Frederico do Valle Abreu
Aumenta significativamente em nossa sociedade, não apenas a noção, mas a efetiva utilização dos instrumentos jurídicos para alcançar a responsabilidade sem culpa. Isto se dá em nome dos avanços sociais que prestigiam todas as medidas tendentes a evitar que um pesado fardo recaia sobre a vítima, caso a esta coubesse fazer a prova da culpa do agente causador do evento danoso.
É curial ter em mente que juristas renomados se esquecem de que o nosso legislador não se afastou da doutrina tradicional e conservou a culpa como elemento basilar da responsabilidade civil, embora não tenha desprezado a responsabilidade objetiva.
Essa noção tradicional de responsabilidade pela culpa atende às inspiração de eqüidade e justiça e, como explicado pelos irmãos MEZAUD, a regra da eqüidade quer que aquele que retira os proveitos suporte os riscos, mas ela quer, também, que aquele cuja conduta é irreprochável não possa ser inquietado .
Quase todas as legislações do mundo dão conta da culpa como o elemento mais importante para caracterizar a responsabilidade. O Código Civil francês alude à culpa (faute). No direito anglo-saxão, a expressão tort designa fatos que autorizam a ação de indenização, mas desde que comprovado o elemento culpa. Assim também é a cultura brasileira, onde a regra é o princípio da culpa que, por contrastar com o princípio da causa ou da responsabilidade pelo simples fato, deve sempre vir excetuada nos exatos termos da lei.
O direito moderno guardou a noção da culpa tradicional, contra a qual se levantam DUGUIT, DE PAGE e SALEILLES. Como se vê, caminha-se em terreno pedregoso, contra a doutrina de muitos dos nossos mestres civilistas, mas é pertinente atentar para o fato de que a análise do dano não pode preterir a necessária análise da culpa. Intuitivo que o ato de vontade é que deve se revestir da ilicitude, não o dano em si, conseqüência do ato humano.
A despeito dessas colocações, o novo Código Civil, em seu parágrafo único do artigo 927, estabelece que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Andou mal o legislador ao estabelecer norma aberta para a responsabilidade objetiva, preferindo transferir para a jurisprudência a conceituação da “atividade de risco.” O princípio elementar da responsabilidade é o da culpa (responsabilidade subjetiva), não o da causa, ou do fato (responsabilidade objetiva), valendo aqui a assertiva de que “generalizar o princípio da causalidade objetiva ou consagrar para todos os casos a teoria do risco criado, é, pois, em certos aspectos, uma regressão ao primitivismo.”
Também não se vá cair no que PONTES DE MIRANDA chamou de “racionalismo intemperante” porque, embora a culpa seja elemento nuclear da responsabilidade, em certos casos expressos na lei, a sua abstração é possível para se possibilitar, até mesmo, o exercício da ação.
Alargar o campo das exceções legais sem um critério concreto é desarrazoado, pois não é de boa técnica ampliar a interpretação de situações extraordinárias. A exceção existe, ou seja, criou-se a responsabilidade objetiva por constatações categóricas dos fatos humanos, mas apenas para situações socialmente relevantes.
O novo Código Civil impõe regra abstrata justamente para o que não é usual no direito moderno. Vale dizer, está o novo Código Civil a criar, pari passu com a regra da responsabilidade subjetiva, também uma regra geral para o que deve ser tratado como exceção, daí a ênfase na discussão em torno do alcance ou mesmo da supressão do parágrafo único do artigo 927, do novo Código Civil.
Não é fácil estabelecer a definição de “culpa”, mas seu conceito é compreendido nas relações atinentes ao caso concreto, daí também a necessidade de valorá-la quando da análise da responsabilidade. Ao dano deve-se dar palco principal não quando se fala em caracterização da responsabilidade, mas nas conseqüências dela advindas, que se transmudam na indenização, restituição ou na multa.
Há fundado receio que a jurisprudência caminhe no sentido de preterir a constatação da culpa para sobrelevar o elemento dano, regredindo naquele “primitivismo” vaticinado por OROZIMBO NONATO, deixando uma das partes sem defesa ou, simplesmente, presumindo não a culpa, mas a própria condenação da parte que desenvolve a chamada “atividade de risco”, cuja definição legal restou ignorada.
O cenário de recentes decisões teratológicas proferidas em matéria de responsabilidade civil, inclusive com a concessão de medidas de antecipação de tutela, em todo o território nacional, conjugado com a redação contemplada no artigo 927, do novo Código Civil, e o crescimento da chamada indústria da indenização são fatores que permitem supor uma explosão de ações judiciais, trazendo a reboque toda uma gama de recursos e incidentes processuais, deixando especialmente as empresas à mercê da indispensável construção jurisprudencial em torno da culpa e da definição do conceito de atividade de risco.
FREDERICO DO VALLE ABREU, associado de PINHEIRO NETO ADVOGADOS, coordenado por JOÃO BERCHMANS C. SERRA, integrantes da Área Contenciosa no escritório de Brasília.