Tem sido prática corriqueira em Mato Grosso do Sul a Fundação Nacional do Índio (Funai), com aquiescência da União, identificar e delimitar terras particulares, como se elas fossem “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios“.
O pano de fundo, como já se sabe, é o confisco dessas terras por meio de processo administrativo de demarcação, para, então, criar novas reservas indígenas no Estado, sem custo para o Governo federal. Com efeito, a Funai assegura que o procedimento é legal e está amparado no art. 231 e § 1º da CF/88, no Estatuto do Índio e no Decreto nº 1.775/96.
Pois bem. Para entender a questão, é necessário, passo a passo, explicar toda a “trama“ desenvolvida pela Funai, que obrigatoriamente passa pela definição de terras indígenas, de terras particulares, a quem elas pertencem, e a finalidade do dispositivo administrativo que ampara o processo de demarcação.
Portanto, inicialmente, há que se indagar: o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios ou as terras indígenas? De acordo com o § 1º do art. 231 da CF/88, são terras habitadas por índios em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Deduz-se, assim, que as terras indígenas são definidas, necessariamente, por quatro componentes: ocupação, utilização, imprescindibilidade e necessidade. Aliás, o emérito jurista e professor, dr. José Afonso da Silva, assinala: “as quatro condições são todas necessárias e nenhuma é suficiente sozinha.” Com o mesmo sentir, o Supremo Tribunal Federal interpretou e a doutrina empírica não deixa qualquer dúvida: as terras indígenas ou tradicionalmente ocupadas pelos índios são definidas pelos quatro (4) componentes aqui citados.
O segundo passo, é definir a quem elas pertencem. O inciso XI, do art. 20, da CF/88, revela que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, são bens da União. Logo, uma outra conclusão é inevitável: por pertencerem à União, são, então, bens público e federal. O terceiro passo, é definir a finalidade do Decreto nº 1.775, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas.
Infere-se, portanto, da leitura detida dos citados dispositivos, três conclusões lógicas: a primeira, que somente as terras indígenas podem ser demarcadas administrativamente com base no citado decreto administrativo; a segunda, que o órgão de assistência ao índio é a Fundação Nacional do Índio e, a terceira, que a expressão terras indígenas é sinônimo de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Portanto, até aqui, as conclusões feitas levam o leitor às seguintes certezas: as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios ou as terras indígenas são identificadas pela ocupação, utilização, imprescindibilidade e necessidade; que são bens público e federal e devem ser demarcadas pela Funai.
As terras que não se enquadram nessas condições, são terras particulares. Não há outra conclusão. Portanto, as terras particulares, que presentemente são esbulhadas, destruídas, e que delas os donos são deliberadamente expulsos por invasões de índios, sequer podem ser objetos de estudo antropológico pela Fundação Nacional do Índio.
É que as terras particulares são detentoras de títulos de propriedade escorreitos, registrados na serventia imobiliária competente. São terras desafetadas da ocupação indígena, cujos donos, em todas elas, exercem a posse pacífica por quase um século.
O mais importante, é que as terras particulares estão protegidas pelo manto constitucional do sagrado direito de propriedade. Mas na prática, a história é outra.
A Funai confessa a ausência da ocupação indígena nas terras particulares, mas inicia o processo administrativo de demarcação contra elas e os respectivos donos. O ato revela uma ilegalidade sem precedentes.
A Fundação Nacional do Índio atua no processo administrativo como parte interessada e juiz ao mesmo tempo. Nessa condição, arbitrária e unilateralmente, indefere a defesa apresentada pelo particular e dele anula o respectivo título de propriedade. O Poder Judiciário não participa. A bem da verdade, no processo administrativo a Funai pratica, deliberadamente, o juizo de exceção.
Vale dizer, então, que para a Fundação Nacional do Índio, basta que o indígena declare que ele ou seu ancestral ocupou esta ou aquela área de terras que o processo administrativo de demarcação se instala.
É nesse ponto que reside a imoralidade dos inúmeros processos administrativos de demarcação, envolvendo terras particulares. É onde reside a má fé.
Com efeito, a Fundação Nacional do Índio se desvia da finalidade institucional e se lança na aventura inaceitável, ilegal e imoral de demarcar terras particulares e de anular os respectivos títulos de domínio. São esses os atos que revelam que o objetivo central da Fundação Nacional do Índio é confiscar terras particulares para assentar indígenas. Ora, que País é esse, cujo Poder Executivo é o primeiro à desrespeitar o Estado Democrático de Direito? Que fecha os olhos para o que estabelece a Constituição Federal? Que é subserviente à vontade de ONGs? Que desrespeita o direito de propriedade, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, o direito adquirido e os registros públicos? Que instala a insegurança jurídica no País? Que interpreta equivocadamente o art. 231 da CF com o propósito deliberado de confundir terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, com terras imemorialmente possuídas pelos indígenas ? Finalizando, então, é pertinente destacar a grande importância que tem o Poder Judiciário na questão. O Judiciário, é o único poder, que por sua neutralidade, tem competência para manter o estado de direito no Brasil, garantindo, assim, a segurança jurídica.
Cícero Alves da Costa
Advogado