Autor: Manoel Messias de Sousa (*)
Engana-se quem pensa que o universo das apurações disciplinares de supostos desvios funcionais cometidos por servidores públicos é um simples campo de trivialidades jurídicas. Pois não é mesmo!
Embora no passado se tenha enxergado o processo administrativo disciplinar como uma prática jurídica secundária, imaginando, por exemplo, que as respostas para todas as indagações que surgem na seara disciplinar podiam ser facilmente extraídas de um “manual” ou de um “compêndio de Direito”, hoje a realidade do trabalho das comissões de processo administrativo disciplinar (PAD) em toda a administração pública mostra exatamente o contrário: no âmbito dos PADs, também afloram complexas questões de interpretação, tanto quanto nos demais ramos do Direito, o que exige dos integrantes desses colegiados competência técnica, raciocínio jurídico arguto, prudência e bom senso.
Para ilustrar bem essa assertiva, traz-se à reflexão uma questão ocorrida na prática[1], que demandou a construção de uma solução interpretativa à luz do ordenamento jurídico como um todo, haja vista a inexistência de texto legal disciplinando a hipótese.
Trata-se da situação em que o servidor público acusado da prática de falta funcional, após ser devidamente citado em processo administrativo disciplinar para apresentar defesa escrita no prazo de 10 dias, nos termos do artigo 161, caput, da Lei 8.112/90, simplesmente deixa de contestar os termos do despacho de indiciamento. Mesmo patrocinado por advogado, o acusado limita-se a juntar aos autos do processo administrativo disciplinar no qual se apurava sua responsabilidade um comprovante de pagamento do valor do débito decorrente de danos provocados contra a União.
No caso narrado, resta evidente que não houve refutação do “mérito” do processo, qual seja, a conduta desviante atribuída ao servidor. Em tais situações, é possível falar que houve defesa?
Para melhor compreender a controvérsia aqui colocada, convém que se traga à baila os demais elementos que permeiam o tema.
Todos nós sabemos que o servidor público responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições, e essas sanções podem cumular-se, sendo independentes entre si, como preveem os artigos 121 e 125 da Lei 8.112/90, c/c o artigo 935 do Código Civil, correlatamente.
Pois bem, no caso aqui relatado, o servidor público provocou danos à União, mas não fez composição quanto ao ressarcimento ao erário, pela via adequada, qual seja, a seara civil, como prevê o artigo 122, c/c o artigo 46, ambos da Lei 8.112/90.
Por causa dos danos materiais provocados contra o erário, foi deflagrado também em desfavor desse servidor um processo administrativo disciplinar para apurar eventuais infrações disciplinares. Ocorre que, ao ser citado pela comissão processante para apresentar defesa escrita no prazo de 10 dias, como prevê o artigo 161, caput, da Lei 8.112/90, o acusado não contestou as imputações descritas contra ele no despacho de indiciamento. Limitou-se, como dito antes, no último dia do prazo para apresentar defesa, a juntar o comprovante de pagamento de débito com o erário decorrente do dano provocado contra o ente público federal, talvez imaginando (equivocadamente) que quitando a dívida poderia ficar livre de eventual sanção disciplinar.
Diante dessa situação, pergunta-se: como deve agir a comissão processante? Deve, de imediato, elaborar o relatório final e o encaminhar à autoridade instauradora do PAD, em atenção ao artigo 166, da Lei 8.112/90 ou decretar a revelia do acusado, por deficiência de defesa e solicitar a nomeação de defensor dativo para oferecer defesa escrita?
As leis 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União), e 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (que estabelece normas básicas sobre processo administrativo no âmbito da administração federal), não regulamentam essa situação jurídica.
Por isso, insistimos: como resolver esse incidente processual no âmbito do processo administrativo disciplinar, na fase do artigo 161, da Lei 8.112/90?
Uma coisa é certa: as acusações da administração contra o servidor público esboçadas no despacho de indiciação não foram combatidas. Essa é a realidade que se apresenta diante dos membros da comissão disciplinar.
É nesses momentos cruciais que os membros das comissões de PADs devem demonstrar aquilo que a doutrina especializada chama de bom senso, prudência e capacidade técnica. Se não tiverem essas qualidades, podem acabar cometendo abusos e injustiça, até porque, como ensina o eminente professor Léo da Silva Alves[2], “o poder público, com efeito, não pode enfrentar uma irregularidade praticando outra”.
O ressarcimento de danos com o erário, como todos sabem, deve ocorrer na seara adequada, qual seja, na seara civil, nos termos do artigo 122 da Lei 8.112/90, porque, em sede de processo administrativo disciplinar, não se busca, como finalidade última, a quitação de dívidas com os entes estatais, mas sim a depuração de suposta infração disciplinar. Ou seja, o pagamento de débitos com o erário nos autos do PAD, por si só, não exime o acusado de eventual responsabilidade disciplinar.
Ante uma situação rara como esta aqui relatada, o colegiado disciplinar deve se reunir e deliberar por meio de ata (artigo 152, parágrafo 2º, da Lei 8.112/90) e decidir sobre as consequências jurídicas daí decorrentes no PAD.
A solução desse problema jurídico passa primeiro e necessariamente pela leitura do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que prevê o contraditório e a ampla defesa, em processo judicial e administrativo.
No caso aqui relatado, o acusado não foi citado pela comissão processante para quitar a dívida com a União, e sim se defender das acusações atribuídas a ele no despacho de indiciamento.
O STF, no julgamento do RE 434.059/DF, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, firmou entendimento de que não se admite o “simulacro de defesa”, em sede de processo administrativo disciplinar, como sói acontecer na espécie, já que o acusado não contestou os termos do despacho de indiciamento.
Cumpre registrar, por oportuno, que, no caso, a administração exerceu o controle disciplinar em estrita obediência às normas pertinentes, na medida que (i) constituiu comissão de PAD, (ii) notificou previamente o acusado das imputações atribuídas contra si e para acompanhar pessoalmente ou por meio de procurador constituído a instrução processual do PAD, (iii) foi-lhe facultado oportunidade para produzir provas e contraprovas em seu favor, (iv) foi interrogado e (v) citado para apresentar defesa escrita no prazo de 10 dias a respeito das acusações delimitadas no despacho de indiciamento de forma clara, objetiva e circunstanciada, com o enquadramento legal e as provas correspondentes.
Sucede que, ao se manifestar nos autos, por intermédio de advogados, o acusado limitou-se a juntar aos autos o comprovante de pagamento dos valores correspondentes aos danos provocados contra a União, deixando, no entanto, de rebater as acusações contidas no despacho de indiciamento.
Não resta dúvida de que situações como essa têm o potencial de gerar prejuízos ao arguido, razão pela qual a comissão deve aplicar, por analogia, o teor da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, que afirma: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”, porquanto, ausente defesa stricto sensu.
Ora, como dito antes, não tendo havido impugnação às imputações que foram feitas ao indiciado no despacho de indiciação, fica claro que ele perdeu a oportunidade de invocar elementos de defesa em seu favor, capazes de infirmar ou minorar, ou até mesmo elidir a sua responsabilidade pelos fatos narrados nos autos, na seara disciplinar.
Destarte, em situações tais, não resta outra alternativa para a comissão disciplinar senão agir com certo ativismo, visando dar efetividade aos postulados constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF, artigo 5º, LV), decretando, em consequência, a revelia do indiciado e propor à autoridade instauradora do PAD a nomeação de defensor dativo para o acusado, nos termos do artigo 164, da Lei 8.112/90 e na Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, aplicados aqui por analogia.
A riqueza e a complexidade do “mundo real da vida” sempre estarão a frente da capacidade reguladora do legislador. O surgimento de situações não previstas ou sem solução prévia é uma constante na realidade do Direito, não sendo diferente na seara disciplinar da administração pública.
Finalizando, o caso ilustrado neste artigo demonstra que, não raro, casos difíceis aparecerão e exigirão do profissional do Direito uma visão sistemática e sobretudo principiológica do ordenamento jurídico pátrio.
Autor: Manoel Messias de Sousa é analista do MPU/Apoio Jurídico/Direito, lotado na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, com atuação em processo administrativo disciplinar e sindicância. Bacharel em Direito pela PUC-GO, é pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal e em Direito Constitucional.