Autor: Márcio Garcia (*)
Da recente e conturbada crônica internacional, o Brasil não está imune de participação ativa. Sobre isso, ocorre-nos a recente deportação do físico franco-argelino Adlène Hicheur, professor visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar de muito menos dramático, o caso demanda atenção pelas consequências produzidas, bem como pelo eventual precedente criado.
Esse senhor foi deportado pelas autoridades brasileiras competentes no último sábado (16/7). A justificativa para sua imediata exclusão do país está na conveniência “aos interesses nacionais”. Essa foi a invocação do Ministro de Estado da Justiça para, após o indeferimento da prorrogação do visto de trabalho do Professor, assentir com sua deportação.
Embora o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) contemple essa possibilidade (artigo 57, parágrafo 2°), referido fundamento é incomum em se tratando de deportação. Há, em geral, prazo, previsto em regulamento, para execução da medida. O instituto relaciona-se mais às hipóteses de entrada ou estada irregular do estrangeiro.
Esse modo de exclusão de estrangeiro do nosso território por iniciativa das autoridades locais é implementado pela Polícia Federal e, em princípio, não deixa sequelas. Inexiste envolvimento dos escalões mais elevados da burocracia e, regularizada sua situação, o estrangeiro pode retornar ao Brasil.
Assim, é invulgar, tendo atenção as peculiaridades do caso, a justificativa empregada para fins de deportação. Considerando a decisão governamental, a maneira incomum de sua implementação, o cenário mundial e a proximidade das Olimpíadas, seria mais adequado cogitar a eventual expulsão do professor.
Nesse sentido, o Estatuto prescreve ser passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais (artigo 65).
O dispositivo, que tem o travo do seu tempo, dá margem a imensa subjetividade e possível arbitrariedade por parte do seu aplicador. No entanto, convém registrar que, fora as hipóteses de estrangeiros que respondam a processo ou tenham cumprido pena no Brasil, a expulsão tem sido aplicada por aqui com imensa parcimônia.
A expulsão é implementada pelo Ministro da Justiça, por delegação presidencial. Uma vez expulso, o estrangeiro não pode mais regressar ao território nacional, salvo revogação do decreto expulsório. À vista da contundência da medida, sua adoção demanda instauração de inquérito administrativo no âmbito do Ministério da Justiça em que o expulsando pode apresentar defesa. Há, pois, um mínimo de contraditório.
O estrangeiro em causa foi condenado pelo suposto cometimento de crime em solo francês. Segundo informações, Hicheur foi sentenciado, por possível envolvimento com grupo terrorista, a pena de cinco anos; ele cumpriu dois e foi solto. Não parece, ao menos para o homem médio, que se trata de “terrorista de alta periculosidade”, se é que isso existe. Terrorista é terrorista.
É mais provável que sua situação esteja inserida no contexto persecutório que tomou conta da França em razão dos recentes atentados terroristas. O país segue em estado de emergência com ampliação dos poderes da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Admitir o contrário, seria aceitar a possibilidade de grave falha dos serviços secretos, bem assim da polícia francesa, ambos com longa história e sólida tradição.
Do período entre sua acusação e condenação em França, houve movimento de cientistas europeus em prol de sua absolvição, com destaque para seus colegas de trabalho na respeitada Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (CERN). De um lado, a virtual ausência de demonstração plena de seu envolvimento no que era acusado; de outro, sua vida pregressa e reputação como cientista.
À vista desse contexto, sobretudo de seu prestígio como físico, ele foi convidado a lecionar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas vinculado ao Instituto de Física da UFRJ. Para tanto, solicitou e obteve visto de trabalho.
Também aqui parece sensato supor que tanto as autoridades brasileiras competentes quanto suas homólogas no exterior trocaram informações tendo em conta a vida pretérita do solicitante. Imaginar o inverso seria admitir falha dos agentes responsáveis pela segurança do nosso país. Afinal, estamos diante de alguém condenado por suposto envolvimento com terrorismo. E mesmo cientista notório pode ser, por igual, terrorista.
Com a expiração do prazo para permanência no Brasil, o pesquisador requereu a prorrogação do visto. Na vigésima quinta hora, o governo brasileiro indeferiu o pedido, sem maiores considerações. Essas as circunstâncias, sua estada no Brasil tornou-se irregular. Dessa forma, ele ficou passível de deportação.
Com velocidade ímpar, a Polícia Federal intimou o professor a deixar imediatamente o território brasileiro, o que foi feito. Vale lembrar, ainda, que, de acordo com informações veiculadas, o pesquisador vinha sendo vigiado por policiais, que não encontraram nada que desabonasse sua conduta entre nós.
Esse o quadro, parece-nos que estamos diante de situação descabida. E mais, do ponto de vista jurídico, verifica-se uma expulsão disfarçada de deportação. As consequências para o senhor Hicheur são consideráveis. Ele passou a ser “inconveniente aos interesses nacionais”, seja lá o que isso significa em seu caso, sem a mínima possibilidade de defesa.
No que concerne ao modo de atuação do governo, o precedente mostra-se indesejável: deportação à maneira de expulsão, sem direito à defesa. É grave. A preponderar esse entendimento, é válido considerar a não recepção pelo ordenamento constitucional, por ofensa à ampla defesa e à presunção de inocência, do parágrafo 2° do art. 57 da lei mencionada no ponto em que admite a invocação de “conveniência” aos interesses nacionais para determinar a “imediata” deportação de estrangeiro residente no Brasil.
Por fim, interessa a todos, governo e sociedade, ficar vigilantes para que fatos hediondos da cena internacional contemporânea não tenham projeção em nosso país, mas também para a circunstância de que não podemos nos levar por julgamentos apressados. Muitas vezes as aparências levam o juízo a se enganar.
Estimamos, à vista dos dados disponíveis, bem como do depoimentos oferecidos em seu favor pela comunidade científica internacional, que o professor Adlène Hicheur siga o curso de sua vida sem outros atropelos e que um dia retorne ao Brasil para contribuir com o aprimoramento, por ser conveniente ao interesse nacional, de nossa ciência.
Autor: Márcio Garcia é consultor e professor de Direito Internacional em Brasília. LLB (UnB), LLM (Cambridge) e Ph.D. (USP).