A Constituição Federal, em seu artigo 142, destina às Forças Armadas as relevantes funções de defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Essas funções, no que tange à Aeronáutica, revelam-se no resguardo da soberania e segurança do nosso espaço aéreo. Dessa forma, a defesa aérea indiscutivelmente é função constitucional do citado órgão.
De outro lado, o tráfego aéreo civil distintamente constitui-se em um serviço público de eminente interesse social e econômico à vida da nação, que não guarda qualquer relação com a defesa aérea.
A revelação da crise à sociedade brasileira, apenas após o acidente da Gol, em setembro de 2006, muito se deve a esta tensão entre a flagrante incompatibilidade entre o interesse público do tráfego aéreo civil e a gestão militar do sistema, caracterizado pela falta de transparência, participação e controle social.
Com efeito, apesar das condições de trabalho desfavoráveis à saúde dos controladores de tráfego aéreo terem sido constatadas em três importantes estudos sobre o assunto feitos no Brasil, respectivamente pelos pesquisadores Mário César Vidal (Coppe, Rio de Janeiro,1999), Alice Itani (Unesp,1999) e Rita de Cássia Araújo (USP, 2000), não se tinha conhecimento, pelo menos de forma pública como se tem hoje, das reais condições de trabalho dos controladores de tráfego aéreo.
Explicitou-se na arena pública, por exemplo, que os referidos trabalhadores monitoravam mais aeronaves do que é recomendado por normas internacionais, que o descumprimento de normas e regulamentos de segurança “foi tornado compulsório”, tendo sido imposto pelos superiores hierárquicos, na perspectiva de “fazer o sistema funcionar” a qualquer custo. Tomou-se conhecimento também que essas “ordens” nunca foram explicitadas oficialmente e assinadas.
Nesse contexto, veio à tona a situação de submissão do controlador de tráfego aéreo à rígida disciplina militar que impõe a esses trabalhadores o cumprimento de funções tipicamente militares, tais como, participar de desfiles, formaturas, guarda armada etc, em seus dias de folga. Nesse cenário, crítico, 90% dos controladores para sobreviverem têm outro emprego, tendo em vista o baixo salário atrelado à patente de sargento da aeronáutica.
Se por um lado, esta situação está de acordo com os princípios que regem a vida militar, visto que o controlador é acima de tudo um militar, nos parece que não encontra guarida no ponto de vista estritamente técnico para adequada atuação profissional no interesse da coletividade.
Com efeito, torna-se claro que, sob ponto de vista do interesse público, o referido profissional, por se constituir em um dos elementos fulcrais para a existência da segurança aérea, precisa possuir uma formação adequada, valorização profissional, regime jurídico único (celetista ou estatutário). Atualmente, existem controladores de tráfego aéreo militares, civis celetistas e civis estatutários. Esta segmentação, somada à inexistência de uma carreira profissional, vem contribuindo para o depauperamento dessa atividade. Desta feita, torna-se necessário ressaltar a importância da formação permanente, reciclagem e aperfeiçoamento, domínio avançado da língua inglesa, enfim, uma profissão atraente e com perspectivas de crescimento, como se vê no cenário internacional.
Um outro aspecto em que a gestão militar apenas trouxe malefícios foi o de que, se em outros setores, as deficiências de investimentos eram e são notórias, como na área de energia e transportes rodoviários, no tráfego aéreo, considerando que a Aeronáutica até hoje não considera que há problemas em seus equipamentos, o sucateamento destes permaneceu sem conhecimento do grande público e do próprio governo.
Neste sentido, como responsabilizar o governo diante da postura do Comando da Aeronáutica, que diz que “não tinha” e “não tem” nenhum tipo de problema em seus equipamentos! Seu sistema é moderníssimo. Inclusive corroboram o discurso, ainda hoje vicejado pelo órgão. “Temos o espaço aéreo mais seguro do mundo”.
Enquanto membro do MPT (Ministério Público do Trabalho), que primeiro instaurou o procedimento investigatório em São Paulo para averiguar as condições de trabalho dos controladores de tráfego aéreo, defendemos a desmilitarização do sistema, seja do ponto de vista do interesse dos trabalhadores, seja do ponto de vista do interesse da sociedade em geral.
À crítica que recebi no sentido de que tal decisão é de caráter político, não me impede, enquanto cidadão e usuário do sistema, de fazê-la. Com efeito, o que a Constituição Federal e a Lei Complementar vedam ao membro do MP (Ministério Público) é o exercício de atividade político-partidária (artigo 128, II, aline “e”, da Constituição Federal), acepção no termo partidário, pois política se faz desde que se acorda até o momento em que se deita para dormir. Aliás, a definição jurídica atribuída aos membros do MP pelos administrativistas é justamente a de agentes políticos.
Ademais, enquanto membro do Ministério Público do Trabalho incumbido de propiciar a efetividade dos direitos sociais, inegável o caráter de agente político transformador de uma realidade, possuindo um nítido papel social a cumprir, portanto, de natureza política e garantista dos direitos sociais.
A atuação colaborativa com a Aeronáutica que o Ministério Público do Trabalho, através da Procuradoria-Geral do Trabalho, realiza, segundo afirmação do comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, em representação formulada contra membro do Ministério Público do Trabalho, apenas reafirma a convicção de que a democracia brasileira, ainda muito incipiente, necessita avançar em vários campos. E um destes, inegavelmente, dada a sua evidente incompatibilidade constitucional, seja do ponto de vista dos trabalhadores como do direito dos usuários, é justamente o tráfego aéreo, bem como o fortalecimento do Ministério da Defesa, pois não apenas a Aeronáutica, mas as Forças Armadas precisam estar a serviço da sociedade brasileira e não a reboque desta, ao menos em tempo de paz.
Quando propusemos, ainda no final do ano passado, a criação de uma força-tarefa no âmbito do Ministério Público do Trabalho para averiguar a situação dos controladores de tráfego aéreo, foi-nos dito que os fatos não a justificavam. Foi preciso o agravamento da situação aérea, um novo acidente, a morte de mais de 200 pessoas, para que o MPT anunciasse a criação de uma força-tarefa para averiguar a situação dos trabalhadores da aviação civil. Bem, antes tarde do que nunca, mas a omissão do MPT, estribada por interesses político-corporativos mancha a imagem da instituição e coloca em cheque o papel reservado ao órgão pela Constituição Federal.
No âmbito da investigação conduzida pelo Ministério Público do Trabalho em São Paulo,instituímos o Fórum Permamente de Segurança Aérea com uma composição interinstitucional com a finalidade de propiciar o diálogo democrático e propositivo dos diversos atores sociais envolvidos com a problemática, inclusive e principalmente dando-se vez e voz aos técnicos e especialistas nos diversos assuntos que integram a pauta.
No momento em que assume o Ministério da Defesa o ex-presidente do STF, Nélson Jobim, esperamos que, de acordo com os ditames constitucionais do direito à informação e da liberdade de expressão e associação, o diálogo volte a se tornar prioritário, sugerindo-se a criação de um Grupo de Trabalho sob os auspícios do Conac (Conselho de Aviação Civil), com a presença da Sociedade Brasileira de Transporte Aéreo, do Sindicato Nacional dos Aeronautas, da Federação Brasileira dos Controladores de Tráfego Aéreo, Sdo indicato Nacional dos Aeroportuários, do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas, da Força Aérea Brasileir, da Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária, da Agência Nacional da Aviação Civil, do Instituto de Defesa do Consumidor e da Associação Nacional em Defesa dos Passageiros do Transporte Aéreo.
Enfim, espera-se do governo brasileiro, capitaneada pelo ministro Jobim, uma guinada no sentido da democratização das informações e decisões de forma consentânea com a Constituição Federal que ele, enquanto deputado constituinte ajudou a construir.
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Fábio Fernandes é procurador do trabalho, mestrando em Direito do Trabalho pela PUC/SP e especialista em Direito do Trabalho pela mesma universidade, em Direito Ambiental pela Escola de Direito Constitucional Ambiental/SP e em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP/SP.