Delação anônima não é suficiente para investigação

Por Zulmar Duarte de Oliveira Junior

Escrevemos estas linhas há algum tempo[1], mas decidimos dar-lhes publicidade depois de passados os ventos do furacão que removeu as estruturas da operação cognominada como “Castelo de Areia”.

Isso porque não pretendo justificar a decisão prolatada no Habeas Corpus 137.349, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[2], nem muito menos trabalhar com qualquer situação concreta.

Diversamente disso, tratamos abstratamente da delação anônima, considerando-a como notícia de infração criminal, cuja eficácia deve ser aferida pelo seu conteúdo e elementos que eventualmente lhe acompanhem.

O debate se dá na zona cinzenta de compatibilização entre diversos postulados constitucionais, dentre outros, a dignidade da pessoa humana[3], o resguardo aos sigilos, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, a vedação ao anonimato, a moralidade pública.

Zona cinzenta porque não se trata mais da mecânica aplicação deste (branco) ou daquele princípio (preto), mas daquelas situações de miscigenação entre eles, onde as matizes ora escurecem, ora ficam esquálidas, pela tonalidade com que o princípio entra no quadro posto à apreciação.

Melhor dizendo, no ponto, incidem diversos princípios que mutuamente se amoldam, pela sua densidade respectiva, impondo harmonização.

Bom é dizer, nessa clivagem constitucional, pensamos que a solução conferida atualmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça à matéria é absolutamente adequada. Os precedentes apontam para a irregularidade de uma investigação pautada pela devassa telefônica e fiscal quando arrimada exclusivamente na delação anônima.

Não se propugna, obviamente, o desprezo as denúncias anonimamente ventiladas. Essas sem dúvida são importantes veículos de notícia dos fatos criminosos, sendo que, nem sempre, a forma utilizada visa encobrir uma espúria acusação, mas, por vezes, impedir fundado receio contra represálias.

Noutro giro, o argumento utilizado ad terrorem, de que tal entendimento implicaria no esvaziamento do poder de investigação, mormente em flagrantes delitos, não orça com a realidade, não ultrapassando as fronteiras largas da fantasia. Deixemos para o cinema os hard cases em que a prova não pode ser utilizada por ter a autoridade policial irrompido a cena do crime sem mandado.

Há tanto, pensamos, não se chegou em terras brasileiras a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada — fruits of poisonous tree.

A nosso ver, a denúncia anônima deve ser recebida, processada e conhecida como notícia crime, respaldando o início da investigação (persecutio criminis), mas não pode, todavia, implicar, só por si, em quebra dos sigilos constitucionalmente protegidos, como primeira e única medida investigatória. Mais que isso, com todas as vênias de estilo, a denúncia não pode sequer ser conhecida quando destituída de um mínimo apoio probatório.

Dito às claras e às secas, não se pode agasalhar o denuncismo irresponsável, não condizente com uma República Democrática de Direito.

Não por outra razão, que o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução 361, de 21 de maio de 2008, vedando, no inciso II do artigo 5º[4], reclamações, críticas ou denúncias anônimas.

O malbaratamento de qualquer garantia constitucional implica na desvalia da força normativa da Constituição, instituindo um Estado de verdadeira esqualidez constitucional, com o consequente esmaecimento de sua força.

Digno de nota, ainda, que a Constituição quando trabalha com os sigilos é justamente para lhes proteger, resguardá-los, estatuindo limitações a sua quebra, em dicção, pelo menos, que serve como forte vetor hermenêutico.

Posta assim a questão, a delação anônima não é suficiente ao inicio de investigação acaso desacompanhada de arrimo probatório, sendo que, igualmente, não justifica, per se, a quebra dos sigilos constitucionalmente reservados.

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