Delação premiada beneficia quem delinqüiu duas vezes

por José Carlos Dias

Quando leio a notícia de que um cidadão foi preso por decreto de prisão temporária, conduzido algemado ao cárcere e exposto ao público com uniforme cor de cenoura de presidiário, me sinto estrangeiro neste país, no qual as garantias pessoais são atrofiadas sob o pretexto de que o crime está hipertrofiado.

O povo é iludido pela falsa imagem de que os vexames impostos ao cidadão de culpa ainda não formada, amparado ainda, porque ainda não julgado, pela presunção de inocência, valem como pena imposta por antecipação.

Mas a história não termina aí. O preso é submetido a interrogatório pelo representante do Ministério Público, instituição da maior importância na distribuição da justiça, mas à qual falecem poderes para praticar atos próprios de delegado de polícia ou de juiz togado. Claro que, deles, pode o promotor participar, no equilíbrio de forças com o direito de defesa, este representado pelo advogado.

Ao preso algemado, alquebrado, exibido e fotografado, filmado com estardalhaço e apresentado na televisão, é oferecido, por seu acusador, o prêmio de ter mitigada a pena se concordar em delatar.

O preso fala, o promotor se ausenta da sala e dá entrevista em primeira mão, autêntico furo. A OAB, por seu presidente, ofereceu representação contra o abuso praticado pelo agente público, cônscio da sua impunidade, ao Conselho Nacional do Ministério Público. A prepotência, a arrogância de alguns promotores choca quando se põe em contradição com o trabalho exemplar desenvolvido pela instituição não só na área penal mas em tantos ramos do direito, na proteção das minorias raciais, do meio ambiente, da cultura, do consumidor etc.

O Ministério Público, que se engrandece em tantas tarefas que desempenha, precisa zelar para que alguns de seus membros não ponham os pés pelas mãos. Se o fizerem, que respondam pelos excessos cometidos.

Neste Brasil de tanto sofrimento, de tanta vergonha, de tanto desaponto, as pessoas tendem a ver a delação premiada como solução para punir os que transgridem as regras impostas para garantia da ordem social.

Esse instituto jurídico importado dos Estados Unidos, que se impregnou na nossa legislação também pela influência do direito italiano e pela ideologia punitiva das mãos limpas, constitui uma violência porque premia quem por duas vezes delinqüiu: como partícipe do fato objeto da delação e como autor da delação, que constitui conduta gravíssima, denotando vício de caráter, uma deformidade que jamais poderia ser objeto de barganha.

A delação premiada deve, isto sim, ser considerada uma extorsão premiada, porque põe em jogo o criminoso delatado, que pode comprar o silêncio, desde que seu comparsa não o delate.

E a gravidade cresce quando assistimos ao espetáculo das audiências públicas pela TV, na Justiça em tempo real, com viciados em CPIs grudados na tela torcendo por seus ídolos e contra os seus monstros, com muitas pessoas tornadas heroínas porque resolveram barganhar com o Estado e entregar às feras os delatados. A cena dramática vivida em Ribeirão Preto faz lembrar a delação premiada nas masmorras e delegacias: “Abre o bico e acaba o pau, vira ganso que eu te solto”.

Admito que há casos excepcionais em que se deve admitir a delação e justificável motivo para abrandamento da pena ou mesmo para o perdão judicial. Trata-se da delação que se deve chamar perdoada, porque as circunstâncias especialíssimas do caso justificam o benefício do perdão total ou parcial: exemplo de delação perdoada é a concedida ao partícipe de uma ação criminosa que resultou em seqüestro de uma pessoa diante da real possibilidade de salvar uma vida, de restituir a liberdade a alguém no cativeiro.

Justa, assim, a previsão expressa no parágrafo quarto do artigo 159, que define o crime de extorsão mediante seqüestro, pela redação que lhe foi dada pela lei 9.269/96. O adjetivo perdoada, a qualificar a delação, tem um sentido ético: não se pode premiar quem delata, porque é conduta que denota caráter deformado e deformador, conduta reprimida até mesmo pela “lei do cão” vigente nas cadeias. A não ser que a relevância da delação tenha um grande alcance em benefício de outrem, de um bem jurídico de altíssima relevância, aí sim a delação merece perdão, nunca um prêmio.

O que dizer, então, de um prêmio dado a quem não tem o poder de se insurgir e dizer “não quero falar, não quero delatar”, que valor terá na hierarquia da ética e do direito?

Não conheço o advogado que foi preso, silencio até sobre seu nome tão divulgado pela mídia. Não o sei culpado nem inocente —isso é irrelevante — nem me estimula a escrever este artigo o fato de ser ele advogado. Mas sou cidadão, exercito o direito de me insurgir por vocação e profissão e vou além, vejo que devo exercitar o dever de não calar contra tais violências.

*Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo

Revista Consultor Jurídico

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