Por João Marcos Buch
“Doutor, não tenho advogado” – o réu, acusado de roubo, jovem, morador de rua, viciado em crack dizia ao juiz que não tinha conversado com advogado algum e que tinha várias testemunhas que poderiam provar que não praticara o crime, que estava longe do local na ocasião.
“Mas e o seu defensor presente nesta audiência?” – o juiz apontava para o advogado, defensor dativo nomeado com base na Lei Complementar do Estado de Santa Catarina 155/97, que sustenta convênio do Estado com a OAB para que advogados façam as vezes do defensor público.
“Nunca o vi antes” – arrematou o réu.
“Doutor” – agora o defensor interferia – “não tive como sair do meu escritório para ir ao presídio. Muito serviço, o senhor sabe.”
“Não, não sei, doutor” – respondeu o juiz – “o senhor é o defensor do réu e deveria no mínimo ter conversado com ele antes no presídio, procurado a sua família, as testemunhas que diz ter.”
A audiência era de instrução e julgamento, mas o juiz suspendeu o ato, destituiu o defensor, nomeou outro, anulou o processo a partir da citação, relaxou a prisão por excesso de prazo na formação da culpa e entregou cópia ao réu do nome, endereço e telefone profissionais do novo defensor.
A situação acima narrada faz parte da praxe diária da Justiça Comum do Estado de Santa Catarina. Prevista na Constituição Federal, como instituição essencial à Justiça (artigo 134), a Defensoria Pública, mesmo quase vinte e três anos a pós a promulgação da Magna Carta, diversamente de todas as outras unidades da federação, ainda não se fez realidade no estado barriga verde. O resultado é que os necessitados mencionados no artigo 134, caput, da Constituição continuam nesse estado tão ou mais necessitados do que antes, em todas as áreas jurídicas, civis, fazendárias, familiares, coletivas, agravando-se na penal, destino último da roda da miséria de dignidade que os flagela.
Nesta quadra da história, ultrapassado está o momento de fundamentação da Constituição. Cumpre levá-la a sério, protegê-la e afirmá-la. Isso, e apenas isso, deveria bastar para a superação de todos os obstáculos e contingências que impedem a satisfação do comando constitucional em Santa Catarina. Porém, como a legitimidade do Estado se fundamenta no poder político, que deriva da crença na racionalidade do comportamento conforme a lei, a sociedade precisa acreditar que há um fundamento racional/legal que rege seus representantes.
Aliás, há mais de 30 anos, ao discorrer sobre reorganização das bases da convivências social e da indissociável reforma do Estado, o filósofo político italiano Norberto Bobbio (Estado Governo e Sociedade. RJ: Editora Paz e Terra) já ensinava que a razão das instituições políticas é a de responder às demandas da sociedade. Esta sociedade, transformada pela resposta dada, outra demanda apresenta, cabendo às instituições novamente responder e assim por diante. Há um processo de mudança contínua da sociedade e por óbvio das instituições políticas. Havendo correspondência entre as demandas e respostas, a mudança é gradual. Se as demandas não forem respondidas satisfatoriamente, a mudança é brusca e pode acabar em completa modificação das instituições políticas vigentes. Em razão disso, para além dos fundamentos constitucionais, é preciso lembrar as conseqüências práticas da ausência de Defensoria Pública no Estado de Santa Catarina.
É fato notório que o principal obstáculo à Defensoria vem da OAB-SC, sob o argumento de que nos moldes como existe, a defesa dativa alcança a todas as Comarcas, tendo em seus quadros milhares de advogados. A questão é que a Defensoria, conforme a Constituição, atua em várias outras frentes, como órgão distinto e independente, alcançando não só as searas individuais forenses como também lides coletivas e situações extrajudiciais. Além disso, muitas vezes o defensor dativo é recém-egresso da universidade e, após dois ou três anos, acaba por comunicar que está se desligando do convênio. Sem generalizações, isso acaba deixando aos mais carentes, muitas vezes, um profissional inexperiente.
Por outro lado, é preciso registrar que a remuneração pelo convênio da OAB é feita com base em uma tabela de Unidade de Referência de Honorários (URH), que variam de 10 (550 reais) a 20 URHs (1,1 mil reais) por processo. O valor é muito inferior ao que o advogado ganha com clientes particulares, o que propicia em muitos casos que o advogado dativo, que também tem uma carteira de clientes, dê prioridade aos particulares. Além disso, do repasse de cerca de 1,2 milhão de reais por mês que o estado faz à OAB para o pagamento dos advogados, 10% são retidos como indenização pelos gastos administrativos.
A criação de uma Defensoria Pública em Santa Catarina, portanto, receberia por certo o valor que já é repassado à OAB, como início orçamentário. Posteriormente, com o fortalecimento e crescimento do órgão, dotação maior seria destinada, é claro. Ainda é certo que, com o passar do tempo, consolidando-se a instituição, o quadro estabilizar-se-ia e o custo também acabaria por se estabilizar.
O Estado contemporâneo tem se colocado no centro e principal papel de construção social. Seu crescimento, adentrando em praticamente todas as camadas do homem, resulta em crescentes exigências dos cidadãos, não só no respeito aos direitos individuais, mas na implementação dos direitos sociais. Isso resulta, é claro, em graves problemas de legitimação. E é exatamente por uma questão de legitimidade, nos redutos mais fundamentais dos direitos sociais, onde está a Justiça, que o Estado não pode atuar com base somente na análise econômica do Direito.
Se pretendemos um Estado Democrático de Direito, se pretendemos alcançar um padrão de civilidade onde Justiça significa uma perspectiva ética sobre Direito e Estado, então é preciso com urgência que Santa Catarina acompanhe os outros estados da Federação e respeite os preceitos constitucionais, criando a Defensoria Pública Estadual, com autonomia funcional e administrativa. Os cidadãos catarinenses agradecem.