Autor: Álex Levi Bersan de Rezende (*)
A persecução penal no direito pátrio, como sabemos, possui diversos momentos e atores. Segundo a Carta Magna há a Polícia que investiga, o Ministério Público que acusa, a Defesa que defende, e o Judiciário que julga. Todos são entes com independência funcional, com um papel definido, sem subordinação técnica, características essenciais para que as garantias do investigado no inquérito, e do acusado na ação penal, possam ser respeitadas, com a “paridade de armas” esperada da dialética processual.
A Constituição Federal, em seu artigo 129, I, deixa claro que cabe ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal. Não foi por acaso que o legislador originário, conhecedor da tradição processual penal nacional, e com poder de reescrever o Direito, prever garantias, dispor sobre a lógica e a dinâmica do funcionamento das instituições brasileiras, optou por resguardar ao parquet, apenas, a exclusividade da propositura da ação penal pública, um dos momentos, mas não a totalidade, da persecução penal no tocante aos crimes de ação penal pública incondicionada.
Neste sentido, e por ausência de previsão em contrário, é o teor de toda a legislação nacional que rege a matéria, e até mesmo das normas infra legais, como os regulamentos de Tribunais Superiores, que não excluem a iniciativa da Polícia Judiciária da União e não concedem a exclusividade de atuação do Ministério Público, seja na condução de investigações, seja na proposição de medidas cautelares perante os órgãos colegiados de jurisdição.
O reconhecimento do poder investigativo do parquet pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de seu plenário[1], não diminuiu nem alijou a Polícia Judiciária das prerrogativas expressas pelo legislador, seja constituinte ou ordinário, para fomentar a busca da verdade real nas investigações criminais. O apoderamento do Estado-acusador, possibilitando que o mesmo exerça atividades investigativas, não extraiu do Estado-investigador, e dos órgãos que exercem típica e constitucionalmente este papel, as ferramentas inerentes à persecução criminal no país. Neste sentido, preciso é o trecho do voto da ministra Rosa Weber, abaixo transcrito, durante o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593727:
“Reconhecer o poder de investigação do Ministério Público em nada afeta as atribuições da polícia e não representa qualquer diminuição do papel relevantíssimo por ela conduzida. As melhores investigações decorrem de atuação conjunta”. (grifei)
Muitos dos equívocos cometidos em negar esta realidade, mesmo em investigações que envolvem pessoas com prerrogativa de foro, reside, entre outros fatores, na ausência de foco e atenção da doutrina processual penal no estudo do inquérito, sendo que vários institutos existentes nesta fase de instrução preliminar foram negligenciados pela maioria dos doutrinadores nacionais. Tópicos como o indiciamento, as dimensões do contraditório e da ampla defesa na investigação, a condução coercitiva, a fiança, a colaboração premiada, a instauração do inquérito por portaria ou após requerimento[2], entre outros, foram praticamente esquecidos pelos estudiosos do Direito, enquanto se repetia, a exaustão, a máxima superficial que relegava ao inquérito o predicado de um reles procedimento administrativo, informativo e dispensável.
A investigação conduzida no inquérito pela autoridade policial não se confunde com uma investigação acusatória, circunstância que revela a importância da direção destes trabalhos por quem não é e não será parte em eventual ação penal. Seu compromisso é com a verdade dos fatos, não com a responsabilização penal, manifestada, na sua escala de atribuição, pela análise imparcial dos fatos que permeiam a ocorrência do delito e a consequente elaboração de relatório conclusivo, sem os eventuais vícios que podem circunscrever a atuação do órgão que será a parte acusatória da relação processual. Como bem define o magistério de Francisco Sannini Neto[3]:
“(…) não podemos olvidar que a investigação preliminar se direciona exclusivamente à acusação, sendo que em inúmeras situações a investigação acaba atuando em sentido contrário, ou seja, fornecendo elementos que servem ao próprio investigado, demonstrando, assim, a desnecessidade de submetê-lo a uma fase processual. É exatamente esse o papel do inquérito, que não tem vínculo nem com a acusação e nem com a defesa, sendo compromissado apenas com a verdade e justiça, servindo como um verdadeiro filtro processual, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo.”
Neste sentido, é preciso desconstruir a crença de que o Delegado de Polícia trabalha em prol do Ministério Público, enquanto parte da ação penal, e pela condenação do investigado. Ora, a investigação é de interesse público e, como esta característica sugere, deve pautar-se pelo desiderato de realização da Justiça, e elucidar os fatos constantes da notícia crime, apurando todas as circunstâncias relativas à ocorrência do delito, inclusive as favoráveis ao imputado, seja em primeira instância ou perante a mais alta Corte do país. Em consonância com este entendimento, Eduardo Cabette assevera que:
“(…) o inquérito policial não é e jamais será instrumento a serviço do Ministério Público ou do Querelante somente, mas sim da busca da verdade processualmente possível de forma imparcial, dentro da legalidade. O Delegado de Polícia não deve produzir ou colher provas e indícios somente voltados para a acusação, mas sim de forma genérica, primado pela total apuração dos fatos, venha isso a beneficiar a defesa do suspeito ou a incriminá-lo”.[4]
Não se desconhece as particularidades do inquérito de competência originária, destacadas em reiterados julgados do Pretório Excelso. Definitivamente, não há dúvida quanto a isso. Sabe-se, sobretudo, que a investigação é instaurada pelo Ministro-Relator, a pedido do “Procurador-Geral da República, da autoridade policial ou do ofendido[5]”, e que transcorre sob a supervisão daquela autoridade judicial, além de outras especificidades que a diferenciam do Inquérito Policial previsto no Título II do Código de Processo Penal.
No entanto, reconhecer algumas especificidades do inquérito de competência originária não importa inadmitir, em seu curso, a prática de atos de Polícia Judiciária, regidos por normas próprias ou de aplicação geral à atividade persecutória, como aquelas previstas na Lei 9.296/1996[6], à Polícia Judiciária da União.
A par disso, no que respeita à autonomia da Autoridade Policial para promover diligências em inquéritos instaurados na Suprema Corte, em sede de competência originária, importa observar os termos absolutamente claros do artigo 230-C do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), que rege o tema:
“Instaurado o inquérito, a autoridade policial deverá em sessenta dias reunir os elementos necessários à conclusão das investigações, efetuando as inquirições e realizando as demais diligências necessárias à elucidação dos fatos, apresentando, ao final, peça informativa.” (grifei)
Como é cediço, as investigações que transcorrem originariamente na Suprema Corte estão disciplinadas pela Lei 8.038/1990 e pelo Regimento Interno do STF. Os demais atos imanentes à investigação criminal, quando escapam à previsão dessas normas específicas, devem seguir o regramento do Código de Processo Penal e demais leis de incidência geral. Observe-se que o Código de Processo Penal, no artigo 1º, caput, estabelece sua aplicação em amplo espectro, excepcionando da forma que segue:
“Art. 1º O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados:
(…)
IV – os processos da competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, no 17);
(…)
Parágrafo único. Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nº IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.” (grifei)
É justamente em razão desse sistema de incidência normativa que, mesmo não havendo regramento específico quanto à realização de atos de Polícia Judiciária, como a prova pericial, a reprodução simulada dos fatos, a acareação e a intimação, por exemplo, tais iniciativas são amplamente admitidas em inquéritos de competência originária, irrestritamente. De igual forma se opera com mecanismos investigativos ofertados à persecução penal em leis especiais, como a interceptação telefônica e telemática, a infiltração policial, o afastamento de sigilo bancário, entre outros. Aplicam-se, portanto, normais gerais quando a Lei 8.038/1990 e o Regimento Interno do STF não dispuserem a respeito.
A análise histórica das investigações perante a Suprema Corte mostra que a maioria das provas produzidas nos inquéritos originários ocorrem sob a chancela e a coordenação do delegado de Polícia. É ele que, como regra, toma os depoimentos das testemunhas e interroga os investigados, e é sob sua tutela que a maior parte dos relatórios de análise que compõem o acervo das provas produzidas para a investigação são confeccionados. É a Autoridade Policial que elabora a quesitação da prova pericial e orienta o cumprimento das diligências externas que devem ser realizadas.
Há provas que são produzidas a partir de requerimentos da Procuradoria Geral da República e após o deferimento do Ministro-relator, mas a dinâmica dos inquéritos em tramitação no STF demonstra que inúmeras diligências são realizadas sem o conhecimento prévio do Ministério Público e do Judiciário, e nem por isso há ressalvas sobre a legitimidade da Autoridade Policial em determinar a realização de um relatório de análise, solicitar informações a um órgão público, ou em ter efetivado uma oitiva não aventada antes pelo Parquet, em consonância com a norma prevista no artigo 230-C do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), respeitando a dinâmica da investigação e prestigiando o princípio da oportunidade, tão caro à persecução criminal que espera ser eficaz.
Não há lógica, pelo menos não há lógica convergente com a legislação nacional e com a eficiência da investigação criminal, que consiga justificar o porquê de medidas sujeitas à reserva de jurisdição, em inquéritos originários, só poderem, necessariamente, serem postuladas por membro do Ministério Público.
A natureza híbrida do Inquérito Originário, a crescente e evidente demanda de procedimentos investigativos que tramitam na Suprema Corte em decorrência da operação “lava jato”, assim como a evolução e aprofundamento da doutrina e novos julgados que enfrentam os desafios característicos desta atividade de investigação criminal sob supervisão do ministro-relator, permitiu que a Polícia Judiciária da União realizasse com autonomia e imparcialidade inúmeras diligências necessárias à elucidação dos fatos, dentre elas medidas cautelares que exigem autorização judicial.
Negar estes fatos e a concomitante possibilidade de o Delegado de Polícia representar por diligências investigativas com reserva de jurisdição durante a tramitação do inquérito originário, além de contrariar toda a legislação nacional que regulamenta a concessão destas medidas, é vedar a possibilidade de um ator imparcial e qualificado da persecução criminal expressar seus conhecimentos sobre a dinâmica investigativa em curso, opção que tende a interferir negativamente na busca da verdade real.
Autor: Álex Levi Bersan de Rezende é delegado da Polícia Federal. É especialista em Inteligência Policial, formando pela Escola Superior de Polícia da Academia Nacional de Polícia, e especialista em Direito Penal e Direito Processo Penal, formado pela Universidade Cândido Mendes.