordem emanada da Carta Magna, consistente no enfrentamento do problema da precariedade da assistência jurídica estatal, estruturando-se adequadamente a Instituição Defensoria Pública para que funcione a contento, não se permitindo que essas pessoas, humildes, continuem sendo mal informadas, mal orientadas ou mesmo enganadas em seus direitos em razão da ausência de cobertura institucional na maior parte deste país.

Desta forma, reafirma-se à exaustão: a Defensoria Pública e sua condição de cláusula pétrea determinada pelo constituinte originário exigem dos Poderes Constituídos obediência ao seu conteúdo normativo e ao seu significado constitucional, garantidor do acesso à Justiça por parte da população mais humilde, em estrita obediência não apenas aos dispositivos constitucionais já mencionados, mas, ainda, ao disposto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, que consagra entre nós o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, base deste Estado Democrático de Direito.

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[1] AFONSO DA SILVA, José. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO. 33ª Edição. São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 67.

[2] PEDRA, Adriano Sant’Ana. A CONSTITUIÇÃO VIVA – Poder Constituinte Permanente e Cláusulas Pétreas. 1ª ed. Belo Horizonte: Ed. Mandamentos, 2005, p. 88.

[3] A Emenda Constitucional n.º 45 ficou conhecida durante sua discussão no Congresso Nacional como “A PEC da Reforma do Judiciário” e levou mais de 10 anos para ser aprovada.

[4] BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Art. 134, § 2º – “Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.”

[5] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros Editores, 2011, p. 201/202.

Haman Tabosa de Moraes e Córdova é defensor público de carreira e atual Defensor Público-Geral Federal.

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