Os gregos, em especial os atenienses, consideravam a participação na vida pública um dos maiores bens a serem almejados pelo homem. Na época clássica da democracia ateniense (~580 a ~338 a.C.), os cidadãos deliberavam no seio de suas assembléias, sem intermediação de representantes. Cabe ressaltar que essa cidadania nada tem da soberania popular concebida hoje, pois eram considerados cidadãos apenas os nascidos em Atenas, do sexo masculino e maiores de vinte anos. Ficavam totalmente alijados do processo decisório as mulheres, os metecos (estrangeiros) e a grande massa escrava. Aristóteles, por exemplo, favorável à escravidão, justificava que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos específicos, ficando assim afastada destes a possibilidade de providenciar a cultura da alma, que requeria tempo e liberdade, bem como determinadas qualidades espirituais. Para os atenienses, o exercício da política exigia dedicação quase exclusiva: era um direito de poucos, possibilitado pelo trabalho do escravo.
Os atenienses acreditavam que “um homem que não se interessa pela política deve ser considerado não um cidadão pacato, mas um cidadão inútil”. Com tempo disponível, os cidadãos se voltavam por inteiro à coisa pública, discutindo os temas relevantes na Ágora, uma espécie de praça em que se juntavam para o exercício do poder político. Deliberando com ardor acerca das questões de Estado, as assembléias tinham o mesmo papel do parlamento nos tempos modernos, com a diferença de caracterizarem-se como uma democracia direta. Mas é em Roma que temos um contraponto ao modelo ateniense, ou seja, a mescla de interesses das classes subalternas com o poder das classes dominantes, uma incipiente participação popular na tomada de decisões.
Num salto histórico, por necessária referência, retomo aqui à origem do plebiscito, surgido na Roma antiga, na época da República. No séc. IV a.C. havia, em Roma, dois estamentos sociais principais que não se misturavam: o povo, representado pelos patrícios, que eram os supostos descendentes dos fundadores da cidade, e a plebe, formada por patrícios decaídos, escravos e estrangeiros. Inicialmente sem quaisquer direitos, a plebe foi adquirindo, com o tempo, várias prerrogativas, como o direito de participar da vida política mediante o voto, o plebiscito. Os concilia plebis, assembléias próprias da plebe, sem participação dos patrícios, votavam os plebiscitos, leis reservadas à plebe. A partir da Lex Hortensia, em 287 a.C., os plebiscitos foram assimilados às leges e passaram a ser dirigidos também aos patrícios. O sentido básico do plebiscito é a escolha feita com plena consciência, resultando em leis aprovadas pela plebe reunida em assembléias. O plebiscito, no Direito Romano, deu à plebe a condição de opinar sobre os assuntos de seu interesse, funcionando como um freio aos privilégios aristocráticos.
Esse assunto ganha importância especial neste momento, ocasião em que se reabre a discussão sobre a iniciativa popular de convocação de referendos e plebiscitos, discussão capitaneada pela Ordem dos Advogados do Brasil que, juntamente com outras entidades representativas, lançou campanha nacional pela aprovação do anteprojeto de lei com essa finalidade escrito pelo advogado Fábio Konder Comparato. Na legislação atual, pelo disposto no art. 49, XV, da Constituição Federal, a referida convocação é da competência exclusiva do Congresso Nacional. O plebiscito, inserido no art. 14 da Carta Magna como um dos principais itens relativos à soberania popular, foi regulamentado pela Lei n. 9.709, de 18 de novembro de 1998. Agora, entre as mudanças sugeridas pelo anteprojeto do Professor Comparato estão propostas, entre outros itens, a iniciativa popular de plebiscitos e referendos e a convocação obrigatória de plebiscito para decisão sobre matérias de alta relevância, como, por exemplo, eventual alienação de recursos da Nação.
Urge na sociedade atual participação cada vez mais ativa dos cidadãos na tomada de decisões, mas algumas perguntas devem ser lançadas para que essa participação seja realmente resultado de um processo de soberania popular, na melhor acepção do termo. Pode-se levantar pelo menos três pontos, relacionados entre si, que devem ser exaustivamente discutidos:
1. A proposta contempla plebiscitos apenas para matérias consideradas relevantes, tendo como exemplo “eventual alienação de recursos da Nação”. Quem definirá quais serão os temas relevantes? Por que não pode ser toda e qualquer matéria? Qual o motivo de limitar a soberania popular?
2. Salienta o próprio Professor Comparato em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19 de março de 1991, “… a democracia não se reduz à soberania popular, mas compreende também uma outra exigência inalienável: o respeito aos direitos humanos”. Como preservar o direito das minorias em um processo de democracia direta?
3. Em uma sociedade cada vez mais informatizada, qual seria a democracia preferida: a direta, a semidireta ou a representativa?
Pode-se chegar a uma conclusão imediata: não é viável falar em democracia hoje sem considerar os direitos fundamentais. A garantia desses direitos permite a existência de um autêntico Estado Democrático de Direito, sendo este o principal fiador do debate político. Vamos ao debate!
* José Fabio Rodrigues Maciel
Professor de Filosofia e História do Direito; Mestre em Direito pela PUCSP; Advogado; Autor da obra Teoria Geral do Direito – segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema, publicada pela Editora Saraiva.