Por João Paulo Orsini Martinelli e MAURIDES DE MELO RIBEIRO
O recente relatório da Comissão Global de Políticas de Drogas demonstrou a necessidade de uma discussão séria e despida de autoritarismo, com o uso da razão e das evidências científicas, a respeito da guerra às drogas. O relatório, resultado de diversas discussões, envolvendo autoridades e especialistas no assunto, desmitifica e desautoriza as políticas anti-drogas atualmente praticadas no mundo. Pela relevância e complexidade do tema e a importância das pessoas envolvidas, o relatório deve ser, no mínimo, apreciado e avaliado pelos governos e organismos multilaterais internacionais.
Primeiramente, cabe destacar o que é a Comissão Global de Políticas de Drogas. Trata-se de um grupo de destacadas pessoas, cujo objetivo é promover a discussão, em nível internacional, sobre os danos causados pelas drogas e os meios para sua efetiva redução, com amparo em bases científicas. A Comissão foi formada após a bem sucedida experiência da Comissão Latino-americana para as Drogas e a Democracia, composta pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, César Augusto Gaviria Trujillo, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México. Compreendendo que a associação entre o comércio de drogas, a violência e a corrupção são uma ameaça à democracia na América Latina, a Comissão re-avaliou as políticas predominantes de “guerra às drogas” e iniciou um debate público a respeito da questão que tende a ser rodeada pelo medo e pela falta de informação.[1]
A partir dessa experiência o movimento se internacionalizou ganhando apoios e adesões de personalidades de expressão mundial, notadamente da Europa e Estados Unidos da América e, a partir de então, passou a designar-se como Comissão Global de Políticas de Drogas. Para retratar a importância da Comissão, basta apenas citar alguns de seus integrantes, respeitados internacionalmente pela experiência acadêmica e profissional: George Papandreou, Primeiro Ministro da Grécia; George P. Shultz, ex- Secretário de Estado dos Estados Unidos da América (presidente honorário); Javier Solana, ex-Alto Representante da União Europeia para Política Exterior e Seguridade Comum; Kofi Annan, ex- Secretário Geral das Nações Unidas; Louise Arbour, ex-Alta Comissionada das Nações Unidas para os Direitos Humanos; Paul Volcker, ex-Presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos; Ruth Dreifuss, ex-Presidente da Suissa; Thorvald Stoltenberg, ex- Ministro de Assuntos Exteriores e Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados; Asma Jahangir, ativista pelos direitos humanos e ex-Relatora Especial das Nações Unidas sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias; Mario Vargas Llosa, escritor e intelectual; John Whitehead, banqueiro e presidente da Fundação World Trade Center Memorial; Marion Caspers-Merk, ex-Secretária de Estado do Ministério Federal da Saúde da Alemanha.
Os objetivos da Comissão são, basicamente, os seguintes: (a) revisar o fundamento, a efetividade e as consequências da questão da “guerra às drogas”, (b) avaliar os riscos e os benefícios das diversas respostas dos países ao problema das drogas e (c) desenvolver recomendações praticáveis e fundadas para uma reforma legal construtiva da política de drogas.[2] Ou seja, o trabalho desenvolvido pela Comissão não é mera especulação desprovida de fundamentos.
São pessoas com um objetivo em comum, que perceberam a ineficácia da atual política de drogas no mundo e a necessidade de uma revisão dos conceitos. E remarque-se que não se trata de mero argumento de autoridade, o posicionamento desse grupo, em favor da mudança na política mundial de drogas, ganha especial destaque porque parte de notáveis integrantes do próprio establishment, muitos deles responsáveis pela própria implementação do estágio atual do proibicionismo-punitivo.
Para entender as conclusões, o primeiro passo a ser dado é despir-se de todo moralismo e autoritarismo, pois reduzir o problema das drogas ao mero legalismo é, comprovadamente, um erro de grandes dimensões. Não à toa o relatório começa com a constatação de algo que já é notório: a guerra às drogas fracassou, com consequências devastadoras para os indivíduos e sociedades ao redor do mundo. Afirma, ainda, que “os imensos recursos destinados à criminalização e às medidas repressivas orientadas aos produtores, traficantes e consumidores de drogas ilegais fracassaram eficazmente em reduzir a oferta ou o consumo”.
Diante do que foi constatado, a Comissão elaborou alguns princípios e recomendações, encaminhados à Organização das Nações Unidas, como alternativas à atual guerra às drogas. São basicamente oito as recomendações:
1.Acabar com a criminalização, a marginalização e a estigmatização das pessoas que usam drogas mas que não causam nenhum dano a outros;
2.Incentivar os governos a tentarem modelos de regulação legal das drogas a fim de eliminar o poder do crime organizado e para salvaguardar a saúde e a segurança dos seus cidadãos;
3.Oferecer serviços de saúde e tratamento aos que deles necessitem, de acordo com o caso concreto, inclusive com a implementação de medidas de redução de danos, como o oferecimento de seringas descartáveis;
4.Respeitar os direitos humanos das pessoas que usam drogas, abolindo as práticas abusivas utilizadas em nome do tratamento, como o trabalho forçado, a internação forçada ou abusos físicos e psicológicos;
5.Focar as ações repressivas nas organizações criminosas violentas, mas fazê-lo de maneira a eliminar seu poder e seu alcance, enquanto dá-se prioridade à redução da violência e da intimidação;
6.Investir em atividades que possam prevenir, em primeiro lugar, que os mais jovens usem drogas e prevenir que aqueles que já usem possam desenvolver problemas mais sérios;
7.Começar a transformação do regime mundial de proibição das drogas, repensando as políticas e estratégias movidas apenas por conveniência e ideologia política;
8.Por fim, romper o tabu sobre o debate e a reforma. Agora é tempo de mudar.
O relatório da Comissão aponta, como uma das provas de que a guerra ao tráfico está perdida, o aumento do consumo de drogas entre 1998 e 2008, período em que houve grande repressão ao tráfico em todo o mundo. Os dados da Organização Mundial da Saúde indicam aumento de 34,5% no uso de derivados de ópio, 27% de cocaína e 8,5% de maconha. Na prática, os dados demonstram que a criminalização dos entorpecentes não é o meio ideal de redução do consumo. Alerta-se, portanto, para a necessidade de se buscarem novas alternativas, mesmo que, em princípio, a título de experiência.
O balanço de cem anos desse modelo belicista pode ser resumido da seguinte forma: a oferta de drogas não foi reduzida, o consumo aumentou, a situação da saúde pública agravou-se, o sistema prisional está superlotado e próximo à falência, aumentou a corrupção e os grandes traficantes continuam soltos; os lucros nunca foram tão altos e a circulação de dinheiro sujo não diminuiu; novas drogas estão disponíveis nos mercados, as drogas naturais foram geneticamente modificadas e estão cada vez mais potentes.
Destaque-se que, nos países periféricos, os efeitos deletérios são ainda mais visíveis: as prisões estão cheias de dependentes de drogas que se transformam em criminosos para sustentar seu vício, e a violência na resolução dos conflitos ligados ao tráfico é generalizada. Por outro lado, a cultura do controle bélico patrocina a invasão de extensas áreas urbanas e mantém esses locais em permanente estado de sítio.
Os moradores locais, trabalhadores honestos em sua esmagadora maioria, são estigmatizados e tratados como traficantes em potencial e vistos como inimigos pelas agências de controle estatal. Dessa forma, a conclusão a que se chega é no sentido de que a “guerra às drogas” acarreta maiores danos à sociedade e à saúde pública do que protege esses mesmos fins, razão pela qual deve ser substituída por uma alternativa mais tolerante e humanitária.
O combate à violência não se faz com a estigmatização ou atos autoritários. A cultura brasileira, infelizmente, ainda está longe do ideal de uma democracia. Essa constatação é verificável nos dias atuais. quando, por exemplo, o Poder Judiciário, responsável pela manutenção da ordem democrática, profere decisões que proíbem a manifestação pelo debate sobre a descriminalização. Percebe-se que há muito a ser feito. A mera proibição, com base em interpretações equivocadas da lei, busca um resultado a todo custo, numa demonstração de utilitarismo extremo. Para afirmar que a “Marcha da Maconha” configura crime de incitação ou apologia, deve-se demonstrar o dolo dos agentes em colocar em risco a paz pública (bem jurídico tutelado pelas normas), assim como definir qual o grau do perigo ou do dano.
A paz pública é um bem jurídico de conceito muito vago e, em nome dos princípios da fundamentação das decisões judiciais e da lesividade do direito penal, toda ameaça a este bem deve ser explicitada de forma clara. Se há uma norma proibindo a incitação ou a apologia ao crime, quer-se evitar um resultado lesivo, que deve ser demonstrado na decisão proibitiva da manifestação. No entanto, essa é apenas outra perversidade do modelo proibicionista. O fato é que modelos totalitários sempre andam juntos do obscurantismo. A proibição veda o próprio debate democrático e o livre trânsito das idéias. Se é proibido, então é um tabu, e não se pode, sequer, tocar nesse assunto, senão clandestinamente.
É certo, por outro lado, que a atual lei de drogas apresentou uma certa evolução no tratamento ao usuário, no entanto, ainda está longe do ideal. Retirar a pena privativa de liberdade do porte para uso próprio foi um avanço, mas o mais correto seria eliminar o crime. Perdeu a chance o legislador de descriminalizar o porte para uso próprio, pois, apesar de não se poder aplicar a pena privativa de liberdade, o usuário ainda carrega o estigma do criminoso e sofre todos os demais efeitos de uma condenação ou de um mero processo criminal, mesmo que venha a ser absolvido.
Quer o Estado, assim, interferir na liberdade individual do cidadão para evitar que o mesmo consuma drogas, porém, o direito penal demonstrou ser ineficaz para este fim. O uso da droga é uma autolesão e, em obediência ao Estado democrático de Direito, o comportamento que não atinge terceiros não pode ser crime. Criminalizar o porte para uso próprio é uma atitude paternalista injustificada do Estado.
Outro ponto interessante da discussão é o bem jurídico tutelado pela lei de drogas. A doutrina, quase em sua totalidade, afirma que se trata da saúde pública. Assim como a paz pública, também temos aqui um caso de conceito vago. Seria a saúde pública a soma da saúde individual de cada pessoa? Se for assim, não há como justificar a criminalização do porte quando alguém atinge a própria saúde ao consumir o entorpecente, uma vez que aquilo que diz respeito somente à pessoa não interessa aos demais. Não se pode considerar a saúde pública como bem jurídico geral tutelado por todos os tipos da lei de drogas.
A criminalização do uso tem um cunho utilitarista, desprovido de bem jurídico legítimo. Mesmo que se alegue que o uso de drogas por diversas pessoas pode comprometer o sistema público de saúde, estar-se-ia considerando uma suposição de dano a um interesse remoto, distante do comportamento individual. Tolerar bens jurídicos remotos é permitir a abertura da criminalização arbitrária, pois qualquer conduta humana praticada cumulativamente, com resultado prejudicial, pode alçar a condição de delito. Basta imaginar que o consumo excessivo de comida gordurosa, por muitas pessoas, pode comprometer o sistema de saúde. Sem contar as drogas lícitas, como a nicotina e o álcool.
O relatório da Comissão Global de Políticas de Drogas mostra-se um importante instrumento para a discussão do combate a um comportamento prejudicial ao ser humano. Ninguém nega que o uso de drogas pode provocar malefícios, muitas vezes menores que as drogas legalizadas, no entanto, não é por meio da repressão penal que o problema será resolvido. Espera-se que o Brasil, em breve, faça parte do seleto grupo de países democráticos em que todo e qualquer assunto pode ser abertamente discutido, sem atitudes arbitrárias do Estado. E, principalmente, deseja-se uma sociedade pronta para debater temas hoje polêmicos para que, no futuro próximo, sejam tão normais quanto discutir futebol ou novelas.